Segundo ano que assino a curadoria de música do Centro Cultural São Paulo e aos poucos as coisas vão entrando nos trilhos. Depois de um ano entendendo a natureza do trabalho – do convite e contato com os artistas à burocracia das contratações, passando pelas partes técnicas, de comunicação e divulgação dos eventos e por questões internas do próprio CCSP -, encerro 2018 com a certeza de estar recuperando a importância deste espaço que é um dos principais pontos da vida cultural de São Paulo, fazendo a Sala Adoniran Barbosa assumir seu papel de palco nobre da cidade. Se em 2017 já percebia a formação de públicos em shows de diferentes gêneros musicais (a galera que vai sempre nos shows de rap, nos shows de rock, nos de música brasileira mais tradicional ou nos mais experimentais), em 2018 vi diferentes públicos arriscando shows em que normalmente não iriam. Algumas apresentações foram catárticas e exploraram a concentração de boas energias naquele cubo mágico, que é um lugar sobrenatural quando apinhado de gente e as pequenas multidões reunidas ao redor de nomes como Otto, Jaloo, Metá Metá, Rincon Sapiência, Don L, Anelis Assumpção, Maglore, Carne Doce, Baco Exu do Blues, Boogarins ou Black Alien, todos mostrando seus discos mais recentes, tornaram várias noites deste ano memoráveis, me vislumbrando a possibilidade do CCSP ser um palco tão próximo da cidade de São Paulo quanto o Circo Voador é da cidade do Rio de Janeiro.
Outros shows foram únicos, encontros de toda sorte e apresentações experimentais: Iara Rennó reunindo Maria Beraldo, Mariá Portugal, Ava Rocha e Alzira Espíndola para celebrar Macunaíma, Leandro Lehart recebendo todo o grupo Fundo de Quintal para uma catarse que começou apenas com sua voz e seu violão, Otto reduzindo sua formação a um trio e passeando solto pelo segundo andar da sala, Mariana Aydar colidindo seu forró com música eletrônica, Música de Selvagem conseguindo reunir Tim Bernardes, Sessa, Luiza Lian e Pedro Pastoriz pela primeira vez para fazer seu Volume Único ao vivo com todos os convidados, Deaf Kids e Test dividindo o palco no início de sua turnê, Letrux com Mãeana conduzindo um ritual místico feminino impecável, o Garage Fuzz tocando seus hits no formato acústico, o Gangrena Gasosa levando a sério seu terreiro death metal, o último show de Luiza Lian com seu Oyá: Tempo e Rincon Sapiência indo rumo ao reggae. Isso sem contar o Centro do Rock, que merece uma menção à parte.
Também tivemos celebrações da obra de lendas-vivas de nossa música, como Walter Franco, Cólera, Patife Band, Edgard Scandurra e Di Melo, apresentações internacionais (como as lendas-vivas do punk americano Ian Svenonious e Laura Jane Grace), belíssimos momentos de câmara (com Rômulo Fróes, Cacá Machado, Paulo Carvalho, Douglas Germano, Bolerinho, João Leão, Manu Maltez, Gui Amabis), o rap brasileiro deste século (Don L, Ogi, Elo da Corrente, Diomedes Chinaski, Baco Exu do Blues, Síntese, Kamau, Black Alien), novatos como Ana Frango Elétrico, Betina, Natália Matos, Joe Silhueta, Catavento, Miami Tiger, Terno Rei, Cosmo Grão, Cinnamon Tapes, Pedro Salomão, Edgar e Yma e parte da nata da atual produção musical brasileira (Maria Beraldo, Rodrigo Campos, Alessandra Leão, Glue Trip, Guizado, Rakta, Juliano Gauche, Garotas Suecas, M. Takara, Jair Naves, Nomade Orquestra). Isso sem contar eventos de grande porte, como o Women’s Music Event, a Virada Cultural, a Sim São Paulo, o Dia da Música e a Semana da Música Eletrônica – cada um destes com outras tantas de importantes apresentações ao vivo, trazendo, para aquele palco, nomes tão importantes quanto Flora Mattos, Filipe Catto, Getúlio Abelha, ÀTTØØXXÁ, Teto Preto, Tuyo, E a Terra Nunca Me Pareceu Tão Distante e Vitor Araújo. Só dos shows que programei foram mais de uma centena de datas durante todo o ano – entre atrações gratuitas ou com a bilheteria revertida 100% para os artistas.
