Uma noite de jazz à brasileira

Quinta foi dia de dar um pulo no Jazz Factory para ver duas atrações em ascensão na cena paulistana – e as duas atrações mostraram sua versão mais jazz à brasileira. A sensacional Orfeu Menino aos poucos vem mostrando suas músicas novas, mas ainda divide seu repertório com músicas alheias, temperando Marina Lima (“Fullgás”) com Orlandivo (“Tudo Joia”) – e o quinteto tira onda naturalmente, com uma suingueira pesada conduzida pelo carisma inescapável de sua vocalista, Luiza Villa. Cada vez melhor. Depois foi a vez de Ana Spalter assumir a noite com suas músicas autorais, acompanhada de um quarteto da pesada (Johnny Accetta esmerilhando na guitarra, Michael O’Brien nos teclados, Pedro Petrucci no baixo e Léo de Braga na bateria), e mostrando uma groovezeira bem diferente do som introspectivo que faz quando toca só ao piano, que ainda contou com a participação do vocalista dos Fonsecas, Felipe Távora (que também toca com Ana), que dividiu os vocais quando ela apontou o microfone para a plateia. Foi bonito.

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Pura magia

Mais uma apresentação de tirar o fôlego conduzida por Juçara Marçal no Centro da Terra. Na segunda noite em que trouxe seu Encarnado em versão acústica este ano para o palco do Sumaré, a maior cantora do Brasil hoje não só fechou esta pequena temporada com uma apresentação ainda mais intensa que a da terça anterior, como encerrou outro ciclo, ainda maior, aberto quando realizou a primeira data de uma temporada interrompida no fatídico março de 2020 da pandemia. Acompanhada dos cúmplices de sempre – Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Thomas Rohrer, todos eles empunhando instrumentos sem eletricidade -, ela transformou mais uma vez seu disco de estreia no véiculo perfeito para a expor a intensidade de sua performance ao vivo, quando transforma sua voz e presença de palco em uma passagem para entidades, cada uma em uma canção. E assim ela foi enfileirando sambas de Siba e Paulinho da Viola, Itamar Assumpção e Gui Amabis, Romulo Froes e Chico Buarque, Tom Zè e Douglas Germano cujas histórias e letras misturam causos do cotidiano com casos de polícia, dramas pessoais com traumas íntimos, rezas e cânticos, sempre amparada pela complexa trama formada pelo entrelaçamento ímpar das cordas de Kiko e Rodrigo e coberta pela lânguida rabeca de Thomas. Uma noite que não apenas tirou o fòlego como livrou o encosto dos traumas dos anos recentes. Pura magia.

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Ecos de outras dimensões

Mais uma segunda-feira atordoante dentro da temporada Curadoria do Medo que a dupla Test está fazendo no Centro da Terra – e se na primeira noite, João e Barata passearam sua avalanche de ruído acompanhada da surra de imagens aleatórias proposta pela VJ Carol Costa, na segunda sessão foi hora de transitar entre a iluminação, por vezes etérea e difusa e por outras frnética e energizante, conduzida por Mau Schramm e pelos ruídos manipulados por Douglas Leal, que começou a noite com gravações da própria banda antes mesmo de ela subir no palco, para depois misturar e remixar outros ruídos emitidos pela dupla enquanto os dois tocavam, funcionando como um eco de outra dimensão. Foi intenso.

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O rock do século 21 para além da caricatura do século 20

