Tudo Tanto #33: Você samba de que lado?

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Escrevi sobre a onipresença do samba, este fator de unificação nacional, na minha coluna Tudo Tanto na edição de julho da revista Caros Amigos.

Você samba de que lado?
Cem anos depois, o gênero que ajudou a disfarçar o racismo brasileiro e a unificar o país como nação sobrevive à espreita

Alexandre Matias

Essa cena: “Por volta das nove da noite, cerca de 150 homens, funcionários da prefeitura municipal, municiados de marretas, alavancas e pé de cabra, obedeceram à voz de comando e arremeteram contra o alvo. O bruxulear dos archotes usados para iluminar a operação militar conferia maior dramaticidade à cena. Uma multidão, contida ao largo pelo contingente armado, assistia à distância, como um espetáculo sinistro, a destruição madrugada adentro. O elemento surpresa impediu possíveis reações organizadas por parte dos desalojados. Em meio à barulhenta penumbra, homens, mulheres e crianças, antes encafuados nos desvãos dos pequenos imóveis, corriam atônitos pelas ruelas tentando salvar um ou outro pertence tido como mais valioso: colchões, alguns poucos móveis, trouxas de roupa, tralhas de cozinha. Na manhã seguinte, no entanto, sob o sol do verão carioca, foi possível constatar o tamanho do estrago: nada escapara à demolição. Resto, no local, apenas uma montanha poeirenta de entulho.

‘Foi um espetáculo bonito’, definiu um dos jornais de maior circulação à época, O Paiz. ‘A impressão moral daquele feito era como se aos golpes ruidosos, em vez de rolarem pedras, rolassem crenças, ruíssem tradições’, analisou o matutino. Outra publicação, O Tempo, foi mais explícita: ‘Metemos uma lança em África, espostejando a Cabeça de Porco’. A imprensa foi unânime em glorificar a ‘medida civilizatória’ imposta à paisagem da cidade pelo primeiro prefeito da história do Rio de Janeiro, Cândido Barata Ribeiro, médico e intelectual baixinho, magricela e míope, de testa larga e barbas longas, um dos nomes mais proeminentes do movimento republicano brasileiro.

Essa cena aconteceu no dia 26 de janeiro de 1893 e foi recriada pelo escritor cearense Lira Neto, biógrafo de Getúlio Vargas e do Padre Cícero em dois grandes épicos (os três volumes de Getúlio e o tomo único Padre Cícero – Poder, Fé e Gueera no Sertão), como um dos momentos iniciais de seu novo desafio, contar “a história do samba moderno urbano”. O livro Uma História do Samba – As Origens foi publicado no início do ano pela Companhia das Letras (editora dos outros livros do autor) é o início de uma nova trilogia, que pretende mostrar como o gênero, que antes ser estilo musical era sinônimo de festa, barulho e confusão no final do século 19, firmou-se entre a elite e as classes populares brasileiras, saiu do submundo onde era tratado como fora da lei e tornou-se popular a ponto de se tornar um fator de unificação nacional.

Lira Neto na verdade joga uma lupa sobre o tal “mistério do samba”, iluminado pelo antropólogo Hermano Vianna no livro de mesmo nome, lançado em 1995 pela editora carioca Jorge Zahar. Neste volume, Hermano parte de um “noite de violão” em 1926 que reuniu, sob o mesmo teto, os sociólogos Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda (ambos já matutando ideias que paririam os dois livros que os tornam clássicos da cultura brasileira, respectivamente Casa Grande e Senzala, de 1933, e Raízes do Brasil, de 1933), o músico Heitor Villa-Lobos e os sambistas Pixinguinha, Patrício Teixeira e Donga. “O encontro”, título do primeiro capítulo da publicação, é o ponto de partida para entender como o samba deixou de ser criminoso e maldito para se tornar aceito, amado e entrado na textura da noção de nacionalidade brasileira.

Pois o samba era vil, visto como sendo de mau gosto, chulo, fora da lei – “eufemismos” dados para o ponto central da questão: o samba era negro. A recente abolição dos escravos obrigou a elite brasileira a conviver com os ex-escravos sem a hierarquia do regime escravocrata e a solução para continuar esta ascendência era enquadrá-lo em outra lei – a da vadiagem. Sambistas eram negros, negros eram sambistas: o samba, portanto, era diagnóstico de que algo não estava bem – para a elite, essencialmente racista.

A cena descrita no início do texto não é apenas pesada – ela é atual. Fora a iluminação policial (embora lanternas no escuro deem tanta dramaticidade quanto archotes), a destruição do enorme cortiço conhecido como Cabeça de Porco ou Pequena África no Rio de Janeiro é das inúmeras “reintegrações de posse”, neologismo orwelliano para aplacar o impacto real da situação, em que famílias inteiras veem seus lares sendo devastados pela truculenta força militar para que abram-se alas para o progresso. Quantos morros, favelas e quebradas não sucumbiram a esse trator racista durante todo o século passado – até hoje?

