A partir da próxima quarta-feira começo mais um curso sobre música brasileira, desta vez em parceria com o Sesc Av. Paulista. Durante seis aulas, História Crítica da Música Brasileira repassa nosso consagrado cânone questionando escalões, hierarquias, apagamentos e sumidades ao comparar a história desta manifestação cultural e como ela passa para a posteridade. Em três semanas, sempre às quartas e sextas, das 19h às 21h30, repasso como essa transformação acaba moldando nosso entendimento do que é bom e o que é ruim, o que é representativo ou não e até mesmo o que seria essencialmente brasileiro dentro deste novo contexto. Para isso, convoquei os pensadores e agitadores culturais Rodrigo Faour, Pérola Mathias, Bernardo Oliveira e Rodrigo Caçapa, cada um deles especializado em um aspecto específico desta trajetória, para discutir como parâmetros como classe social, raça, gênero, orientação sexual e distâncias geográficas acabam determinando não apenas o sucesso comercial de cenas inteiras como sua posterior classificação – ou desclassificação – histórica. As inscrições para o curso já estavam abertas para quem tinha a credencial plena do Sesc e agora as vagas estão abertas para todos neste link – por isso, quem chegar primeiro leva. Abaixo, a ementa do curso e a divisão sobre quem fala sobre o que em casa uma das aulas.
“A gente tinha a semana da pátria para fazer uma programação musical e a ideia era discutir um pouco sobre o significado dessa semana e aí a gente pensou muito nessa onda de falso patriotismo que ganhou voga nos últimos anos, a gente sabe porque, e então eu pensei em algo que antagonizasse muito com isso, que é o movimento punk”, explica o responsável pela programação de música do Sesc Av. Paulista, Fernando de Lima, sobre a origem do festival 1, 2, 3, 4 – O Punk Segue Muito Vivo, que acontece na unidade entre os dias 6 e 11 de setembro – e à exceção do feriado do dia 7, o palco no 13° andar recebe exponentes de diferentes fases do punk brasileiro, do In Venus ao Devotos, passando pelo Flicts, Mercenárias, Charlotte Matou Um Cara, Ratas Rabiosas, Black Pantera e Mercenárias.
“O punk e o anarquismo fazem um contraponto bom a esse movimento estranho que a gente tem nos últimos anos e faz a gente refletir sobre o significado de país e de tudo mais”, continua o programador, que reúne dois shows por dia em cada uma das datas – e cada show tem sua leva de convidados, engrossando a genealogia do movimento no Brasil. ““Na hora de escolher as bandas, a primeira coisa que a gente pensou foi no encontro de gerações. E não é só dos pioneiros com a molecada que está fazendo agora, mas também uma geração intermediária muito interessante que, nesse caso, é representada pelos Devotos e pelo Flicts, bandas dos anos 90 que seguraram a onda do punk nessa década”. Entre os convidados, nomes como Jonatta Doll, Edgard Scandurra, Rodrigo Lima (do Dead Fish), Lê (Gritando HC), Ariel (Restos de Nada), Iéri (Bulimia), entre outros. Mais informações sobre o festival abaixo (e no site do Sesc).
E que saudade que eu tava de assistir a Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo ao vivo, principalmente após acompanhar pela internet a longa turnê que o grupo fez pelo Brasil no primeiro semestre (quase 20 cidades!). E no show que fizeram no Sesc Av. Paulista lançando seu primeiro vinil (pelo selo Amigues do Vinil) nessa sexta não apenas passearam pelos hits de seu primeiro disco, como apresentaram várias músicas novas – e ainda chamaram Lucinha Turnbull para acompanhá-los em uma das músicas. É sempre bom!