Bem bom o show que o Interpol fez neste sábado no Áudio. Foi o último show que a banda nova-iorquina fez no Brasil nesta vinda, em que passou pelo Rio de Janeiro e fez duas datas em Sâo Paulo, celebrando seus dois primeiros discos, sabidamente a fase clássica da banda. Para não repetir exatamente o show que fizeram na sexta, inverteram a ordem dos discos e começaram com o segundo, Antics, lançado há vinte anos, e essa opção deu uma outra cara à apresentação. Afinal, sua obra-prima é seu disco de estreia, Turn On the Bright Lights, lançado em 2002, e o disco seguinte, apesar de manter o vigor e a energia do anterior, perde nos quesitos tensão e climão, qualidades que tornam o primeiro álbum tão memorável. Assim, a noite começou com um pique mais intenso, mas sem queimar os principais hits, opção que seguiu na segunda metade da noite, quando o grupo, ao contrário do que fez ao tocar seu segundo disco, mexeu na ordem das faixas. No palco, o trio fundador da banda segue firme como ícones do rock do século 21, que mantém alguns dos valores do estilo musical mais popular dos últimos 60 anos, mas sem cair na caricatura roqueira que prende o gênero no passado. O guitarrista Daniel Kessler segue a linhagem da guitarra pós-punk – que ruge mais do que sola – e deixa o ritmo do seu instrumento determinar a intensidade da banda, por vezes mais estridente, outras mais soturno. À frente de todos, Paul Banks encarna a intersecção entre a personlficação do cool e a pose de rockstar, começando o show de jaqueta de couro e óculos escuros e hipnotizando os fãs com seu grave implacável e sua postura ao mesmo tempo distante e quente, trocando pouquíssimas palavras com o público e regendo a multidão apenas com suas cordas vocais. Os outros três músicos – o baixista Brad Truax e o tecladista Brandon Curtis, ambos há mais de uma década na banda, e o baterista Chris Broome, que substituiu Sam Fogarino nesta turnê – não gravaram os discos celebrados na noite, mas estão completamente dentro da vibração do grupo, tornando a dinâmica da banda norte-americana quase inglesa – pouco movimento em cena (à exceção de Kessler, hiperativo), emoções contidas e entrega plena. Entre um disco e outro a banda fez uma pausa, saiu do palco, para retomar o primeiro álbum com a ordem das músicas trocadas – heresia para os fãs mais radicais, mas que fez sentido no decorrer do show. A parte de Turn On the Bright Lights começou com uma música que não está no disco (“Specialist”, lançada no primeiro EP da banda), pulou para a quinta do lado A (“Say Hello to Angels”) e só retomou a ordem original com a terceira faixa (“Obstacle 1”). Daí pra frente o grupo meio que seguiu a versão do primeiro disco (apenas puxando uma faixa do lado B, “Roland”, para depois de “NYC”, do lado A) e deixou claro o motivo de ter alterado o setlist em relação ao disco para deixar o grande hit “PDA” como penúltima música da noite, tocada antes de encerrar mais uma etapa, sair do palco e só aí retornar com a abertura épica do disco, “Untitled”, que neste contexto funcionou como o melhor jeito de encerrar a noite, fazendo o público que cantou todas as músicas o show inteiro, sair sonhando com os versos “Surprise sometime will come around” ecoando na cabeça. Bem bom – só pecou por tirar a música que encerra o disco, “Leif Eriksson”, que tocaram no dia anterior, do repertório da noite.

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Artistas univitelinos

Douglas Germano só não é integrante oficial do grupo Encruza porque trilha sua carreira solitário, à distância, mas sempre que se encontra com quaisquer dos cúmplices que pertencem ao coletivo informal do atual samba torto paulistano, a liga é imediata. Como vimos nesta quarta-feira quando o sambista, por pouco mais de uma hora, tornou-se o quarto integrante do Metá Metá – e conectar-se com o trio, por mais abertos que sejam Juçara Marçal, Kiko Dinucci e Thiago França, exige um certo fôlego criativo e de palco que não é pra qualquer um. Mas com o Douglas não teve mistério e na apresentação que aconteceu na Casa de Francisca ele parecia ter fez parte do grupo desde o início. Tà certo que sua irmandade musical com Kiko e o fato de sambas clássicos de Douglas serem parte considerável do repertório do Metá já deixa claro que esta simbiose é mais que inevitável, é fato – são artistas univitelinos. Mas vê-la desdobrando-se à nossa frente, transforma aquele encontro aparentemente trivial em um momento único para todos os presentes. O quarteto passeou por momentos centrais do Metá Metá que foram compostos por Douglas (“Orunmilá”, “Oranian”, “Canção pra Ninar o Oxum”, “Sozinho”, “Obá Iná” e “Damião”) e outros (“Oyá” e “Rainha das Cabeças”) feitos em parceria com Kiko, seu irmão de voz e instrumento, com quem dividiu não apenas as fileiras de seu Bloco Afromacarrônico como o clássico Duo Moviola, visitado três vezes nesta noite (“”Cio”, “Premiére Deja Vu” e “Por Favor” – esta com Thiago no cavaquinho -, volta Duo Moviola!). Os quatro também visitaram o repertório de Douglas e músicas como “Àgbá”, “Golpe de Vista” e “Tempo Velho” ganharam uma nova dimensão visitadas naquela formato. A noite ainda teve clássicos do Metá compostos por Kiko (“Cobra Rasteira” e “São Jorge”) que carregam o DNA dos sambas de Douglas e Juçara lembrou que aquele encontro havia acontecido há pouco numa apresentação que os quatro fizeram em Porto Alegre pouco antes da tragédia climática que abateu-se sobre o Rio Grande do Sul, revelando que a renda daquela noite iria para o coletivo RS Música Urgente, que está ajudando a cena musical gaúcha a se reerguer. Uma noite histórica.

