13 de 2013: Às ruas!

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13 de junho de 2013: mais um protesto em São Paulo organizado pelo Movimento Passe Livre e muitos olhos fixos no que estava acontecendo, pessoal ou virtualmente. Havia algo no ar, era táctil – aquela noite não seria uma noite comum e não apenas por sediar uma nova manifestação. Os dois jornais da cidade haviam dado o recado para a PM em seus editoriais – tinham que “retomar a Paulista” pois chegara a “hora do basta” -, o que poderia ser entendido como “podem baixar o sarrafo nesse bando de vagabundo protestando e quebrando vitrines que a gente faz vista grossa”. Queria ter ido pra rua, mas estava no fim do fechamento da edição de julho da Galileu e não tinha outra alternativa a não ficar na frente do computador, esperando as últimas páginas da revista chegarem para finalmente sair do trabalho (algo que não aconteceu antes da meianoite). Mas à medida em que a coisa começou a ficar feia e tornou-se claro que a violência policial era regra e não exceção, fiz minha parte, como milhares de outros: comecei a distribuir links de vídeos e de comentários de quem estava na rua para o resto da internet. Logo logo começavam a me enviar links quando viram que meu foco online estava em cima disso e minha audiência foi crescendo consideravelmente – até OEsquema saiu do ar porque não aguentou a nova leva de acessos e muitos vieram me perguntar se era uma conspiração (eu ria internamente pois estava fechando uma edição cuja capa era sobre teorias da conspiração – batizei minha Carta ao Leitor de “Dias Estranhos” não por outro motivo). Era uma quinta-feira e, madrugada adentro, milhares estavam grudados às telas para ver o show de covardia e violência da PM liderada por Geraldo Alckmin. A farta distribuição de vídeos e imagens tornou impossível uma provável vista grossa da imprensa. Nem “Gangnam Style”, “Harlem Shake” ou a canela do Anderson Silva sendo partida ao meio: o grande viral de 2013 aconteceu durante a virada do dia 13 para o dia 14 de junho.

Depois disso, os protestos iniciados pelo Movimento Passe Livre tomaram uma proporção inacreditável e a segunda-feira seguinte, dia 19, foi o dia em que o Brasil travou. Milhões foram às ruas, boa parte influenciada contra a covarde violência policial do dia 13, mas milhares sem a menor noção do que estava fazendo ali além de participar de uma passeata histórica. Novos gritos de guerra foram surgindo e o “não são só 20 centavos” (sobre o aumento do preço da tarifa de ônibus em São Paulo) levou as manifestações seguintes para lugares mentais que ninguém havia cogitado. Aos poucos slogans de publicidade (“vem pra rua” e o infame “o gigante acordou”) foram adotados pelos novos manifestantes e muitos viram uma oportunidade de se aproveitar do momento – e por algumas horas muitos temeram o pior (ou “o melhor”, dependendo do ponto de vista) – guerra civil, quebra-quebra generalizado, golpe de estado. A multidão foi às ruas contra o que parecia ser um pífio aumento de passagem de ônibus e logo bandeiras se levantavam genéricas contra a corrupção, contra partidos políticos específicos e até contra a política de representatividade. Todo mundo quis tirar um naco do recém-acordado “gigante”, que, na infância de sua política, deslumbrou-se com a própria força e perdeu a noção nos dias que se seguiram ao #sp19j. Agências de bancos e concessionárias de automóveis foram quebradas, carros da imprensa foram queimados, muitos foram presos sem motivo e tanto a Mídia Ninja e quanto os black bloc encontraram na fúria das ruas a deixa perfeita para crescer em público.

Junho de 2013 foi um marco político importante para o Brasil: são as chamadas “dores de crescimento” por qual todo adolescente passa. Só agora estamos tomando consciência de nossas obrigações e direitos políticos, de nossa cidadania, daquilo que já deveria ser nosso. Temos uma nova classe média usufruindo de bens de consumo mas que, passo a passo, percebe que não basta apenas comprar – é preciso que as instâncias governamentais funcionem além das iniciativas tapa-buraco. A classe política brasileira tomou um susto do qual ainda não se recuperou – e é bom que percebam logo isso, pois cada político brasileiro, por mais desprezível e insignificante que seja, sabe exatamente qual é a sua parcela de culpa nessa história (não se esqueçam da respeitabilidade que o senador Demóstenes Torres tinha antes de vir a público sua participação na máfia de Carlos Cachoeira no ano passado – há muitos outros Demóstenes bradando por ética até hoje). Cada político, cada empresário e agora… cada cidadão. Os ecos deste mês ainda permanecem no ar e pairarão sobre nossas cabeças por um bom tempo. E a expressão “quero ver na Copa” ganhou um sentido inusitado e otimista.

Mas olhando para o quadro geral, não estamos falando apenas dos protestos de junho nem da política com “p” minúsculo – essa de câmaras de vereadores, prefeitos, governadores e presidentes. Parte da motivação dos protestos é inconsciente e tem mais a ver com horas parados no trânsito, terrenos baldios que viram estacionamentos para depois erguerem-se prédios, da especulação imobiliária e da onipresença dos shopping centers no Brasil há duas décadas. Queremos as ruas, “ocupar o espaço público” como repete o silencioso mantra por trás da eleição de Haddad em São Paulo, dos protestos contra Cabral no Rio de Janeiro e ações publicitárias que vão de carona nesse zeitgeist. Política com “P” maiúsculo pois não se faz apenas no voto nem em exigências contra “nossos representantes” – ela pode ser feita em nível comunitário. Quando você quer melhorar a calçada em frente da sua casa, poder sair mais ao ar livre, utilizar transporte público decente e começa, você mesmo, a fazer alguma coisa nesse sentido – em vez de esperar ou reclamar do governo – está sendo mais político do que os que se dizem políticos. Foi assim que o Movimento Passe Livre começou em 2005 e, oito anos depois, virou o país do avesso.

