Tudo Tanto #005: O papel do hip hop na cultura brasileira deste século

, por Alexandre Matias

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Na minha coluna na edição do mês passado da revista Caros Amigos, aproveitei os lançamentos-relâmpago dos discos dos Racionais e do Criolo pra falar da importância e do papel do hip hop na cultura brasileira deste início de século.

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Os novos cronistas
Novos discos de Criolo e Racionais MCs reforçam o papel do hip hop na cultura brasileira deste século

Dois dos principais discos lançados no Brasil em 2014 são discos de rap. Por mais distantes que pareçam, tanto o terceiro disco de Criolo (Convoque Seu Buda) quanto o sexto disco de estúdio dos Racionais MCs (Cores e Valores) foram lançados de surpresa em novembro e o impacto de suas chegadas não apenas consolidam seus dois autores como os principais nomes do gênero no Brasil hoje (ao lado de Emicida, de quem falei na coluna da edição passada) como impõe o protagonismo do hip hop ao panteão da atual música brasileira. O rap não é mais um gueto, é um dos gêneros mais populares do Brasil e seus 25 anos de história cacifam seus nomes mais importantes a entrar no panteão de nossa produção cultural.

Surgido no final dos anos 70, o hip hop chegou ao Brasil quase uma década depois de seu nascimento e levou uns pares de anos para estabelecer sua voz. O canto falado sempre foi uma característica particular do vocal brasileiro, do samba de breque ao repente, Jair Rodrigues, Chico Science, Fausto Fawcett e Evandro Mesquita pertencem a um cânone paralelo da música brasileira, que fez o hip hop ser absorvido mais facilmente no país. Afinal, cantar falando ou falar cantando não é estranho à nossa musicalidade.

Como aconteceu em todo o planeta, o rap progrediu como uma força periférica. Criado nos bailes do subúrbio de Nova York como um subproduto da discoteca, em poucos anos a cultura hip hop já tinha ampliado sua influência para além da regra pela diversão e tiração de onda, dos primeiros dias. Três anos após o lançamento do primeiro rap gravado (“Rapper’s Delight”, da Sugar Hill Gang), o gênero já puxava para a temática para além da pista de dança e começava a retratar a crua realidade das ruas com a emblemática “The Message”, de Grandmaster Flash & the Furious Five.

O gueto nova-iorquino espalhou-se para o resto do planeta e em questão de anos o rap já era trilha sonora em comunidades periféricas de grandes cidades do mundo inteiro. No Brasil, seus primeiros registros nada têm em comum com as origens do gênero – primeiro quando o bon vivant Miéle gravou sua própria versão para “Rapper’s Delight” (batizada de “Melô do Tagarela”), em 1980, ou quando o grupo de rock Ira! aproximou o gênero do repente nordestino na faixa “Advogado do Diabo”, no disco Psicoacústica, de 1988. Mas uma rede de casas noturnas, sistemas de som, festas, bandas e DJs formada entre os anos 60 e 70 funcionou como berço para o rap brasileiro. Afinal, todos os grandes nomes do hip hop nacional foram criados dançando nos bailes black de periferia, em que se ouvia muito soul, funk, disco music e, aos poucos, hip hop.

O interesse do grupo paulistano Ira! pelo rap veio como uma espécie de reconhecimento mútuo, muito pelo fato do grupo liderado por Nasi e Edgard Scandurra se ver como uma banda de periferia e se identificar com aquele movimento que surgia em rodas de break na Estação São Bento do metrô paulistano. Tanto que Nasi e o baterista do grupo, André Jung, foram responsáveis pela primeira polaróide do rap brasileiro – a coletânea Hip-Hop Cultura de Rua, de 1988, que trazia os primeiros registros de Thaide e DJ Hum (produzidos por Nasi e André), O Credo (produzidos por Akira S), Código 13 e MC Jack (produzidos por Dudu Marote). A antologia foi lançada uma semana antes do outro marco zero do rap brasileiro, a coletânea Consciência Negra – Volume 1, que trazia, entre outros artistas, aqueles que juntos seriam o maior nome do pop brasileiro no final século. O futuro quarteto vinha em dupla: de um lado a faixa “Pânico na Zona Sul” , de Mano Brown e Ice Blue, do outro a faixa “Beco Sem Saída”, de Edy Rock e KL Jay. Em pouco tempo as duas duplas se juntariam para formar os Racionais MCs e, ao lado da dupla Thaíde e DJ Hum, eles forjaram na marra o cenário que permitiu nascer, nos anos seguintes, nomes que ajudaram a construir uma história que consolidou o que parecia ser um modismo dos anos 80 em um dos segmentos mais importantes da música popular brasileira. E com um forte agravante: sua popularidade cresceu sem o auxílio intenso de rádio, TV, jornais ou revistas. O rap brasileiro sempre evoluiu através de seu aspecto comunitário, conectando pessoas com a mesma mentalidade em diferentes cidades do Brasil no boca a boca, no corpo a corpo – que, justamente por isso, soube se aproveitar como poucos da internet.

Por isso não é estranho que Racionais e Criolo tenham usado a internet para anunciar suas aguardadas voltas – Criolo liberando o download gratuito em seu site criolo.net, Racionais cobrando R$ 9,90 pelo download do disco via Google Play. Os discos vieram antes de matérias, de clipes, de músicas de trabalho ou aparições em programas de televisão. Cada um trazendo sua versão para os fatos com clareza e particularidades que descrevem o que acontece na sociedade brasileira em 2014 muito mais do que jornais, revistas, novelas ou programas de rádio.

Criolo, que veio das rinhas de rimas paulistanas e entortou o rap e a MPB ao cantar em um disco ousado e emocionalmente intenso (Nó na Orelha, de 2010), aprofunda-se ainda mais em seu Convoque Seu Buda, falando com o funk (“Cartão de Visita”, gravada com Tulipa Ruiz), o reggae (“Pé de Breque”), o samba (“Fermento pra Massa”) e a música africana (“Fio de Prumo” com Juçara Marçal). Os Racionais lançam o primeiro disco desde o duplo Nada Como Um Dia Após o Outro Dia, de 2002 (12 anos atrás!) e o curto Cores e Valores dura pouco mais de meia hora com 15 faixas (algumas delas meras vinhetas). Menos expansivo que o de Criolo, o disco atualiza o rap do grupo para a segunda década deste século com bases mais e sintéticas, vocais distorcidos e temática mais passional, mas não deixa de citar Assis Valente ou Marina Lima quando quer exprimir sentimentos que já foram capturados por outros autores. Acertando o clima tenso, o discurso retrata uma periferia que ascendeu socialmente na última década e que embora ainda conviva com o crime organizado, convive com outras preocupações – seja refletir a próprias história, as próprias emoções ou o próprio consumismo.

Pois se o rap encontrou casa no tradicional canto falado brasileiro, ele também resgata outro aspecto importante de nossa cultura que já teve mais espaço na rotina do povo – o do cronista, do contador de histórias, que fala sobre as coisas da vida de qualquer um. Nesse sentido, não só Criolo e os Racionais, mas o rap brasileiro como um todo, vem suprir uma lacuna de comunicação que já foi mais intensa de forma escrita (Machado de Assis, João do Rio, Nelson Rodrigues, Fernando Sabino, Luis Fernando Veríssimo) e que veio esvaziando-se sentimentos em telenovelas cada vez mais simplistas. E o rap vem nos lembrar que as coisas não são tão simples assim.

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