O ano terminou com o anúncio da saída de Cadão Volpato, diretor do CCSP que me trouxe para a curadoria de música, que passou de ídolo a compadre em pouco tempo. Lembro de ouvir sua banda, o Fellini, ainda em Brasília e, inspirados por vários de seus versos, tomar algumas decisões na vida – a maioria corriqueiras, outras nem tanto. Depois de começar a trabalhar como jornalista o entrevistei algumas vezes sobre sua banda e mais tarde seria a vez de ele me entrevistar em algumas participações no programa Metrópolis, da TV Cultura, onde trabalhou como apresentador. O convívio casual foi selado num show do próprio Fellini em 2016, quando vi sua banda ao vivo pela primeira vez, no último show que a banda fez. Quis o destino que este show acontecesse no próprio CCSP e que, um semestre depois, estaríamos eu e ele estreando na vida pública no próprio Centro Cultural São Paulo. A convivência rotineira tornou-se um aprendizado mútuo além de ter estreitado nossa amizade. Cadão parte para Nova York no início de 2019 mas sua partida felizmente não acarreta mudanças nas perspectivas para o CCSP em 2019. Aproveito este espaço para agradecê-lo em público por sua confiança e convivência.
A mudança mais perceptível na minha curadoria de música no Centro da Terra em 2018 foi o acréscimo das terças-feiras à programação que começou em 2017 apenas às segundas. Mas ao contrário da sessão já estabelecida – Segundamente, com suas quatro apresentações distintas -, a terça-feira não ganhou um nome e tinha uma característica mais fluida e menos radical que a proposta do início da semana. Assim, tivemos temporadas tradicionais, com um artista experimentando o mesmo repertório ou formações sem necessariamente mudar drasticamente entre uma semana e outra: Luedji Luna, Negro Leo, Tassia Reis, o Corte de Alzira Espíndola, Tika e Kika, Guizado, Gui Amabis, Mawaca e o Mdm Duo dos guitarristas do Hurtmold optaram por manter um repertório base e mexer – quando mexiam – nos convidados, azeitando experimentações sonoras que vinham testando sem necessariamente pensar em transformar o show em disco, valorizando mais o processo que um futuro produto final. A terça também abriu para shows únicos, opções de aprofundar apresentações tradicionais para um ambiente mais acolhedor, comunitário e introspectivo que vem sendo criado no pequeno teatro do Sumaré. Assim aconteceram as apresentações de Filipe Catto, do produtor Grassmass, do Redemunho de Mariá Portugal, da Papisa de Rita Oliva, dos Vermes do Limbo, da Nomade Orquestra, do Lux Aeterna de Fábio Golfetti, do Porcas e Borboletas, expandindo para além do música, adotando elementos cênicos à apresentação.
Se a lógica da segunda-feira invadiu algumas temporadas de terça – como a do Garotas Suecas -, o inverso também acabou influenciando as segundas-feiras. Rico Dalasam, Rakta, Metá Metá, Vítor Araújo e Universal Maurício Orchestra aproveitaram suas temporadas para criar uma experiência fechada, o espetáculo como um fim em si mesmo. A atmosfera criada ao redor daquele palco propicia momentos de reverência e êxtase que cala conversas paralelas – mesmo ao celular -, registros audiovisuais e coloca todos os espectadores imersos no que acontece durante a apresentação. Mas a lógica do Segundamente manteve-se aberta em temporadas plurais em que artistas como Edgard Scandurra, Larissa Conforto e Bárbara Eugenia pudessem explorar facetas distintas de sua própria musicalidade. Ainda exploramos, no susto, uma ideia que eu vinha acalentando de abrir espaço para um futuro próximo que foi a temporada Sem Palavras, que reuniu quatro apresentações de diferentes grupos instrumentais para abrir espaço também para a sonoridade além da canção no Centro da Terra.
A experiência de 2018 foi menos radical que a do ano anterior e é reconfortante perceber que o público já desfruta deste um desafio artístico e comercial abraçando tais experiências como se fizesse parte delas – como realmente faz. Por mais que o espectador apenas observe passivamente o que acontece no palco, o ritual criado a partir da apresentação ao vivo transcende o que músicos poderiam fazer no estúdio ou em salas de ensaio. A formalidade do espetáculo exige uma apreciação focada, em que a atenção e a audiência atingem um equilíbrio intenso entre o artista e o público. Todas as distrações do puro entretenimento – a balada, o xaveco, a bebida, as redes sociais – ficam em segundo plano nestes momentos em que prevalece o apreço pela arte. Foram 84 apresentações durante todo o ano que tornaram este sentimento palpável – e algumas noites, e temporadas inteiras, históricas. Aproveito para agradecer publicamente à Keren por esta oportunidade e aprendizado constante e mútuo. Tem sido uma senhora viagem!