Outros protestos virão, mas não basta apenas protestar: é preciso fazer. Mas, como acabamos de descobrir isso, pode ser que essa ação leve mais tempo que esperamos. Afinal, é um processo cultural sobre um país que formou-se entre a violência e a corrupção. Não basta pedir o fim disso (pedir pra quem?), é preciso começar a dar exemplos – denunciar quem fura a fila, não aceitar nem pagar suborno, não falsificar carteira de estudante pra pagar mais barato (que tal não ir?). Vai levar tempo. Mas era preciso começar isso, de alguma forma: e começamos tomando o que já é nosso, o espaço público.

Afinal, a Paulista ficou parada com protestos noturnos durante um mês inteiro e nem por isso São Paulo entrou em colapso. Que tal transformar a avenida-símbolo da cidade num calçadão. Seria uma boa metáfora para um futuro próximo. Vamos?

13 de 2013: Barcelona e Berlim

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De novo usei shows como desculpa para desbravar duas cidades que ainda não conhecia: emendei minha primeira visita ao festival Primavera em sua cidade de origem, Barcelona, a um show de Neil Young cavalgando seu Crazy Horse na capital alemã. Foi minha primeira vez na Espanha e na Alemanha em cidades conhecidas por seu legado histórico e atual movimentação cultural e meu interesse queria saber como uma coisa estava ligada à outra. A chave está no dia-a-dia, nas ruas, no que as pessoas fazem com seu tempo e como o utilizam para viver melhor. Fiquei entre os shows e os inevitáveis passeios turísticos – afinal ir à Barcelona sem passar pela Sagrada Família ou pelo Parque Güell ou não passar por alguns dos prédios que habitam a ilha dos museus de Berlim é perder partes da alma das duas cidades. Entre um e outro, circulei por restaurantes, praças, livrarias, mercados, lojas de discos, centrinhos comerciais, parques e ruas querendo entender o quanto falta para que a gente atinja o nível destas duas cidades.

E a resposta está na forma como seus cidadãos lidam com elas. Cidades não são casualidades que temos que lidar entre a nossa casa e o nosso trabalho. Elas fazem parte da nossa vida de uma forma mais intensa do que pensamos, são continuações não apenas dos espaços que habitamos com freqüência, mas também de nossos corpos. Só uma visão holística sobre arquitetura, urbanismo e cidadania explica o funcionamento e a lógica por trás dessas duas cidades tão distintas. O que as une é justamente a forma como seus habitantes conversam com suas ruas. E tudo passa por educação: não adianta colocar latas de lixo por toda a cidade se as pessoas não sabem que o menor papel atirado no chão é responsável por enchentes ao entupir bueiros. Há uma vivência que não se restringe apenas aos próprios interesses – todos cuidam de tudo e há bem menos serviços particulares do que estamos acostumados. A coleta seletiva de lixo é regra, ninguém tem empregada doméstica, o trânsito respeita os ciclistas, que respeitam os pedestres, que respeitam o trânsito. Todo mundo sabe que tudo está interligado, não adianta querer se dar bem em um determinado aspecto da vida sem que isso acabe acarretando em um problema para outra pessoa. O metrô de Berlim não tem nem catraca e mesmo assim todos pagam o ingresso e o validam antes de subir nos carros. Ninguém tenta dar uma de malandro pra passear de graça.

Foi bem curioso tomar esse banho de civilidade alguns dias antes dos protestos começarem no Brasil – protestos que uniam a população (ao menos a princípio) ao redor do transporte público. Acendeu uma leve esperança de que, após o crescimento econômico, devemos começar a nos preocupar com a nossa educação – e não estou falando de escolas e ensino, e sim com a boa educação, com civilidade e civilização. Ainda temos muito que andar por aqui, mas ao menos me bateu uma sensação de que estamos indo no caminho certo. Tomara.

PS – Os shows foram ótimos: o Primavera em Barcelona funcionou como um relógio, apresentando shows memoráveis do Tame Impala, Blur, Nick Cave, My Bloody Valentine, Chris Owens, Breeders, Bob Mould, Dinosaur Jr. e Jesus & Mary Chain, e o Neil Young fez o melhor show de 2013 com quase três horas de guitarradas na incrível arena de Waldbühne, um dos lugares mais lindos que já vi. Isso sem contar as companhias, foi uma das melhores viagens que já fiz. Saca só os vídeos abaixo:

 

13 de 2013: Galileu

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Quando completei cinco anos no Link, em maio de 2012, me caiu uma ficha: nunca tinha passado tanto tempo num mesmo emprego. E com essa ficha veio a determinação que não iria completar o sexto ano ali. Não foi um “basta”, mas apenas a constatação de que mais doze meses no comando de um caderno semanal de tecnologia em um dos maiores jornais do país me tirariam a empolgação que me deixou tão à vontade para fazer um dos trabalhos que mais gostei na vida. O que era novidade estava se tornando rotina – a transformação do telefone celular num computador de bolso havia se tornado uma maçante sequência de novos lançamentos da Apple e seus concorrentes, a ascensão de uma nova rede social que ultrapassaria fronteiras nacionais para unir o mundo num mesmo ambiente digital transformou-se num curral motivado apenas por publicidade para encher os bolsos de um jovem e desinteressante Bill Gates (Zuckerberg, óbvio), além da sensação de que em pouco tempo tecnologia e internet se tornariam tão onipresentes que não faria sentido ter uma seção específica num veículo de comunicação.