Muito bom o papo que o Sesc Avenida Paulista puxou nesta quarta-feira, ao convidar Thiago Torres, o Chavoso da USP, o Dayrel Teixeira dos Funkeiros Cults e o Thiago de Souza, do Canal do Thiagson, para a mesa Funk na Cabeça – Desconstruções a Partir do Gênero. O evento, gratuito, reuniu tanta gente que no começo da noite, que só restou ao Sesc abrir as portas da discussão para todos em vez de simplesmente impedir a entrada das pessoas – e tudo correu muito tranquilamente. Como puxava o tema, os três discorreram sobre como o funk foi, nos três casos, uma forma de contato com a questão do racismo estrutural do país, do embranquecimento forçado que criou a categoria “pardo” na escala de preconceitos por aqui, da higienização do funk para ser cooptado pelo sistema, do papel da universidade na biografia dos três e como o próprio sistema educacional funciona para restringir o acesso à educação, além de referências contínuas à aula magna proferida pela professora Sueli Carneiro no programa de entrevistas de Mano Brown. Foi muito bom ver a grande maioria dos presentes levantando a mão quando @chavosodausp perguntou quem era da quebrada. Uma discussão valiosíssima que poderia ir muito além das duas horas propostas pela instituição e que deveria estar mais presente quando falamos sobre cultura brasileira.
Tanto o Guia da Folha quanto o Divirta-se do Estadão me chamaram para votar nos meus shows brasileiros favoritos de 2019 – e o critério que usei foi não incluir os shows que pautei tanto no Centro da Terra quanto no Centro Cultural São Paulo. Assim, cheguei a estes três shows: Alessandra Leão no Auditório Ibirapuera, Thiago França convidando Tony Allen no Sesc Pompéia e Ana Frango Elétrico no Sesc Av. Paulista.
Alessandra Leão @ Auditório Ibirapuera
24 de outubro de 2019
“A percussionista pernambucana nos convida a uma viagem pela hisatória da música brasileira através do terreiro que é seu disco Macumbas e Catimbós.”
Thiago França + Tony Allen @ Sesc Pompeia
22 de março de 2019
Um embate entre dois pesos pesados do groove – um no sax e outro na bateria – que logo se transformou em uma nave espacial para a quinta dimensão.
Ana Frango Elétrico @ Sesc Av. Paulista
18 de outubro de 2019
Mutante hipster vintage bossa nova é o disfarce da vez da poeta, produtora e musicista carioca.
Quando Tika e Kika me procuraram para contar que estavam se transformando numa dupla, minha reação deve ter sido parecida com a da maioria das pessoas e cogitei que a aproximação vinha apenas da sonoridade dos nomes únicos e rimados das duas cantoras. Mas a aproximação das duas mostrava camadas que iam para além do jogo de palavras do novo nome artístico e como elas se complementavam: multiinstrumentistas, professoras de canto e de formação clássica, elas também cuidam dos aspectos executivos das próprias carreiras elas mesmas – Kika, melodista de raiz reggae, construiu sua reputação ao compor dois discos deliciosos (Pra Viagem e Navegante), enquanto Tika, de voz clara e timbre macio, reuniu diferentes convidados em seu disco de estreia, Unwritable. Propus uma temporada com as duas no Centro da Terra há quase um ano e a temporada chamada Colar agora gera seu primeiro fruto, quando elas lançam o single “Onda de Amor”, que quiseram aqui no Trabalho Sujo, que apresentam ao vivo nesta quinta-feira, no Sesc Avenida Paulista (mais informações aqui). O single foi produzido por Fabio Pinczowski e o show terá as participações dos músicos Lenis Rino, Igor Caracas e Pipo Pegoraro, todos convidados da temporada que gerou a dupla.
O Mídia Tática Brasil deu início aos seus trabalhos nesta sexta, 7 de março, com uma mesa redonda histórica – literalmente. Afinal, foi a primeira vez que duas forças antagônicas do pensamento pós-eletrônico se encontraram pessoalmente: de um lado, o americano John Perry Barlow, vice-presidente da Electronic Frontier Foundation e autor Declaração de Independência do Ciberespaço; do outro o inglês Richard Barbrook, do Hypermedia Resource Center e autor do Manifesto Cibercomunista. Só isso bastaria para a noite no Sesc Avenida Paulista ser rotulada com o adjetivo citado no início, mas se levarmos em consideração que tal encontro aconteceu no Brasil, num evento de natureza inédita por aqui e com a chancela do governo federal, podemos crer que as implicações são muito mais profundas do que em qualquer outra circunstância – especialmente para nós, brasileiros.