2019 segue este fluxo – mas vamos ainda além. Prepare-se.
Mais uma continuação do ano anterior, o Centro do Rock foi a recriação que fiz do antigo Sintonia do Rock em 2017, que reunia, durante o mês de julho, apresentações de rock no CCSP. Com o novo nome passei a focar em bandas de rock modernas e, em 2018, conseguir fazer quatro shows por semana (com duas bandas em cada show) e de forma gratuita para o público. Assim, reunimos Gorduratrans, Carne Doce, Papisa, Sky Down, Lava Divers, Far from Alaska, Black Pantera, Oruã, Deb and the Mentals, Mieta, Giallos, My Magical Glowing Lens, Molho Negro, Cora, In Venus, Odradek, Frieza, Stratus Luna, Marcelo Gross, Bruna Mendez, Bike, Maquinas, Kalouv, Goldenloki, Picanha de Chernobill, Def, Bombay Groovy, Basalt, Macaco Bong e Astronauta Marinho em um considerável leque do que significa esta sonoridade elétrica no Brasil neste ano, trazendo para o mesmo palco artistas de todos os lugares do Brasil e de todas as variantes de um gênero sempre colocado em xeque, mas cada vez mais popular. Ainda tivemos noites em que as duas bandas convidadas aproveitavam para tocar juntas – improvisando em alguns casos, ensaiando para esta apresentação conjunta noutros. A meta para 2019 é melhorar ainda mais o elenco e tornar este mês de apresentações um minifestival para entrar no calendário de shows do rock independente brasileiro.
Num ano em que assisti a quase 300 shows (284, para ser mais exato), nenhum teve o impacto maior do que o Radiohead no estádio do Palmeiras. Não é apenas uma questão de gosto pessoal, do fato de estar entre amigos ou das décadas de experiência que o grupo inglês carrega. O Radiohead é um formato avesso ao show em estádio, embora tenha sido realizado em um e terminado com um dos hits mais próximos do formato rock de arena da carreira da banda (“Fake Plastic Trees”, embora utilizada com um efeito anticlimático). É o tratamento camerístico de a banda de rock, a substituição do conservatório do rock progressivo pelo laboratório de música eletrônica que envolve e impressiona, tanto pela complexidade quanto pelo lirismo. Diferente do show catártico que o Brasil assistiu há quase dez anos, quando o grupo passeava pelo mundo mostrando seu melhor disco, In Rainbows, este de 2018 apertou em outros pontos emotivos, principalmente à luz fria de seu disco mais recente, A Moon Shaped Pool. O entrosamento da banda torna mesmo momentos mais cerebrais como “Everything in Its Right Place”, “Pyramid Song”, “2 + 2 = 5” e “The Numbers” entregas intensas, fazendo números ainda mais emocionais (como “Daydreaming”, “All I Need”, “No Surprises”, “Nude”, “Bodysnatchers”, “There There” e, claro, “Paranoid Android”) transcenderem. Seguem sendo a melhor banda de rock do mundo e um dos espetáculos ao vivo mais fortes deste século, indo além do que se espera deste formato já ultrapassado. Infelizmente a acústica exata para o show só funcionou para quem esteve na infame área vip do evento, tornando um sofrimento assistir ao show da pista comum (ou na “classe econômica”, como disse o Lúcio). Precisamos superar este complexo, inclusive.
A mensagem que apareceu no telão em todos os shows de Roger Waters no Brasil deixava tudo evidente. Foi ali que, para muitos, a ficha caiu. Não era uma paranoia ou uma teoria da conspiração: o neofascismo está aí. O ódio saiu do armário e está pronto para sair grunhindo suas maldades amplificadas por ferramentas que se embrenharam em nossas vidas. Redes sociais, sites de vídeo, smartphones e programas de troca de mensagem forjaram uma nova realidade digital distorcida cujo flerte intenso com a teocracia e o autoritarismo não é mais um alerta distante – é real e palpável. Uma das principais lições deste ano é lidar com esta inevitabilidade e simplesmente resistir. Erguer suas crenças e pensamentos ainda mais alto e manter foco no próprio trabalho, resistindo ao pânico, ao medo e à raiva, sentimentos mais próximos do reacionarismo do que a construção de um horizonte próximo, única meta possível nestes tempos sombrios. Só assim poderemos fazer uma política possível diferente desta orquestração de interesses que ocorre a cada quatro anos – e que está cada vez mais suscetível a influências sinistras.