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“Encarnando em 3, 2, 1…”

Encarnado e desencantado! Como Juçara falou logo no começo da primeira das duas apresentações que está fazendo no Centro da Terra neste começo de mês, retomar seu primeiro disco solo em formato acústico fecha a tampa de um alçapão que nos foi aberto bem quando ela começava uma temporada de shows no teatro revisitando seu primeiro disco (que naquele março de 2020, que viu o começo da pandemia, completava seis anos) sem instrumentos elétricos – e sem microfones ou amplificadores, só no gogó e na unha, como ela mesma disse. A nova versão acústica de seu Encarnado, que agora completa 10 anos, foi diferente daquela antes de entrarmos na tragédia pandêmica, pois além de microfone e instrumentos plugados também contava com a iluminação de Olívia Munhoz, que já havia feito no primeiro aniversário do disco esse ano, no Sesc Vila Mariana. Ao seu lado, os suspeitos de sempre (Kiko Dinucci, pela primeira vez tocando violão com cordas de aço num show, Rodrigo Campos e Thomas Rohrer) a ajudavam a conduzir-nos a um território cru e direto, sem meios termos passando por novos (“A Velha da Capa Preta” de Siba, “Ciranda do Aborto” – o momento mais intenso do disco e do show – e “João Caranca” de Kiko, “Pena Mais Que Perfeita” de Gui Amabis, “Velho Amarelo” de Rodrigo, “Presente de Casamento” de Romulo Froes e Thiago França e “Canção Pra Ninar o Oxum” de Douglas Germano, entre outras) e velhos (“E o Quico?” de Itamar Assumpção e “Não Tenha Ódio no Verão” de Tom Zé) clássicos da música brasileira. Dois destes últimos surgiram nessa versão ao vivo, primeiro “Xote de Navegação”, de Chico Buarque (em que Juçara foi acompanhada apenas por Rohrer tocando um fuê!), e depois “Comprimido” de Paulinho da Viola (em que trocou “um samba do Chico” por “um samba do Kiko”). Com a luz de Olívia perseguindo os silêncios e esporros do som (indo da penumbra quase completa aos faróis na cara do público), a apresentação terminou com um bis intenso, quando ela voltou a música do Tom Zé e pediu para que o público a acompanhasse seus gritos do refrão, fazendo com que todos exorcisassem, aos berros, o pesadelo dos últimos quatro anos, transformando o teatro numa câmara de descompressão de frustrações do período pandêmico. Irretocável. E terça que vem tem mais.

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Impacto fulminante

A primeira noite da temporada que o Test está fazendo no Centro da Terra durante este mês foi só um aperitivo da experiência sônica que a dupla formada por João e Barata irão proporcionar neste mês de junho. Sem participações musicais, a rigor foi um show semelhante aos que a banda vem fazendo, mas a convidada da noite deu um tempero extraordinário para a apresentação. A vídeo-artista Carol Costa cobriu o show dos dois com um amálgama de imagens que misturava filmes educativos de antes da Segunda Guerra Mundial, comerciais dos anos 70, documentários sobre a natureza e cenas de cirurgias criando uma colagem visual aparentemente díspare que ia criando um sentido à medida em que era sincronizada com as cadênciais em que os dois alternavam intensidades de velocidade e ruído. E ao fazer isso num teatro, com o público sentado, o trio criou uma sensação de cinema imersivo que deixou a plateia emudecida por quase uma hora sem parar, vítima de um impacto fulminante. E se pensarmos que os próximos shows terão a presença de outros músicos e manipuladores de som, o céu da experimentação é o limite para eles. Impressionante.

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Dois tipos de melancolia

Fechando o fim de semana, programa duplo no Bar Alto reuniu dois tipos de melancolia indie quando Manuella Julian dividiu a noite com o quarteto Cianoceronte. A vocalista dos Pelados vem azeitando a carreira solo que acalenta desde o ano passado em parceria com o guitarrista Thales Castanheira. Entre teclados, bases pré-gravadas e guitarras, ela está cada vez mais solta (como à frente de suas bandas) e além das primeiras músicas solo e de versões de músicas de suas duas bandas (além do Pelados, ela também é vocalista do Fernê), Manu mostrou mais duas inéditas neste domingo, ainda com os títulos de trabalho “Copo Vazio” e “Gato Preto” e visitou ainda as versões que já havia feito para músicas da banda argentina El Príncipe Idiota (“Novedades”) e Ava Rocha (“Você Não Vai Passar”), saindo da introspecção das primeiras apresentações e expandindo seu show para um novo patamar. Bem foda.