Mas já tinha uma cirurgia marcada para o segundo semestre (para consertar, finalmente, meu braço direito) e não queria sair correndo esbaforido para um outro lugar. Não me sentia pressionado no Estadão, muito pelo contrário – minhas criatividade e invenção eram estimuladas à medida em que o Link se estabelecia como um dos principais veículos a cobrir este setor. O que me incomodava era o tédio e a monotonia que não pairava sobre o caderno, mas sobre mim. Ao completar o quinto ano na edição do Link, estava decidido a mudar de ares com o novo ano. Não queria mais editar um caderno no piloto automático.

E é engraçado como basta você apertar um botão no seu cérebro para que as coisas comecem a acontecer. No fim do primeiro semestre do ano passado fui convidado para o cargo de editor-executivo da revista Época Negócios e no início do semestre seguinte, para assumir a edição do blog do Instituto Moreira Salles. Dois desafios enormes que me levariam para áreas que nunca havia cogitado no meu currículo (economia e cultura erudita), mas poderiam acrescentar muito à minha carreira. Áreas que tenho pouca atuação e interesse vago, mas nada que me assustasse – quem já trabalhou comigo sabe que repito o mantra que o jornalismo é das poucas profissões em que você é pago para aprender. Mas já havia assumido o compromisso médico comigo mesmo e não mudaria de emprego às vésperas de uma cirurgia que me tiraria de circulação por pelo menos dois meses. E com muito pesar declinei os convites feitos pelo David Cohen e pelo Flávio Pinheiro.

Até que, na semana em que voltei ao Estadão, fui chamado novamente pela Editora Globo para assumir outro cargo em outra publicação – o de diretor de redação da revista Galileu. Aí era outro papo: era uma publicação que eu era mais familiarizado com um dos assuntos que eu mais gosto (mas que nunca havia lidado profissionalmente), ciência. E me explicaram nas duas entrevistas que participei antes de ser contratado que meu trabalho não se restringia à revista – cuidaria da marca Galileu, funcionando como um embaixador do título, levando o título para além do papel. 2012 estava quase no fim e vi na oportunidade a chance que esperava para sair do periódico centenário do bairro do Limão. Foi bom enquanto durou, mas estava indo nessa.

Assumi o cargo em dezembro do ano passado, no início do fechamento da edição de janeiro. E me dei conta que o desafio não era pequeno – além do mercado de revistas estar vivendo seu pior momento, Galileu havia acabado de passar por uma mudança de identidade que me impedia de dar outra guinada editorial. A revista abandonou o formato clássico de revista de ciência em 2009 para se tornar uma revista com foco pesado em tecnologia, copiando pautas e páginas da Wired na caruda. Com isso, ela deixou de falar de história, uma das principais áreas neste tipo de publicação. Uma nova mudança na direção de redação a fez caminhar para algo que era referido como “ciência útil” – como a ciência poderia ser utilizada para melhorar seu dia-a-dia. E com isso tecnologia ficou em segundo plano. Esta última mudança, que trouxe o slogan “Questione, Entenda, Evolua” aconteceu cinco meses antes da minha entrada na editora, então estava claro que não poderia mudar projetos gráfico e editorial tão logo sem causar uma sensação de esquizofrenia no leitor da revista.

Mais do que isso: não costumo trabalhar de forma vertical, mandando e desmandando. Queria conhecer as pessoas da redação e me aprofundar no título como um todo. Levei o ano inteiro de 2012 das revistas para a casa para lê-las de cabo a rabo e percebi, felizmente, que a revista era ótima. Não fazia sentido sair demitindo ou contratando, era muito mais uma questão de ajustes e de postura. Assim, durante 2013 fui mexendo aqui e ali na revista sem desmerecer os trunfos e talentos que ela já apresentava, valorizando-os. A revista não era ruim, muito pelo contrário, era ótima – mas poucos se davam ao trabalho de lê-la de ponta a ponta. Os 100 mil assinantes já sabiam disso, mas era preciso atrair mais leitores.

Por isso comecei a expandir os horizontes da Galileu. Negociei um boletim semanal com a rádio CBN (apresentado por mim, todos os domingos, às 13h30), tornei a marca presente em diferentes tipos de eventos (Campus Party, Fronteiras do Pensamento, Semana do Cinema de Culto no MIS, Arq.Futuro, YouPix), integrei a revista com o site (algo que não acontecia antes, site e revista eram dois mundos à parte), trouxe novos temas (tivemos, neste meu primeiro ano no comando da revista, capas para previsões do MIT, futebol, teorias da conspiração, música, livre arbítrio, o futuro do trabalho, agrotóxicos, cerveja, maconha, consciência animal e os principais nomes da internet brasileira em 2013), tornei os colaboradores frequentes mais próximos e aos poucos fui introduzindo mudanças no formato e acabamento da revista (dei uma coluna sobre ceticismo para o Carlos Orsi, um dos melhores jornalistas de ciência do Brasil, e outra para o Diogo Rodriguez, do Me Explica, sobre atualidades, criei uma Agenda para sugerir dicas de programa para os leitores, criei o Ecossistema para falar de todas essas novas novidades), mudei a cara do site. Fora alguns trunfos pessoais, como resgatar a querida Tatiana de Mello Dias do Estadão no momento em que o barco do Link começou a afundar (quando virou uma página dupla em economia e pareceu ter perdido seu brio, retomado no final do ano pelo velho bróder Camilo Rocha, atual editor do Link) para assumir a edição do site e entrevistar nomes como Cory Doctorow, Slavoj Žižek, James Gleick, Peter Diamandis e Tobias Andersson, do Pirate Bay. E consegui pautar matérias com nomes como Ronaldo Evangelista, Juliana Cunha, Ramon Vitral, Gaía Passarelli e Antônio Xerxenesky, jornalistas que gosto e respeito e que talvez nunca teriam escrito em uma revista de ciência se não tivesse os convidado. Isso sem sair dos trilhos do projeto gráfico e editorial que já existia quando comecei a cuidar do título.

