Duas escolas do rock

Corre pro Porta Maldita pra assistir duas bandas novíssimas que descendem de duas diferentes escolas da história do rock. A banda Miragem, liderada pela impressionante Camilla Loureiro, trabalha na linha do rock clássico em canções ao mesmo tempo complexas e diretas, que ecoavam tando o pós-punk que aos poucos tornou-se parte do pop dos anos 80 quanto o rock progressivo e o hard rock dos anos 70, com direito a tempos quebrados e solos intrincados. E mesmo sendo amparada pelo ótimo instrumental formado pela guitarra de Rafael Quebrante, o baixo de Gustavo Henrique Esparça e a bateria de Lucas Soraes, Camilla é o foco central da apresentação, seja cantando suas composições extensas e melódicas, tocando (muito) guitarra ou teclados ou conectando-se com o público com simplicidade e simpatia. No meio do show ainda convidaram a amiga Mariana Nogueira, que acompanha o grupo cuidando da parte audiovisual da banda, para tocar teclado em uma das músicas. A banda acabou de gravar seu primeiro álbum e deve lançá-lo ainda este ano.

Quando Otto Dardenne surgiu em seguida para fazer o terceiro show da banda que leva seu nick de internet – Ottopapi -, ele abriu a porta para o outro lado da história do rock, cutucando a virulência e a energia que no fim descambou no punk rock mas sem perder o senso pop de canções que grudam na cabeça à primeira audição, soando como se os Modern Lovers do Jonathan Richman tivessem o elemento de periculosidade do Velvet Underground, mas sem precisar levar-se a sério. Acompanhado de Thales Castanheira e Vitor Wutzki nas guitarras, Bianca Godoi no baixo, Danilo Sansão nos teclados e efeitos e Gael Sonkin na bateria, o capo da gravadora Seloki não tocou nenhum instrumento e permitiu-se estar livre no palco, assumindo um ar de Iggy Pop da turma do fundão, tocando o terror sem necessariamente causar pânico – e inevitavelmente se jogando no meio do público que enchia o Porta Maldita. Diversão garantida.

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De Porta a Porta

Tem horas que tudo que você precisa é uma bordoada kraut na cabeça, aquela imersão motorik de gritos, ritmo e microfonia que o prog alemão do início dos anos 70 inventou e que felizmente espalhou-se pelo tempo e espaço. Por aqui, o filhote mais tenso e intenso dessa genealogia é o ex-quarteto Madrugada que agora conta com Cacá “Rumbo Reverso” Amaral na segunda bateria, tornando o impacto do grupo ainda mais atordoante. E o show que o agora quinteto fez neste sábado no Porta Maldita foi uma espécie de saudação de boa vizinhança de uma porta à outra. Afinal, dois dos integrantes do grupo – a tecladista e vocalista Paula Rebellato e o guitarrista Raphael Carapia – são proprietários do Porta, na Vila Madelena, que naquela mesma noite encerrava suas atividades no endereço atual, preparando-se para recomeçar em um novo endereço, a um quarteirão do Porta Maldita. Duas portas célebres por voltarem-se para a cena underground de São Paulo – e do Brasil – quase vizinhas parecem iniciar o prenúncio de uma nova era – e não duvide que aquela esquina da rua do cemitério com a do Ó do Borogodó ocupe um espaço que já foi da Rua Augusta, reunindo notívagos, artistas e bandas passeando de um lado para o outro para ver shows de artistas que as pessoas mal conhecem. A avalanche sonora do Madrugada – que ainda conta com os irmãos Otto e Yann Dardenne no baixo e na primeira bateria – me pareceu um bom presságio para uma nova era na noite de São Paulo. Vamos que 2024 ainda promete muitas surpresas…

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Um ano de Porta Maldita!