Num ano em que vi shows brasileiro às centenas, a apresentação ao vivo que mais me impressionou foi o show de lançamento que o Quartabê fez para seu disco Lição #2: Dorival no Auditório Ibirapuera. O grupo causa um certo estranhamento inicial por seu jazz heterodoxo de formação inusitada e pelo clima de piada interna que mistura desde o nome da banda (que brinca com o tipo de humor entre seus quatro integrantes) até a própria escolha deste formato de discos, em que mergulham na obra de um professor para fazer este inusitado fichamento musical. Por sua formação acadêmica, o grupo disseca seus autores favoritos num nível de ciência que vai além do improviso, do ritmo, do timbre, da orelhada, do feeling – sem nunca abandonar nada disso. Mas algo foi para um lado sobrenatural neste primeiro show. Claro que a sincronicidade interna ajudou – fui ao show com zero expectativa, principalmente após ser atordoado pela intensidade do lançamento da mixtape Comunista Rico de Diomedes Chinaski no CCSP -, mas a sinergia de Beraldo, Chicão, Joana e Mariá no palco – tanto musical quanto cênica – aliada à luz miraculosa de Olívia Munhoz fez a reinvenção de Dorival Caymmi alcançar uma estratosférica estética que poucos shows brasileiros conseguiram chegar perto. Que momento mágico!
Minha maior aventura profissional de 2018 foi inventar um show. Uma dúvida já acompanhava o início do ano quando me perguntava sobre a execução do trabalho de curadoria para além de um espaço físico específico, como já vinha fazendo em 2017, quando consegui me explicar a separação entre programação e curadoria, sempre provocando artistas a fazer algo diferente ou único ao apresentar-se para onde estava o convidando, seja no CCSP ou no Centro da Terra. Mas vislumbrava em buscar outros espaços para mostrar obras em que eu poderia influenciar em sua criação, mais do que simplesmente abrir espaço para a criação alheia. Foi quando pensei no gancho dos 50 anos da Tropicália e como ir além da celebração da invasão baiana de São Paulo, da reverência aos Mutantes ou ao disco-manifesto que fundou o movimento. Foi quando me veio à lembrança a importância de Duprat.
Quase vinte anos antes, eu havia entrevistado o próprio Rogério Duprat pessoalmente em uma matéria sobre os Mutantes para a falecida revista Bizz. Na pesquisa para fazer a entrevista com aquele que então conhecia como um dos mentores acadêmicos do tropicalismo, descobri um maestro erudito rebelde, progressista que flertava com o cinema e a publicidade e que tinha assinado obras históricas da música brasileira que iam para além da ebulição tropicalista. Ao cogitar um espetáculo que celebrasse a importância de Duprat, eu também estava reverenciando um personagem pouco lembrando nas homenagens clássicas da música brasileira, que quase sempre comemoram o intérprete, o compositor ou o músico. Era a possibilidade de festejar um arranjador – e transformar esta festa em um reforço sobre a importância deste personagem.
Chamei o João Bagdadi, do selo Risco, com quem havia trabalhado no ano anterior no Centro da Terra, e ele colocou o produtor Charles Tixier e o músico Arthur Decloedt para pensar como fazer este projeto. Os dois assumiriam a bateria e o baixo de uma banda que recriaria as obras arranjadas por Duprat no palco e também assinariam os arranjos e a direção musical do espetáculo. Juntos, pensamos em uma obra que pudesse ser apresentada como uma composição erudita, sem espaço para apresentações ou palmas, enfileirando diferentes aspectos da produção de Duprat à medida em que os convidados entravam. Juntos, nós quatro e o produtor Gui Jesus, pensamos em outros aspectos da apresentação: quem seria a banda, os intérpretes, quem assinaria o figurino, a iluminação, a direção de palco, o som, qual seria o repertório e quem tocaria qual instrumento. Assim nascia o Professor Duprat – Maestro da Invenção.
O resultado foram duas apresentações memoráveis no Sesc Pompeia que reuniram alguns dos maiores nomes da atual música brasileira cantando clássicos de nosso cancioneiro devidamente reverenciados pelas referências de Duprat. O time que reunimos desenvolveu-se muito tranquilamente, sem nenhum atrito e em pouco tempo tínhamos uma senhora apresentação de pé. Foi minha primeira assinatura com diretor artístico, atividade que irei exercer mais nos próximos anos, e também o primeiro trabalho com novos amigos que certamente me ajudarão a criar mais coisas.