Além disso tive que aprender a gerir um título, trabalhando diretamente com o marketing, com venda em bancas, com assinaturas, com publicidade, com o industrial e outras áreas da publicação que nem chegava perto durante os anos no Estadão. Como frisei no editorial da última edição de 2013, foi um aprendizado e tanto – em que acertei e errei, por isso reforço o agradecimento à equipe com quem trabalhei mais de perto durante esse ano, especialmente o redator-chefe Tiago Mali (que já falei que considero um dos nomes mais promissores do jornalismo atual) e a equipe liderada pelo diretor de arte Fábio Dias (os talentos da editora de arte Ana Paula Megda e da designer Gabriela Oliveira), além da repórter Luciana Galastri, que me ajudou a reconstruir a lógica do site. Obrigado, mais uma vez, pela paciência e dedicação.

E agora vem 2014… E acho que vai ser ainda melhor. Aguardem.

13 de 2013: Terra e água

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Tive uma crise de pressão alta há um ano e meio e depois de todos os exames, o médico veio com o resultado: “Tudo normal, mas você bebe, fuma, tem quase quarenta anos, sedentário e é jornalista, uma profissão desregrada. Natural que o corpo venha pedir a conta uma hora ou outra. Você vai ter de mudar de hábitos”. Era o chamado que esperava. Sempre deixei minha saúde em segundo plano à espera deste médico, que me dissesse que, por algum motivo, teria de cuidar da minha saúde. Lá estava ele, anunciando uma profecia que eu já esperava ser anunciada.

O destino me ajudou em algumas coisas: ao mudar de emprego, do Link para a editora Globo, parei de fazer plantões aos fins de semana. Mais do que isso – agora eu havia fugido de vez do noticiário mais quente, o que me deu mais tempo para cuidar de mim. E ser vizinho do compadre Camilo Rocha me ajudou também – ele havia começado a caminhar todos os dias pela manhã e no final do ano passado comecei a andar diariamente. Inventei um apelido – uma hashtag – para estas caminhadas: #thewalk, inspirado em um hit da minha adolescência, do Cure.

Elas me obrigaram a por em prática o hábito de acordar cedo. Há uns cinco anos acordo um pouco antes do sol, mas demorava para sair de casa – entre um lento despertar e um longo café da manhã. Agora não: antes das nove já estava na rua, sentindo o frio fresco do ar da matina ao mesmo tempo em que caminho pouco mais de três quilômetros pelo meu bairro. Isso me aproximou ainda mais da minha vizinhança – aos poucos reconhecia o pessoal de uma padaria que pouco frequentava, cumprimentava os porteiros e vigias que estavam sempre no mesmo ponto todos os dias, reconhecia taxistas e outros caminhantes – com bebês, cachorros ou sozinhos – que cruzava pelo caminho. Mais do que botar o próprio corpo para trabalhar (lentamente) começava a entrar em contato com o meu próprio bairro de forma mais íntima, menos à distância. Um aprendizado duplo – que ainda se mantém.

O próximo passo foi retomar a natação, meu esporte favorito. Nadei por dez anos entre a infância e adolescência e a competição contra si mesmo, o silêncio mental submerso e o contato com a água sempre me fizeram um ávido nadador. O problema agora seria recuperar essas atividades quase vinte anos depois de deixar de praticar qualquer exercício físico, mas tem dado certo. Convidei Camilo para repetir a dobradinha das caminhadas, mas ele tornou-se pai no meio do ano, o que lhe obrigou, inclusive, a parar de caminhar. No fim, foi bom: retomar a natação sozinho me colocou em contato com uma das melhores coisas do esporte – o aspecto meditativo de percorrer raias e raias sozinho. E, como nas caminhadas, batizei esse novo hábito com outro apelido – outra hashtag -, #downbythewater, que veio de outro hit, da minha pós-adolescência, da PJ.

O corpo dói no início, a preguiça tenta a não sair de casa, é difícil achar o melhor horário, mas tem valido à pena. Os resultados vêm aos poucos, mas os benefícios são sentidos de cara. Além de sentir o corpo evoluir – o fôlego melhorar, o peso diminuir, a disposição para tudo aumentar -, o impacto mental de colocar-se em funcionamento é crucial para seguir nesta evolução. Uma mudança drástica num ano ímpar, que recomendo a todos os sedentários que conheço. Não é pra largar discos e livros e virar um beato bitolado geração-saúde, contando quilocalorias, nem o infame “projeto verão”. No meu caso está mais para “projeto 100 anos”, que é para lá que eu vou.

O próximo passo é abandonar o cigarro, mas isso é papo pra 2014.

13 de 2013: Sussa

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Há dez anos alimento a idéia de uma festa vespertina. Que começaria um pouco antes de um almoço lento e demorado num sábado, teria chefs convidados e bandas e DJs tocando um sonzinho tranqüilo à medida em que a tarde cai. Cheguei a tentar algo do tipo na época da Gente Bonita, quando comecei a conversar sobre isso com o pessoal do Espaço +Soma, mas não foi pra frente – e olhando em retrospecto, foi bom que tenha sido dessa forma. Até que, quando o Alberta #3 suspendeu suas atividades por quase três meses no início do segundo semestre, bateu a crise de abstinência de discotecagem e comecei a caçar lugares onde poderia fazer uma edição extra das Noites Trabalho Sujo. Falei com o velho compadre Dago sobre a disponibilidade de noites do Neu e ele me falou que pra agendar alguma noite tava meio em cima da hora e emendou “mas estamos começando a fazer festas no domingo, começando a tarde e o próximo domingo está vago…”