Mas impressiona mesmo a reação aberta contra as origens africanas de uma nova cultura popular. Vianna descreve a chamada “belle époque carioca, período no qual muitos autores identificavam uma total separação entre a cultura das elites e a cultura popular no Rio de Janeiro”, em seu Mistério do Samba. “Essa é, por exemplo, a opinião de Jeffrey Needell, para quem na belle époque ‘tropical’, que vai de 1898 a 1914, a tendência dominante era de ‘pôr um fim ao Brasil antigo, ao Brasil ‘africano’, que ameaçava suas pretensões à sofisticação, apesar de se tratar de uma África bem familiar à elite’ (Needell, 1993: 77). Essa também é a opinião de Mônica Velloso, que escreve em As Tradições Populares na Belle Époque Carioca: ‘o endeusamento do modelo civilizatório parisiense é concomitante ao desprestígio das nossas tradições (…) Mais do que nunca, a cultura popular é identificada com negativismo, na medida em que não compactuaria com os valores da modernidade’ (Velloso, 1988: 8/9). E continua: ‘Nos salões da moda, nos cafés e conferências literárias, a referência ao nativo atinge o máximo de desqualificação’ (Velloso, 1988: 17).”

Um país racista que disfarçou seu racismo glorificando uma música (e uma cultura) antes tida como pobre e negra. O racismo brasileiro não pode ser dito – afinal, todos sambam.

E mais de um século depois o samba persiste, seja como trilha sonora de comercial de cerveja, no palco globa do carnaval e em nichos como o novo disco de Criolo (Espiral de Ilusão, dedicado ao gênero), no novo de Rodrigo Campos (Sambas do Absurdo, ao lado de Juçara Marçal e Gui Amabis), o heróico reconhecimento póstumo de Almir Guineto na Folha de S. Paulo (descrito pelo Bernardo Oliveira, do selo Quintavant) ou na celebração dos vinte anos do disco Afrociberdelia, da Nação Zumbi, que repete insistente a pergunta sobre “de que lado você samba?”. Ele sobrevive matreiro, à espreita, pronto para chegar. E sempre chega.

Quando Jaki Liebezeit caiu no samba

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Há dez anos, o recém-falecido baterista do Can Jaki Liebezeit sambava com os DJs J-Rocc, DJ Nuts e Madlib e os bateristas João Parahyba e Mamão, do Azymuth, numa jam session percussiva provocada pelo diretor irlandês Brian Cross em Colônia, na Alemanha, ao divulgar seu projeto Brazilintime, que reunia bateristas e DJs brasileiros.

A foto saiu deste Flickr.

Seu Catra

Quem conhece Mr. Catra sabe que ele é um dos vocalistas mais versáteis do Rio de Janeiro – flui tranquilamente do raggamuffin’ ao charm, passando pelo soul e pelo funk mais pesado. Seu apreço pelo samba, no entanto, é desconhecido da maioria das pessoas – e ele vem resolver essa questão lançando um disco inteiro dedicado ao gênero, chamado Com Todo Respeito Ao Samba.

Como disco de samba não acrescenta muito ao gênero, mas é uma clara prova de que Catra quer tirar seu troco também do público que curte o samba genérico de Seu Jorge – e ele não faz feio. Tem mais duas músicas aí embaixo, saca só:

 

Hoje no Prata da Casa: Maíra Freitas

Quem encerra a programação do Prata da Casa de julho é a Maíra Freitas, pianista de primeira, que fica entre a música instrumental, o jazz, a bossa nova e o samba. O show começa às 21h, no Sesc Pompéia, e os ingressos começam a ser distribuídos uma hora antes. Abaixo, o texto que escrevi para o show dela.

O samba sempre esteve associado a instrumentos de corda (como violão ou cavaquinho) e percussão, mas o piano nunca foi um parente distante – afinal ele é, essencialmente um instrumento de cordas e de percussão e foi através dele – e do violão de João Gilberto – que o gênero transmutou-se na bossa nova. Maíra Freitas, pianista de formação clássica, lembra desta conexão ao dividir o holofote entre seu instrumento e sua bela voz, que apesar de nos remeter para as praias cariocas dos anos 60, também nos envia tanto para o samba de roda quanto para os antigos sambas-enredos, influências que vieram do berço, uma vez que seu pai, Martinho da Vila, revolucionou ambas searas. Sua abordagem, no entanto, é quase de câmara, como pede sua formação original. Mas isso não deixa o calor do gênero de fora, nem o suíngue macio que escorre entre seus dedos, pelas canções.

“Billie Jean”: A volta do Molejo

Eu nem sou dessa geração que curte ironicamente esses pagodes dos anos 90 (sou dos tempos do sambão-jóia), mas essa volta do Molejo não dá pra passar batido…

“Depois é só filmar e botar na internéte!”