E depois do show do Otto ainda deu pra prestigiar o aniversário de um ano do Porta Maldita, sonho que herói Arthur Amaral vem acalentando há uma década e que tornou-se realidade em agosto do ano passado. A noite começou com o quarteto Applegate mostrando que seu próximo álbum, Mesmo Lugar, que deve sair agora em setembro, vem pesado. Não os via desde antes da pandemia e é nítido ver a evolução da banda, engrossando seu caldo psicodélico com o entrelaçamento das guitarras do expansivo Gil Mosolino e do discreto Vinícius Gouveia, enquanto Rafael Penna segura o groove entre o baixo e o synthbass em conexão com o baterista Luca Acquaviva, que já tomou conta do espaço que antes era do Pedro Lacerda, que inclusive foi lá assistir ao show de sua antiga banda. A banda ainda aproveitou para comemorar o apoio dos fãs, que bancaram o disco que está vindo e continuma fazendo a banda existir na raça, como a maioria dos grupos underground sempre fizeram, e, lógico, para celebrar a importância do Porta Maldita, que em pouco tempo tornou-se referência para novos artistas do Brasil inteiro.

Depois foi a vez do anfitrião da casa mostrar seu novo projeto pela primeira vez, quando Arthur Amaral puxou sua Tranze para o palco. Reunindo músicos absurdos – o exímio guitarrista Gustavo Schmitt, o baixista da Applegate Rafael Penna, o tecladista Lukas Pessoa da excelente Monstro Amigo e o baterista Caio Felliputti -, a banda é fruto das jam sessions que Arthur recebe em seu Porta Maldita e nada como o primeiro show da banda do dono da casa para celebrar o primeiro aniversário deste espaço tão importante. Enquanto os músicos piram entre o jazz funk, o fusion e o rock psicodélico, Arthur envereda pelo spoken word narrando questões do nosso cotidiano de forma ao mesmo tempo abstrata e direta. Longa vida ao Porta Maldita!

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Blues na sua cara

Corri dali pro Porta Maldita, mas não consegui assistir ao show das catarinenses Dirty Grills, mas pelo menos cheguei a tempo de ver o Orange Disaster, a banda do Carlão Freitas – que também toca comigo no Como Assim? – mais difícil de fazer shows pois seu baterista, Davi Rodriguez, não está morando no Brasil. Foi o primeiro show do grupo que vi, com Carlão fazendo as vezes de guitarra e baixo mesmo tocando só guitarra, enquanto o outro guitarrista, Vini F., se joga no noise, mas sem nunca perder a base musical do quarteto, enfiando um blues elétrico na sua cara a poucos centímetros de cair no caos sonoro dos Stooges, matendo a tensão necessária pra manter a paisagem sonora ideal para o vocalista J.C. Magalhães agir como um pregador apocalíptico, de chapéu, óculos e dedo em riste, hipnotizando o pequeno público que encheu o Porta Maldita.

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Uma nova onda que se ergue…

A noite de quarta terminou com o encontro de duas novas bandas na Porta Maldita, que é uma das melhores pequenas casas de show do underground de São Paulo, quando os baianos dos Tangolo Mangos, tocando onde dá em São Paulo desde que os chamei pro Inferninho Trabalho Sujo no Picles, encontraram-se com o quarteto paulistano Os Fonsecas – dois grupos que mostram a intensidade de uma nova geração de artistas que equilibra-se entre a MPB e o indie rock e que aos poucos vem se estabelecendo em diferentes cidades do Brasil. Com a casa cheia em plena quarta-feira, a noite começou com uma apresentação bem mais firme da que havia visto do grupo encabeçado pelo vocalista Felipe Távora, que acaba de lançar seu primeiro álbum, Estranho Pra Vizinha. À frente de um dos melhores power trios da nova cena de São Paulo (Valentim Frateschi no baixo, Caio Colasante na guitarra e Thalin na bateria), o vocalista tinha mais presença de palco e estava mais à vontade com os músicos, o que não aconteceu no primeiro show que vi deles naquela mesma casa – depois ele me confessou que aquele show anterior havia sido muito “caótico”. Como naquele outro show, este também terminou com a participação do vocalista do Tangolo, Felipe Vaqueiro, tocando sua já famosa gaita. Uma boa amostra do que está vindo por aí…