Plim!, acendeu-se a velha lâmpada sobre minha cabeça. Acionei os suspeitos de sempre da Noites Trabalho Sujo – meus queridos irmãos Babee, Danilo e Pattoli – e o Klaus, com quem já vinha conversando sobre esse tipo de festa devido a afinidades sonoras, e os lembrei da idéia da Sussa. “Vamos nessa!”, responderam todos em uníssono digital. O famoso “plus a mais adicional” veio por intermédio da minha esposa, cujo recém-sócio Bruno Alves (2014 promete!), estava disposto a levar seus hambúgueres artesanais, que ele só fazia para os amigos, para a rua. Acionei o Silvano, que faz os flyers das Noites Trabalho Sujo, para pensar em um conceito visual para a festa, criei uma conta no Instagram apenas para a novidade, conversa daqui, conversa de lá e no dia 29 de setembro estreamos a primeira Sussa no quintal do Neu. O tempo estava dos piores, aquele domingo domingo nublado em que você implora para não ter de sair da cama, mas mesmo assim 70 heróis vieram ver o que seriam a versão vespertina da festa que começou no Alberta #3.

A festa evoluiu intercalando edições entre o Neu e a Casa do Mancha – pois já havia assuntado outro velho compadre, o Mancha, quem havia chamado para dividir outra festa na Trackers, sobre a possibilidade de fazer uma Sussa em sua casinha na Vila. Soube que a Fefa vinha para São Paulo com seus Sweet Grooves, que já acompanhava via internet, e perguntei se eles não queriam fazer uma jornada dupla depois da festa em que tocariam no sábado, e eles vieram. Na edição seguinte, o Dago perguntou se eu não era a fim de fazer shows e, no domingo anterior à terceira edição da festa, morreu o Lou Reed. Perguntei pra Lulina se ela não animava fazer um show em homenagem ao nosso herói e, no estilo “vambora” que tem sido uma das marcas da festa, ela topou e ensaiou um show em menos de uma semana. Na última edição do ano foi a vez de colocar Rafael Castro e Bárbara Eugênia para tocarem músicas próprias e de compositores de sua geração. E o tempo frio foi desanuviando, o sol começou a abrir e o clima foi ficando cada vez mais na medida.

Enquanto o Bruno virava seus Kød Burgers Artesanais e o som variava entre o Washed Out, o Blood Orange e os Boogarins, crianças corria pelo quintal e a pista virava atração secundária – estamos mais preocupados em fazer uma boa trilha sonora pra gente legal bater papo numa tarde de domingo do que fazer as pessoas dançar. E o povo vinha me cumprimentar sobre a iniciativa, que para mim sempre me pareceu inevitável e, com o passar dos anos, óbvia. Às vésperas dos 40 anos (faço 39 no próximo dia 13), muitos amigos que lamentam não poderem ir às minhas outras festas noturnas (ou por terem filhos pequenos ou por não se verem mais fora de casa depois das três da manhã) finalmente puderam comparecer e aos poucos estou definindo meu futuro na manha. Fora que depois de uma certa idade, a noite fora de casa perde um pouco o sentido se for além de um jantarzinho.

Só tivemos cinco Sussas até agora. Por isso, aproveito esse momento retrospectiva 2013 para agradecer publicamente o empenho de quem esteve diretamente envolvido na festa – Dago, Gui e o povo do Neu, Mancha, Tomáz e a rapeize da casinha, Klaus, Danilo, Babee e Pattoli (que ainda tá devendo a discotecagem numa Sussa – do ano que vem não passa!), a Dre (♥) e a Helena (♥) que toparam fotografar, além da Lulina, Bárbara Eugênia, Rafael Castro e os Sweet Grooves, que aceitaram tocar de tarde quase sempre de supetão – e de coração aberto. A festa já é um sucesso graças ao carinho de vocês – e prometo fazer tudo para que 2014 seja bem mais… Sussa 😉

13 de 2013: Lou Reed

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A primeira vez que ouvi a voz de Lou Reed foi quando um professor de história me emprestou uma fita cassete com o terceiro disco do Velvet de um lado, algumas músicas do Loaded do outro e “Venus in Furs” no final. Eu era adolescente em Brasília no início dos anos 90 e o acesso à informação em geral (principalmente se comparado a hoje em dia) era praticamente nulo. Comecei a gostar de música com uns 10 anos de idade e descobri o rock clássico ao mesmo tempo em que o rock brasileiro dos anos 80 paria um de seus principais representantes na minha cidade-natal – e enquanto os Beatles puxavam toda uma linhagem clássica e estabelecida (Stones, Cream, Hendrix, Doors, Led, Pink Floyd), o Legião Urbana citava toda a geração pós-punk (Smiths, Joy Division, Cure, Echo & the Bunnymen, Jesus & Mary Chain) além dos próprios punks ingleses (Sex Pistols, Clash, Buzzcocks) e americanos (Patti Smith, Talking Heads, Ramones). O raro contato com esse universo acontecia através da única revista regular de música (a Bizz) e especiais esporádicos de outras editoras (em geral, as revistas-pôster da Somtrês), em programas específicos de rádio (uns contrabandeados do Rio e de São Paulo em fitas cassete) e discos que raramente entravam no circuito, seja através do relançamento em CD (a novidade da indústria fonográfica da época) ou de amigos que traziam discos importados em raríssimas viagens ao exterior. Haviam duas dezenas de livros sobre música nas prateleiras das livrarias (dois do Nelson Motta, dois da Ana Maria Bahiana e vários Songbooks do Almir Chediak) e não existia internet.