Mas o que deveria ser um embate de forças e idéias, tornou-se um motivo para ambos defenderem seus pontos de vista ao mesmo tempo que espezinhavam-se mutuamente. Tirando todo o debate ideológico e informacional, o que se assistia era à velha arenga entre ingleses e norte-americanos: um acusava o outro de ser radical demais, caricato demais, previsível e ingênuo demais. Cada um à sua maneira: Barlow exibindo aquele showmanship ianque que substitui o carisma por uma arrogância sarcástica [“De onde eu venho, do Wyoming, ser chamado de stalinista é um insulto”, depois que Barbrook apenas citou o stalinismo como parte do cânone do comunismo]; Barbrook arregalando os olhos à cada declaração de efeito do americano, engolindo gargalhadas em tom de desprezo e cuspindo sua franqueza britânica como o punk acadêmico que é [“Deus me perdoe por concordar com John Barlow”, disse antes de concordar com o óbvio de uma proposição do público – que a fome seria um problema mais urgente que a inclusão digital]. O clima tenso e animoso era cortado pelas piadas populistas de Barlow e pelos comentários irônicos de Barbrook.
Sentado na ponta à esquerda da mesa, Barlow é, fisicamente, o que aconteceria com Chuck Norris se ele se tornasse pastor evangélico de TV. Sua atuação era puro showbusiness, naquele tipo de entonação “como eu sou foda” que o Jô Soares faz para agradar sua claque. Parte do público [auditório lotado, gente em pé e nos corredores], deslumbrou-se com o papo furado caubói: “Fiz parte de uma banda, que não é muito conhecida aqui no Brasil… O Grateful Dead”, “Eu coloquei o Timbuktu online”, “Não fui a Davos este ano”. Jocoso, defendia o ciberespaço como um fim em si mesmo, um universo paralelo que deve adequar-se à realidade offline.
Já Barbrook, no canto direito, parecia uma cruza de Ken Kaniff [um dos personagens sórdidos do Eminem] com um dos caras do Madness. Chapeuzinho de palha e blaser um número menor, movimentava-se constantemente durante o discurso de Barlow. Dirigia-se rispidamente ao microfone, falando em tom sério quando apresentava os conceitos de sua Gift Economy e mostrava esgar ao discordar do que seu colega de mesa propunha. Insistia constantemente que não há diferença entre o ciberespaço e a vida real, que um é apenas a projeção do outro; enquanto Barlow filosofava sobre um ser como a mente [o ciberespaço] e outro como o corpo [a realidade].
Ficaram trocando farpas, Barbrook se referindo à Barlow como neoliberal e Barlow chamando Barbrook de nervosinho. Mas não deixa de ser notável o fato de Barlow reduzir a internet à lógica capitalista, desprezando conceitos fundamentais da rede em prol de opiniões controversas como “se a Internet fizesse alguma diferença, eu estaria preso” [como disse ao Pedro Dória, do Nomínimo]. Barbrook contrapôs-se de imediato: “Se a internet não fizesse diferença, eu não estaria aqui”.
Parêntese para o ministro: Gil, que mediava o debate, no centro da mesa, veste bem o traje de ministro da cultura, mostrando-se desenvolto para abordar as ramificações da discussão, todos parentes do tema central, inclusão digital. Mais do que isso, traçou paralelos didáticos a respeito de proteção de patentes e direitos autorais eletrônicos e aproveitou uma deixa para registrar em público sua opinião sobre a reforma da previdência [“se formos nos basear em direitos adquiridos, a escravidão não teria acabado”].
Constantemente bilíngüe [brasileiramente britânico], mostrou-se um tanto equivocado sobre alguns conceitos [não é possível chamar de “ciberanarquista” um sujeito que defende o direito de propriedade [como se referiu a Barlow], nem dizer que “o capitalismo deu certo” em mais de 200 anos e “o comunismo deu errado em menos de 80”]. E, claro, aproveitou o microfone para cantarolar [“vestiu uma camisa listrada e saiu por aí…”, cantou à menina de camisa listrada que recolhia as perguntas do público], o que eu, pessoalmente, acho do caralho. Mídia tática é isso aí.