Depois dos Fonsecas foi a vez dos Tangolo Mangos subirem no palco para mostrar quase todo seu disco de estreia Garatujas, além de músicas de seus primeiros EPs e outras inéditas. O grupo vem de uma sequência intensa de shows paulistas: além do Inferninho Trabalho Sujo, eles ainda tocaram em Campinas, Santo André e abriram para a Sophia Chablau & Uma Enorme Perda de Tempo na Casa Natura, além de participar de uma festa junina no Porta como banda surpresa, domingo passado, sempre com o guitarrista dos Fonsecas, Caio Colasante, como quinto integrante. Essa sequência pode até cobrar um preço pelo cansaço, mas inevitavelmente deixa qualquer grupo tinindo e o guitarrista Felipe Vaqueiro, o baixista João Denovaro, o percussionista Bruno Fechine e o baterista João Antônio Dourado estavam completamente entrosados, enfileirando músicas em alguns casos de improviso. O grande momento do show acabou por coroar o encontro das duas noites, quando chamaram o baixista da banda de abertura, Valentim Frateschi, para cantar seu single “Falando Nisso”, música que o próprio Tim revelou ter sido composta inspirada na banda baiana. Antes da noite terminar ainda chamaram o tecladista do Eiras e Beiras, Eduardo Barquinho, para acompanhar o grupo por três músicas, que encerraram a apresentação com o público cantando músicas gigantescas a plenos pulmões. Esta nova onda está só começando a crescer…

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Quinta sensível

E depois da aula corre pro Porta Maldita que estava lotado para ver dois talentos em ascensão da música local tocar suas músicas delicadas com acompanhamentos sutis. Primeiro foi a vez de Luiza Villa fazer sua primeira apresentação solo, quando mostrou suas primeiras composições além de versões para músicas alheias, indo de Gilberto Gil à sua familiar Joni Mitchell, passando por uma versão deslumbrante para “If a Tree Falls in Love with a River”, de Lau Noah e Jacob Collier, quando abriu vozes com sua irmã Marina, e “Tristeza do Jeca”, que dividiu com o dono do segundo show da noite, Lucca Simões.

Depois Lucca subiu ao palco para mostrar suas delicadas canções, conduzidas por sua voz suave e guitarra clara. Suas composições cresceram ainda mais com a bela banda que reuniu, com Eduarda Abreu nos teclados, Chico Bernardes na bateria e Lucas Gonçalves no baixo, partindo do folk e da MPB que impulsiona sua criação abraçando ao mesmo tempo tanto um rock setentista quanto uma pitada de jazz elétrico. Bem bonito.

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A primeira vez no Porta Maldita

Finalmente visitei o Porta Maldita e que massa ver que o Arthur conseguiu fazer o que vinha vislumbrando há anos: um inferninho saudável, que apesar de ser uma casa de shows parece a casa de alguém que gosta de música, com gente espalhada pelos cômodos curtindo civilizadamente a noite. O cômodo dedicado aos shows, além de ar condicionado (crucial para esse verão) tem um dos melhores sons entre as casas pequenas – uma meta do dono, que é justamente uma pessoa do som – e o Porta Maldita ainda tem até com iluminador para os shows (sexta quem estava lá era o Rafa, do Applegate). E o bar é demais: os drinks são bem bons, o preço é justo, os copos são de vidro, tem água de graça e a equipe é simpática. Parabéns Arthur! Fora que ter só uma portinha do lado de fora tem um charme poético que torna a casa ainda mais mágica.

Assisti a mais um show do Garotas Suecas, que vinham de um extremo oposto desde seu último show, quando abriram para os Titãs no estádio do Palmeiras lotado, em dezembro. No primeiro show do ano, os heróis do indie paulistano – que completam 20 anos de banda neste 2024 – mostram como a experiência e a maturidade confluem para um show preciso e redondinho, com canções irresistíveis e causos infames entre elas – inclusive sobre quando o baterista Nico foi entrevistado sobre especulação imobiliária, história contada antes da ótima “Gentrificação”, do disco que lançaram ano passado.

Depois foi a vez dos Fonsecas, que nunca tinha visto ao vivo, e a banda colide rock’n’roll com MPB a partir da sua divisão instrumental: o power trio formado por Caio Bortolozo (guitarra), Thales Tavares (bateria) e Valentim Frateschi (baixo) pegam pesado no rock, deixando o vocalista Felipe Távora livre para declamar seus poemas em forma de canção e se jogar no palco. O show ainda contou com a participação do vocalista da banda baiana Tangolo Mangos, Felipe Vaqueiro, e o vocalista da banda Naimaculada, Ricardo Paes, dividindo o palco com o grupo na última música, a faixa que batiza seu EP, “Fundo da Meia”. Foi a primeira vez que vi o grupo ao vivo e funcionou bem com a minha primeira vez no Porta Maldita.

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