Nesse garimpo de informações musicais começou a pintar, vez por outra, o nome do Velvet Underground. Sempre apresentado com excesso de estranheza, o grupo nova-iorquino não estava preso a nenhuma cena musical específica e era cria da mente de dois cérebros pervertidos – o estudante de música John Cale e o estudante de literatura Lou Reed. Os dois universitários negavam suas origens acadêmicas num projeto musical que misturava sexo, drogas e rock’n’roll sem um pingo do hedonismo bicho-grilo de seus contemporâneos. O clima do Velvet Underground era sujo e noturno, quase sempre barra pesada, com alguns ecos sentimentais funcionando como clareiras emocionais no meio do caos ali representado. Além da fita do professor de história, meu outro contato com a música de Lou Reed havia sido no disco VU, lançado em 1984, com as gravações daquele que deveria ter sido o terceiro disco do Velvet ainda com John Cale. Umas músicas do terceiro disco, outras do quarto, a íntegra do VU, “Venus in Furs”, algumas poucas fotos e muitos textos sobre a ruptura provocada pelo primeiro disco, as performances nos shows, os temas tabu, a baterista unissex, a viola elétrica, a microfonia de duas guitarras histéricas, a associação com Andy Warhol, a vocalista Nico vindo direto da Europa para ganhar três músicas-chave no primeiro disco. A biografia do Velvet é uma lenda sedutora para qualquer fã de rock’n’roll e o mínimo glamour combinado ao excesso sonoro e cênico até hoje é uma das matrizes do que chamamos de punk rock.

Mas não só. Lou Reed é desses marcos do rock que expandem suas fronteiras. Depois dos Beatles, talvez apenas o Velvet Underground tenha ampliado tanto os horizontes de uma música que nasceu como som do inconformismo adolescente norte-americano para tornar-se a trilha sonora do século 20. Tudo bem que o pacto feito com John Cale antes da banda existir (fazer música para agradar apenas a si mesmos) tenha suas raízes em bases opostas: Lou Reed não aguentava mais escrever músicas sob encomenda na gravadora Pickwick e John Cale havia chegado à conclusão de que a música erudita contemporânea o limitava. Mas o acordo entre os dois mudou completamente o rumo do rock – e da históra. Fodam-se os fãs, a indústria, os pais, o país. A única coisa que realmente importava era fazer barulho com outros amigos em uma garagem qualquer e falar do que viesse à cabeça. Esse é o principal legado do Velvet Underground.

Já a principal contribuição de Lou Reed veio da aspiração erudita em elevar a carpintaria do gênero às esferas da alta literatura – e para isso, contou com o submundo. A noite eterna, que se arrasta por bares, puteiros, ruas mal iluminadas e frequentadas por trambiqueiros, estelionatários, marginais e outras almas que se perderam na ingenuidade de um dia ser alguém. Contraposto ao mondo pop criado ao redor do padrinho do Velvet, Andy Warhol, aquele cenário fora habitados séculos antes por personagens de Shakespeare, Dostoiévsky, Dickens e agora vinha colidir-se com o mundo das artes do século 20. De repente prostitutas e viciados tornavam-se modelos e atores e a desolação do gueto era combustível para letras e riffs que cantavam as dores de Janes, Candys, Bills e Lisas e a transformavam em poesia mudana, suja, cantada com um sorriso irônico e um olhar perdido.

Sua morte é a mais importante no pop de 2013, pois vivemos num mundo que um dia só existiu na imaginação de Lou Reed. Poucos podem gabar-se de fazer a própria criatividade ter dado origem a uma mudança de comportamento que se espalhou pelo planeta. Lou Reed era um desses.

13 de 2013: Todos conectados… e monitorados

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Desde que me tornei editor do Link, no Estadão, em 2009 até a minha saída no final do ano passado, me autoinflingi a um mau agouro: o dia em que o suplemento de tecnologia se tornaria obsoleto (também sempre cogitava a pior hipótese de hard news para um caderno semanal que circulava no início da semana – a morte de Steve Jobs numa segunda-feira; ela aconteceu numa quarta e mesmo assim eu e Helô conseguimos tirar onda na edição daquela semana, obrigando o leitor a entortar o jornal). Sempre brincava – embora falando sério – que a natureza do Link contraposta à do Estadão permitia que nos aventurássemos por diferentes áreas do jornal sem brigar por pautas com outros cadernos. Assim conseguimos falar sobre o Marco Civil da Internet, de pirataria como vertente política e das trapalhadas da nossa justiça com a natureza da internet antes do pessoal de política, da economia aberta e de moedas virtuais sem abalroar com economia, da discussão sobre a ilegalidade dos downloads, da natureza do remix e da arte colaborativa fora das páginas de cultura. Mas chegaria um momento em que essas discussões inevitavelmente iriam interessar aos leitores de todos os cadernos, quando o digital deixasse de ser exceção. Cogitava como horizonte o dia em que a internet e as novas tecnologias se tornariam tão presentes que deixariam de ser reconhecidos apenas por um caderno. Uma vez que a internet avança cada vez mais sobre cada desdobramento de nossa vida, é inevitável a chegada de um momento em que um caderno sobre novas tecnologias e cultura digital se torne redundante frente a todas as outras editorias.