Mas se como ministro Gil foi correto, o mesmo não pode se dizer de sua atuação como mediador. Descaradamente puxou a sardinha pro lado de Barlow, a quem servia de anfitrião na semana passada. Os dois trocavam elogios como velhos camaradas e em alguns momentos o ministro deixou escapar o desprezo por alguns conceitos de Barbrook. Mesmo na mediação propriamente dita, quando se dirigia aos dois a fim de confrontar algum tema, virava o corpo para o lado de Barlow e terminava o debate concordando com o amigo. Não deixa de ser irônico o fato de Gil ter passado boa parte do debate voltado para a direita.
Fossem apenas as inconveniências ideológicas dos gringos, até passaria. Mas Gil falhou ao não estender o debate aos outros presentes: Danilo Miranda, do Sesc; João Cassino [que veio no lugar de Beá Tibiriçá], dos Telecentros, Ricardo Rosas, da organização do Mídia Tática, e Evandro Prestes, do Online Cidadão, apenas comentaram em uma ou outra oportunidade.
O debate ficou mais tenso quando recorreram ao tema da pirataria – Barbrook levantando a bandeira preta ao aplaudir a pirataria como vitória do povo sobre as corporações; Barlow baixando o polegar ao simplificá-la como crime organizado. Levantou-se a questão sobre a troca de arquivos via internet, que acabou respingando em Gil que, ao ser confrontado por uma pergunta do público que pedia a opinião sobre do ministro sobre o assunto, “como integrante da indústria fonográfica”. Encurralado, mostrou o crachá: “Eu, como ministro, tenho que defender a lei, o estado de direito”, safou-se, salientando que, no entanto, as leis precisam ser revistas devido à mudança dos meios.
Interessante observar que, a despeito de suas posições o ciberespaço em relação à realidade, os textos-chave de John e Richard proclamam seus conceitos básicos usando paralelos com o mundo real: Barlow emulou a Declaração da Independência de seu país, Barbrook o célebre Manifesto Comunista escrito em Londres por Karl Marx e Friedrich Engels. Ambas analogias são conservadoras e reacionárias [mesmo que Barbrook tenha usado sua referência ironicamente], nenhuma vislumbra um texto-chave a partir de uma base nova e eletrônica – nada de paralelos com o morto-vivo universo da palavra impressa.
O debate terminou como o fim de uma guerra de nervos: sem conclusão, conceitos em aberto, os participantes virando-se para lados diferentes. Mas vale sublinhar aqui a experiência descrita por Evandro Prestes, do Online Cidadão, que não apenas ilustra o papel do Brasil na nova cultura eletrônica, como prova que o uso da cultura como intermediação dos conceitos de tecnologia e liberdade pode ser a saída mais eficaz para este embate. Ele contou como a grande maioria da população que não é familiarizada à internet se sente desconfortável com as regras impostas pelo computador, deixando pouco espaço para a intuição. Até que ele encontrou um sujeito feliz, passeando pelas páginas, clicando nos links, abrindo novas janelas, pulando de site em site. Entusiasmado, começou a conversar com o novato internauta que, ao perguntado sobre o que ele estava lendo, respondeu, sem pestanejar, que não sabia ler. O fato, que fez a maioria dos presentes na palestra apiedar-se do caso citado, no entanto foi encarado de outra forma por Cassino: “Ele estava desenvolvendo todo o deslumbre, o lado lúdico, e entusiasmado com o universo do computador”, coisa que os outros não conseguiam – pois têm dificuldade de ler. E, alfinetando não apenas o ministro presente como o público do debate, concluiu que “inclusão digital também é para vocês, da cultura”. Ao tratar a cultura como algo alheio a seu universo, Prestes mostrou o imenso abismo no debate eletrônico brasileiro – e, ao mesmo tempo, jogou a corda para o outro lado, disposto a construir a ponte. O lance é saber se alguém vai pegar.