Depois da Manuella Julian foi a vez do grupo Cianoceronte fechar a noite de domingo no Bar Alto. São quatro músicos de primeiríssima – Duda Abreu nos teclados e voz, Bruno Giovanolli na guitarra, Victor Alves no baixo e o novato Demian Verano na bateria – que vão para além do virtuosismo em canções em sua maioria instrumentais que flertam tanto com o jazz (há uma música chamada “01jazz”) e a MPB clássica (citando “Samba de Verão” de Marcos Valle e tocando uma versão para “Na Boca do Sol”, de Arthur Verocai) quanto com o rock progressivo e o indie rock mais cabeçudo, passeando por um outro tipo de melancolia diferente da do show de abertura, mais expansiva, dividida em partes meticulosamente ensaiadas, com mudanças de tempo e uma boa dose de ruído. Fizeram bonito.

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Uma noite peculiar no Picles

Quando reuni a sofrência pernambucana ao dance desconstruído paulistano no último Inferninho Trabalho Sujo de maio sabia que, por mais díspares que fossem as experiências ao vivo dos novos discos do Tagore e do Lauiz, havia um ponto em comum nessa formação. Algo que misturava uma sensibilidade fora do comum à necessidade de explorar novos caminhos sonoros atrairia públicos distintos (inclusive no quesito etário), mas prontos para aceitarem-se mutuamente. Dito e feito. Tagore começou a noite celebrando lembranças de sua juventude no início dos anos 90, mostrando principalmente as novas canções do disco Barra de Jangada, feito em homenagem a duas figuras importantes em sua formação que o deixaram recentemente: seu pai, o artista plástico Fernando Suassuna e o guitarrista Paulo Rafael, que tocou no Ave Sangria e acompanhou boa parte da carreira de Alceu Valença. Acompanhado de uma banda formada pelo guitarrista Arthur Dossa, o baixista e principal parceiro musical João Cavalcanti e pelo baterista Arquétipo Rafa, Tagore não só passou o disco recém-lançado como visitou pérolas de seu repertório como a já clássica “Movido a Vapor” e a bela “Olho Dela”, tocada num bis improvisado, como convidou o vocalista do Mombojó, Felipe S, para dividir os vocais do maior hit do mestre Alceu Valença, “Morena Tropicana”. Que vibe boa.

Depois foi a vez de Lauiz mostrar – a caráter, vestido de caubói – o repertório de seu disco lançado nessa sexta, Perigo Imediato. Cantando canções irônicas que perdem o cinismo ao serem desconstruídas num formato indie dance, o produtor dividiu-se entre piadas sem graça (como de praxe), vocais com vocoder e um keytar enquanto seu dupla, o DJ Marquinhos Botas-de-Ferro, disparava bases e tocava guitarra, sempre mantendo a seriedade que contrapunha à autodepreciação promovida pelo vocalista. Com timbres sintéticos que soam simultaneamente cafonas e modernos, os dois mantiveram o público sempre animado, mesmo quando zoavam da própria postura no palco. O show só pecou por ser curto e durou apenas meia hora. Mas o foi o suficiente para deixar o Picles em ponto de bala para que eu e Bamboloki, que estava completando seu primeiro aniversário como DJ, fizéssemos um dos nossos melhores sets, misturando Kasino e Siouxsie & The Banshees, Yo La Tengo e Arrigo Barnabé, Gang of Four e Jonata Doll e os Garotos Solventes. Quem foi sabe.

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Buscando novas fronteiras

As atrações de música no mês de maio no Centro da Terra encerraram nesta terça-feira, quando o duo (I)miscível, formado por Guilherme Marques e Amilcar Rodrigues, recebeu o contrabaixista Marcelo Cabral para explorar novas fronteiras musicais a partir de uma sessão de improviso livre que, como é característica do trabalho do duo, busca novas sonoridades a partir das já estabelecidas por seus instrumetos. Enquanto Amílcar reveza-se entre o trompete, o trompete piccolo e o bombardino, Guilherme buscava detalhes e nuances de uma bateria desconstruída enquanto Cabral ia para além das quatro cordas de seu instrumento, usando tanto o corpo, quanto arco e pedais para deformar seus timbres característico, numa apresentação que ia da quietude à expansão, com direito ao público assistindo a tudo no próprio palco.

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