Quis o destino que tais preocupações ficassem no passado logo que assumi a direção da Galileu, no final de 2012 (cogitando, sobre novos ombros gigantescos, novos horizontes), mas tenho uma forte impressão que todo esse oba-oba em torno do digital e da internet terminará até o final desta década. Isso não quer dizer que a internet passará ou que os dilemas da transição que estamos vivendo se cessarão: pelo contrário, acho que eles se tornarão ainda mais presentes e complexos. A diferença é que não vamos mais nos referir uns aos outros como “internautas” (palavra que abomino e tento eliminá-la de meus textos, a não ser pra citar o próprio ridículo do termo, como agora) e vamos deixar de falar em “entrar na internet”. A rede já é ubíqua e o Facebook sozinho já pode gabar-se de ter um sétimo da população do planeta conectada à sua agenda de contatos, o maior CRM do planeta. Mas já começamos a ver um movimento de reação que é inevitável: a fuga da internet (ou a redução da presença online). Cada vez mais gente abandona plataformas de publicação para ter apenas um ponto de contato com a internet, deixando para trás essa era histérica e autorreferente de discussões intermináveis que só fazem bem ao ego dos envolvidos, sejam colunistas ou blogueiros de esquerda ou de direita (conceitos cada vez mais difusos, ainda mais nesses dias). E essa desconfiança da internet ganhou requinte de crueldade com as revelações feitas por um ex-agente da inteligência norte-americana, Edward Snowden, que revelou que os Estados Unidos utilizam recursos digitais – com auxílio das grandes grifes da rede – para monitorar a vida de quaisquer cidadãos que estejam na internet, norte-americanos ou não.

Qualquer um que dissesse, até 2012, que o governo dos EUA teria algo parecido com o PRISM seria imediatamente tachado de paranóico e conspirador maluco – mas eis que vem a realidade e nos esfrega em nossas ventas algo que nem a melhor ficção cogitaria. Mais do que isso: nos dá um anti-herói vilão arrependido que foge para a Rússia numa ação que desafiou até a soberania do presidente boliviano. Snowden surgiu como improvável protagonista da contrainformação corporativa, deixando o mundo boquiaberto sobre suas revelações e dando início a um dominó político que por vezes respingou no Brasil – desde reativação o Marco Civil da Internet à detenção de David Miranda, o namorado brasileiro de Glenn Greenwald (responsável pela revelação das acusações de Snowden), até a carta que o próprio Snowden escreveu ao Brasil, dizendo-se disposto a ajudar o país no que diz respeito às espionagens relacionadas ao governo e empresas brasileiras.

As revelações de Snowden podem ter tornado o mundo mais cético e mais cínico, mas se esse é o custo para que saiamos do loop de autodeslumbre que estamos presos desde que a web 2.0 permitiu que o mundo ouvisse a voz de cada um de nós, tudo bem. Pode ser que assim passamos menos tempo olhando para telas, decididos a registrar qualquer momento ou pensamento, nos fazendo refletir sobre a natureza da sinceridade da pergunta que o Facebook sempre nos faz (“como você está se sentindo agora?”). Não vivemos num reality show em que o mais exibido ou melhor articulado ganha um milhão no último episódio – estamos mais para ratos em laboratório cujas menores reações são monitoradas a cada milímetros ou segundo. E não tem último episódio, mesmo que você leve o milhão (de views, de likes, de RTs).

13 de 2013: “Get Lucky”

Daft-Punk-Get-Lucky

De Bowie, em janeiro, a Beyoncé, em dezembro, lançamentos-surpresa estiveram na ordem do dia de 2013. É mais um indício que a transição da era analógica para a digital está chegando ao fim. Os artistas, que antes precisavam mover uma enorme máquina de marketing para conseguir ao menos um tijolinho de texto em uma página de jornal, estão fazendo isso sem tanta estrutura, pois falam direto com seus fãs. O álbum-surpresa não é uma novidade de 2013; o Radiohead já fez isso pelo menos três vezes (embora na primeira eles não assumam): no “vazamento” de Kid A no meio do ano 2000, quando o disco estava prometido para setembro; e no lançamento de In Rainbows, de 2007, e The King of Limbs, de 2011, postos para a rua em menos de um mês depois de finalizados em estúdio. A novidade de 2013 é que isso não é mais exceção e, aos poucos, tornam-se regra. Mesmo com gravadoras envolvidas no processo, os artistas querem entrar em contato direto com seus ouvintes e vender seus novos discos sem antecipação. Até o My Bloody Valentine tirou um atraso de mais de duas décadas usando essa fórmula, seguida pelo Boards of Canada, que brincou de quebra-cabeças com ouvintes e ratos de lojas de disco.

Mas ninguém soube faturar tão bem a expectativa como o Daft Punk. Não é de hoje que a dupla francesa experimenta formatos contemplando diferentes mídia e é nítida a ênfase específica que os dois dão à sua criação musical. Ao transformar as antigas máscaras em personalidades-robô, Guy-Manuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter ampliaram sua área de atuação para além da música e talvez tenham se perdido no meio do caminho. Entre o soberbo (e lotado de samples) Discovery e a trilha sonora da continuação de Tron, a imagem do Daft Punk chamou mais atenção que suas músicas – e parece que foi com este intuito que Random Access Memories foi gravado. Sem samplear ninguém, a dupla chamou um senhor time de colaboradores (Panda Bear, Julian Casablancas, Giorgio Moroder, Todd Edwards, Chilly Gonzalez) e preferiu centrar fogo em uma música. Ou melhor: quinze segundos de uma música.

Foi o que aconteceu quando ouvimos “Get Lucky” pela primeira vez, num comercial do Saturday Night Live que viralizou no YouTube. 15 segundos e só o riff. A única imagem era o logo da banda, estilizado em prata, seguido das duas metades de cada capacete vindo de cada lado da tela, revelando a data de lançamento do novo disco. Sem vocal. Sem refrão. Só o riff, que depois ficamos sabendo que era tocado por ninguém menos que Nile Rodgers, fundador do Chic, que produziu David Bowie e Madonna nos anos 80. Semanas depois, uma versão esticada do comercial aparecia num telão no festival Coachella não apenas revelando a participação de Rodgers como a do cantor Pharrell, entregando a estrofe pré-verso da música. Ao criar essa expectativa em torno da chegada de uma única canção, o Daft Punk aos poucos foi nos acostumando com sua estrutura, seu ritmo, sua textura musical – essencialmente um flashback literal do final dos anos 70 e início dos anos 80 como o próprio nome do disco deixa claro.