“Lotus Flower” ziriguidum

Erasmo Carlos e o samba-enredo para Roberto Carlos

Não sou desse papo de escola de samba, mas essa tive de sublinhar: o tema do desfile da Beija-Flor no ano que vem é Roberto Carlos e os caras conseguiram ninguém menos que o Erasmo pra escrever o samba-enredo, chamado “A Simplicidade de um Rei”. E pra quem estranhar: Erasmo é tão do rock quanto do samba – e nos anos 60 dividiu apartamento com Jorge Ben aqui em São Paulo…

Grêmio Recreativo Unidos de Lost

Lendas e mistérios do misterioso “Lost”
(samba de João João Abrão e Jacó da Cuíca)

Olha a União da Ilha Esquisitona aí, genteeeee!

Numa ilha gloriosa
Lá no meio do oceano
Uma energia majestosa
Existia há muitos anos
E foi lá, ah, foi lá
Que Jacob e seu irmão
Viveram tempo pra cacete
Para um era prisão
Para o outro, palacete
(bis)
Para um era prisão
Para o outro, palacete

Muito tempo se passou
Nessa ilha tropical
Veio barco com o Richard,
Veio a Dharma e o escambau
Jacob juntava a turma
Fumacê fazia o mal

Mar, misterioso mar,
O Jacob quer ficar
Fumacê quer se mandar
Realidade paralela
Deslocamento temporal
Só quem explica “Lost”
É samba de carnaval

E então num belo dia
Um avião caiu ali
Tinha Jack, tinha Sawyer,
John Locke, Kate e Sayid
Tinha coreano e africano
Iraquiano e inglês
Australiano e chicano
E até um que era francês
Na ilha misteriosa
Cheia de enigma fenomenal
Urso polar e alçapão
E gente morta de montão
Que legal, que legal!

Jack saiu da ilha
Mas não teve felicidade
Fumacê entrou no Locke
Pra poder fazer maldade
Viagem no tempo
Universo paralelo
Nem Maurício de Nassau
Me explica esse flagelo
Tinha uma rolha lá na ilha
Que o Jack quis tirar
Fumacê ficou uma pilha
Pois a trolha ia afundar
E todo mundo estava morto
E não adianta reclamar

Mar, misterioso mar,
O Jacob quer ficar
Fumacê quer se mandar
Realidade paralela
Deslocamento temporal
Só quem explica “Lost”
É samba de carnaval

Coisa do Aran.

Lady Gaga no samba-rock

Ainda na praia da infâmia e dos mashups, essa “Papparazi” no samba rock ficou bem, er…, “suave”, hein. Culpe o Thiago Correa, puro feeling.


Lady Gaga – “Paparazzi (Samba Rock remix)

“Querendo comprar samba, você está maluco?”

“Um dia apareceu lá no morro o Mário Reis, querendo comprar uma música. Estava com outro rapaz, que veio falar comigo. ‘O Mário Reis está aí e quer comprar um samba teu’. Fiquei surpreso: ‘O quê? Querendo comprar samba, você está maluco? Não vendo coisa nenhuma’.

No dia seguinte ele voltou e me levou até o Mário Reis. Ele confirmou. ‘É, Cartola, quero gravar um samba seu. Fique tranqüilo, seu nome vai aparecer direitinho. Quanto você quer por ele?’ Pensei em pedir uns 50 mil réis. O outro rapaz falou baixinho: ‘Pede uns 500 mil’. Eu disse: ‘Você está louco, o homem não vai dar tudo isso’.

Com muito medo, pedi os 500 mil. Em 1932, era muito dinheiro. O Mário Reis respondeu: ‘Então eu dou 300 mil réis, está bom para você?’.

Bom, ele comprou o samba mas não gravou. Quem acabou gravando foi o Chico Alves.”

O Juliano pinçou a declaração acima, do Cartola, para falar um pouco sobre as transformações que aconteceram no mercado da música durante o século vinte e que agora parecem retomar seu curso original. Ele continua:

O Mário Reis, que se oferece para comprar o samba, aparentemente já está vivendo dentro da lógica das emissoras de rádio e da indústria nascente do disco. Para ele, faz sentido o processo artificial que tornou escasso um produto informacional e portanto naturalmente abundante.

Mário Reis inclusive menciona indiretamente o princípio que justifica o comércio de bens informacionais. Ele diz: “fique tranquilo, seu nome vai aparecer direitinho” e o que está por trás motivando essa preocupação é o direito de autor, a solução jurídica que dá a base para que esse modelo de indústria criativa cresça, permitindo que criativos profissionais vivam de sua produção.

A cabeça do Mário Reis é a que olha para o compartilhamento de músicas na rede e enxerga a contravenção, a pirataria, mas a do Cartola mostra como a coisa não é definitiva, como não existe uma verdade absoluta no posicionamento das gravadoras, que a motivação tem a ver não com a Justiça, mas com regras e hábitos que durante muitos anos sustentaram uma determinada indústria.