Ruído/mm – Rasura
Um dos melhores discos brasileiros do ano está vindo aí. Rasura é quarto disco da banda curitibana Ruído/mm (lê-se “Ruído por milímetro”) e os consagra não apenas como principal representante de uma cena de música experimental instrumental dentro do rock independente brasileiro como também como uma banda estabelecida no cenário nacional, mesmo que desconhecida do grande público. Menos introspectivo e mais guitarreiro que o disco anterior (o incrível Introdução à Cortina do Sótão, de 2011), Rasura ainda flutua no éter da pressão da microfonia, contrapondo calma e barulho como elementos não necessariamente opostos. O grupo está soltando o disco aos poucos, já liberou a faixa “Cromaqui” e agora descola “Transibéria” aqui pro Trabalho Sujo, ouça:
O novo disco será lançado no próximo sábado, dia 27, num show no Sesc da Esquina de Curitiba, nos formatos digital (download gratuito pelo selo paulistano Sinewave ou pelo Bandcamp, em que o ouvinte pode pagar pelo download – e ganhar bônus por isso), CD e, mais pra frente, em vinil, o que garantirá toda a glória desta colagem feita pelo designer Mario de Alencar, que assina essa capa incrível:
A banda é formada pelos guitarristas André Ramiro e Ricardo Pill, o baterista Giovani Farina, o pianista Alexandre Liblik e pelo novato mulltiinstrumentista Felipe Ayres, além do baixista Rafael Panke, que conversou comigo por email.
Fale mais sobre esse amadurecimento do Ruído. Vocês já têm um próprio som definido ou é algo em mutação constante?
O Ruído é uma entidade com vontade própria. Não importa quem a esteja incorporando no momento, sempre será conduzido por uma intuição estranha, como que guiado por vozes. Cada desertor deixa um pouco de sua essência e leva um pouco do zumbido com ele. Percebemos para onde estamos sendo levados, mas não há nada que possamos fazer quanto a isso: escolhas, discussões, livre arbítrio, definições… O grande espírito ri. Às vezes, depois de muito tempo buscando determinado resultado, acabamos chegando lá por caminhos não antecipados. Outras, quando achamos que finalmente compreendemos a mecânica da construção… puf! O absurdo se revela e nos vemos às voltas com o imponderável outra vez. Aceitar isso foi o pulo do gato preto.
Uma vez ouvi que “o artista que sabe o que está fazendo é medíocre”. Não sei se concordo totalmente com isso, mas é uma grande frase de efeito. Se formos nos pautar por essa máxima, o ruído está fazendo do jeito certo.
O que vocês mais ouviram durante a gravação e composição desse disco? O que foi referência em termos de composição e de produção?
Usamos a coqueteleira de sempre, apenas dosando os ingredientes de forma diferente. Um pouquinho menos de Satie, um pouco mais de Yo La Tengo. O bom e velho Morricone continua lá, mas apertando forte a mão do Kevin Shields e do Lee Ranaldo. O piano não está tão proeminente nas composições quanto estava no nosso trabalho anterior, e essa opção permitiu ao Liblik explorar toda sua versatilidade com outros timbres, dos clássicos Wurlitzer e Hammond aos sintetizadores mais fritos. Temos muito mais camadas de guitarras desta vez, também.
Em questão de produção, eu tinha uma intenção vaga de aquecer o som; eu queria que o disco soasse honesto, mais parecido com a gente ao vivo: guitarras garageiras gritando, o piano e os synths bem quentes, a batera com muito som de sala e a coisa toda com bastante ambiência. Transportar o ouvinte praquele mesmo lugar/lugar nenhum, praquele momento fora dos momentos. As coisas foram feitas com muita minúcia e atenção, mas como eu disse anteriormente, a pajelança ruidosa incorpórea não nos permite tomar as rédeas da coisa totalmente. O disco foi se moldando a si mesmo diante de nós, observadores aparvalhados, e chegou a esse resultado como que por vontade própria.
Como anda a cena de rock experimental brasileira? Vocês se encaixam em alguma cena? Se sim, ao lado de que outros artistas?
Temos muita afinidade com o pessoal do Constantina, do Herod, do Labirinto, do Kalouv… mas apesar de curtirmos e nos identificarmos, é raro conseguirmos tocar juntos ou interagir fora da internet. Isso sim constituiria uma “cena” da forma tradicional, certo? Mas as grandes distâncias e a pouca grana para promover eventos impedem isso.
Por outro lado, há um sentimento de pertencimento, sim, e a Sinewave é o vetor disso. Eles têm feito um trabalho incrível de curadoria, descobrindo, reunindo e lançando bandas experimentais de todo o Brasil. No fim, estamos todos juntos numa grande hive mind.
Como Curitiba se reflete no som da banda?
Na dicotomia complementar entre a introspecção caseira e o boteco inferninho, creio eu. Na nossa casa, no vento frio na janela; nas quatro estações num mesmo dia; no bafo dum porão lotado ou num conhaque queimando o peito.
O Petit Pavé da Rua XV e os bêbados da Trajano Reis estão tatuados em nossas vesículas.
Vendo de fora, percebo a cidade está passando por uma nova transformação, incluindo culturalmente. O que você acha?
Não sei… de dentro, é difícil dizer; não dá pra dar um passo atrás e ver o quadro maior. O que pode ser dito é que, no que diz respeito à produção da música dita alternativa, Curitiba está está sempre borbulhando. A coisa se transmuta, cresce e encolhe, se estica, solta vapor e não pára de se mexer. Todos sempre atentos, esperando pra ver se não nasce um grande monstro voador dessa gosma inquieta.