Quando “Get Lucky” apareceu, tudo estava pronto para ela se tornar a música mais ouvida do ano. A expectativa criada em uma única música – e não numa grande volta ou em todo o álbum – colocou o Daft Punk no centro pop de 2013 e transformou seu hit em uma das músicas mais emblemáticas de 2013, mesmo que pareça ter sido feita em 1979. A forma como ela nos foi apresentada é que é típica deste século.

13 de 2013

Treze partes de um ano ímpar, a partir do meu ponto de vista

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O número 13 vem carregado de um desequilíbrio que perturba a maioria das pessoas. Como o dia em que nasci leva este número, entrei escaldado em 2013. Não havia como fugir que nosso primeiro ano 13 fosse tenso e carregado como foi – emoções boas ou ruins, igualmente inquietas. A aura do número – da sorte ou do azar, dependendo da perspectiva – pairou sobre nossas cabeças de forma quase icônica e ríamos ao chamá-lo de “creize” entre os dentes cerrados como uma forma de exorcizar toda essa pilha.

Foi um ano em que política pareceu ter perdido a aura engravatada e cinzenta que era nos vendida para se tornar algo palpável e presente, seja nos protestos de junho de 2013, nas políticas públicas, na participação popular, no convívio social. Vimos máscaras subindo e outras caindo num ano em que os papéis entre palco e platéia se embolaram de vez e a intermediação entre ambos tornou-se quase ensurdecedora, com tantos em busca de protagonismo. Polêmicas e memes se misturam às notícias e tudo parecia filtrado por opiniões recém-adquiridas via Facebook – toda semana um novo assunto é exaurido de possibilidades retóricas, o que aos poucos vem desgastando nossa capacidade (e paciência) de argumentação ao mesmo tempo em que essa fase de que se precisa ter opinião sobre tudo parece que vai passando. Convicções seguem rígidas, mas há uma desolação irônica que flutua sobre qualquer assunto – o papa que renuncia, os direitos das empregadas domésticas, o Ben Affleck vai ser o Batman, Tom Zé e a Coca-Cola, o ingresso de R$ 12.500,00, a Mídia Ninja e o Fora do Eixo – que parece nos preparar para uma realidade menos ilusória, plástica. Daí a política nos desinteressar na esfera representativa global e começar a brotar em recantos comunitários. Afinal, se somos todos monitorados pelos Estados Unidos, como já desconfiávamos pela onipresença do Google e do Facebook, por que não baixarmos a guarda e começarmos a falar umas boas verdades, inspirado pelo principal sujeito de 2013, esse Nobel da paz de verdade chamado José “Pepe” Mujica.

2013-Giuliana-Vallone

Mas a imagem do ano é a da fotógrafa Giuliana Vallone alvejada no olho por um policial durante um protesto pacífico, pois ela talvez seja quem melhor represente essa mudança – não estamos falando apenas de uma casualidade de guerra ou de uma estatística em um confronto, mas de uma pessoa surpreendida pela agressividade institucional. A mesma que nos faz querer ir às ruas, humanizar a discussão – afinal a discussão sobre os 20 centavos só ganhou corpo quando a violência policial fez-se presente. E isso nos custou abrir um pouco a mão de nossa zona de conforto.

Essa retomada do espaço público e do ar livre se refletiu em vários níveis pessoais – desde aproveitar melhor a cidade à materialização de uma festa vespertina. E não adianta despregar uma retrospectiva do ponto de vista individual, ainda mais no ano em que a dicotomia entre #merepresenta e #nãomerepresenta foi gasta num certo ponto em que a única verdade possível é a de cada um. Particularmente, tirei 2013 para estabilizar meu plano de vôo – e se o acaso quis que a maioridade do Trabalho Sujo coincidisse com meu primeiro ano na direção da Galileu, transformei isso em meta dupla coexistente. Sob ambas, o despertar de uma preocupação com a saúde que vai além da fácil “alimentação melhorada” rumo ao exercício físico (a caminhada #thewalk e a natação #downbythewater, dois hits da minha vida assumindo-se rótulos para transformações físicas) e vendo um horizonte sem a fumaça da nicotina em 2014. Conheci Berlim e Barcelona, duas cidades incríveis e antagônicas, São Paulo e Rio de Janeiro de uma Europa mais jovem que esperava encontrar. Vi o Cure, o Tame Impala e o Blur duas vezes, finalmente fui a um festival Primavera, vi o Cidadão tocando o Dark Side do Pink Floyd e um show histórico do Neil Young sobre seu Crazy Horse. Dei festas memoráveis sempre tocando ao lado de amigos queridos e aos poucos estou retomando a cozinha. Mas fui ao cinema e li menos do que gostaria. A série cujo final eu mais aguardava terminou sem graça e perdi um dois grandes ídolos: um icônico e outro irmão. Foi um ano montanha-russa, em que a lógica pareceu ser a mesma por trás de qualquer Harlem Shake (uma moda, por incrível que pareça, deste ano).

Nos próximos treze posts, treze lembranças deste ano treze que chega ao fim, textos que comecei a escrever em diferentes épocas e cidades nos últimos doze meses e que serão terminados nas altitudes de um deserto sul-americano, onde passo uma semana com a única pessoa que realmente importa – minha mulher.

Força, porque ano que vem, você já sabe, vai ser “o” ano: e só melhora!

PS – A contagem regressiva das 75 melhores músicas de 2013 continua a partir do primeiro dia de 2014, junto com outras listas de retrospectiva, que seguem até o dia 6.

As 75 melhores músicas de 2013: 37) Boogarins – “Lucifernandis”

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