E o Professor Duprat não ficou apenas em 2018 não – devemos ter novidades no ano que vem.
Doug Martsch nos devia uma visita desde os anos 90, quando as poucas dúzias que sabiam o que era Built to Spill no Brasil brigavam para saber qual era o melhor disco da banda, There’s Nothing Wrong with Love, Perfect from Now On ou Keep it Like a Secret (este último é o meu favorito) e quando as primeiras bandas norte-americanas começaram a vir para o Brasil graças a esforços de pequenos produtores brasileiros. Era um tempo em que comemorávamos a vinda do Seaweed ou do Man or Astroman? como se fosse a do Sonic Youth ou dos Pixies, numa época em que essas bandas nem em sonho cogitavam vir para o Brasil. O termo indie ainda designava um jeito de trabalhar e aos poucos se transformava em gênero musical, um rótulo tão difuso e pouco específico quanto “rock alternativo” ou “MPB” e as pessoas ainda discutiam por música de forma passional.
Vinte anos depois, a maioria das bandas gringas que podiam vir ao Brasil já vieram, os pequenos produtores se tornaram marcas estabelecidas e abriram caminhos para novos players que hoje realizam festivais anuais trazendo artistas que estão acontecendo agora no exterior, independentemente do tamanho comercial que tenham em seus países. O clichê do telejornal que dizia que “o Brasil entrou na rota dos shows internacionais” foi tão repetido que parou de ser dito – e isso também diz respeito ao mercado de médio porte. O termo indie tornou-se uma hashtag qualquer e está tão próximo da música quanto da publicidade e da moda – e a vinda do Built to Spill para o Brasil por algum motivo ainda parecia ser uma utopia distante.
Quando aconteceu, em 2018, lavou a alma dos poucos fãs que nos anos 90 esperavam por aquele momento. Ainda tive a felicidade de assistir à passagem do grupo por Belo Horizonte, cidade que pode ser considerada um marco zero deste movimento, uma vez que sediou o mítico BHRIF, trazendo o Fugazi pela primeira vez ao Brasil em 1994, e também era a cidade onde funcionava a produtora Motor Music, que trouxe vários indies no Brasil no final do século passado, de Jon Spencer Blues Explosion a Superchunk, passando por Stereolab, Yo La Tengo e Tortoise, semeando as sementes que germinaram este enorme pomar que é esta cena atualmente.
Assisti ao show ao lado do próprio Martsch, do lado do palco do impressionante casarão que é o Automóvel Clube da cidade, e do querido Marcos Boffa, que há vinte e cinco anos realizou o BHRIF para fundar pouco depois a própria Motor ao lado do Jeff e da Fernanda. Foi neste momento que várias fichas caíram: na bateria do Built to Spill estava Lê Almeida, da heróica Transfusão Noise Records e do Escritório, dois focos de resistência cariocas do faça-você-mesmo; o Built to Spill era o headliner do festival Música Quente, do Marcelo Salgado, que vi começando a carreira nos tempos em que a onda era ter um blog; o show estava vindo para o Brasil graças à produtora Powerline do Leandro “Emo” Carbonato, que também vi começando a trabalhar na Trama Virtual para depois aprender a trazer bandas gringas para o Brasil quando esteve no Clash – e por aí foi. Juntando aqueles vários elementos na cabeça enquanto ouvia um guitar hero indie debulhar seu instrumento em solos intermináveis me deu a sensação de que uma etapa havia sido cumprida e a música no Brasil já estava mesmo em outro patamar em relação ao resto do mundo. Mesmo quando estamos falando apenas em indie rock, que parece ser a descrição de um gênero frágil e arrogante ao mesmo tempo, mas que na verdade resume um jeito de fazer as coisas, mesmo em tempos de crise.
O Guia da Folha me convidou para votar nos três melhores shows internacionais que fui este ano em São Paulo – votei no Radiohead, Nick Cave & The Bad Seeds e Roger Waters, nesta ordem -, mas no cômputo geral do júri escolhido (que ainda contava com a Fabiana Batistela, o Thiago Ney, o Rafael Gregório e o Thales de Menezes) deu Nick Cave.
Na última coluna Tudo Tanto de 2018, conversei com a Roberta Martinelli, que realizou o espetáculo Acorda Amor junto com o baterista Décio 7 e reuniu Maria Gadú, Liniker, Luedji Luna, Letrux e Xênia França para interpretar canções da história da música brasileira que ecoam esta fase pesada que estamos vivendo nestes anos – e que deve virar disco (além de mais shows) em 2019. Leia a coluna lá no Reverb.