Pop subversivo, rock conservador
Sem querer, o Rock in Rio retrata uma transformação crucial em dois dos grandes gêneros da música pop – escrevi lá no meu blog no UOL.
O primeiro fim de semana do Rock in Rio 2017 foi dedicado à música pop e é engraçado perceber como esses tempos estranhos ajudam a inverter os polos. Se o pop antes era dócil e confortável, ele vem assumindo um papel subversivo e desafiador que antes cabia ao rock. O rock era a contestação, a negação, o confronto, o embate. O pop era composto por girl groups e boy bands, cantores galãs e musas intactas sorrindo enquanto cantavam a tradição, a família e a propriedade. O rock era a perversão, o underground, o desvario, o circo pegando fogo, o caos. O pop aceitava tudo com “sins” e o rock negava tudo com seus “nãos”. E agora começa o fim de semana do rock, que tornou-se um gênero conservador.
Mas parte da música pop que desfilou no primeiro fim de semana do Rock in Rio dizia “não”. Estava nas letras politizadas de Rael e de Elza Soares, na participação de uma líder indígena brasileira no show de Alicia Keys, no beijo redentor entre Johnny Hooker, Liniker e nos discursos de Roberto Frejat, Samuel Rosa e Evandro Mesquita em seus shows no festival, na presença intrusa da esnobada Anitta através da participação de Pabllo Vitar, nos “fora, Temer” instantâneos e até no constrangedor protesto puxado por Ivete Sangalo e Gisele Bundchen ao som de “Imagine” de John Lennon. Claro que havia um pop que diria “sim” até para uma pedra (Maroon 5, Fergie, 5 Seconds of Summer, Shawn Mendes, Walk the Moon), mas pelas beiradas outros mostraram que o pop deste século lida com outra abordagem.
A música pop vem deixando sua doçura e delicadeza em segundo plano para funcionar a seus compositores e intérpretes como trampolins de personalidade, criando plataformas que podem vender diferentes facetas de um mesmo artista como se fossem souvenirs de museus. A década mágica desta transformação foram os anos 80 e tanto ícones gigantescos como Prince e Madonna quanto heróis anônimos dos primeiros anos da música eletrônica para dançar e do hip hop inverteram a regra do jogo. De repente a música pop começava a ficar mais desafiadora e cheia de si, dando auto-estima e petulância a artistas que pediam licença para entrar. E assim o pop começou a funcionar como uma forma de desafiar o status quo, mirando em temas e discussões que antes eram típicas da mentalidade do rock. Abraçando direitos civis, questões de gênero e sexualidade, minorias e o meio ambiente, este novo pop estabelece os próprios valores, em vez de adequar-se aos existentes.
É o extremo oposto do que vem acontecendo com o rock – e o rock que acontece neste segundo fim de semana do Rock in Rio vem sendo representado pelos headliners Aerosmith, Bon Jovi, Guns’N Roses e Red Hot Chili Peppers. Nomes que já foram sinônimos de confusão e desordem mas que hoje fazem tudo nos conformes, seguindo as regras do showbusiness. São executivos de suas próprias empresas que não querem saber de perder dinheiro. Deixaram todo o senso de periculosidade e de provocação no passado, alimentando uma caricatura de rockstar que pertence ao século passado. É sintomático que sejam nomes que também se estabeleceram nos anos 80, quando o último suspiro de contestação vindo do rock veio das cenas surgidas a partir do punk. Por isso que a inclusão de nomes como Titãs, Tears for Fears, Capital Inicial, Offspring e até Incubus, Fall Out Boy e Jota Quest não desequilibra. O pobre Who é quem mais soa deslocado nesse contexto.
Não que o rock não possa ser contestador atualmente – e o palco Sunset prepara encontros que mexem com essa veia. Nação Zumbi e BaianaSystem podem ser consideradas as principais bandas de rock do Brasil hoje, embora o elemento nordestino faça muitos torcerem o nariz para essa categoria (o que é apenas preconceito, sabemos) – o primeiro grupo toca ao lado de Ney Matogrosso e o segundo da rapper angolana Titica. Um improvável encontro entre Alice Cooper e Arthur Brown pode render mais do que promete e os shows do Kills e do Sepultura têm sua petulância, em diferentes níveis.
Mas no palco Mundo o que se vê é uma seleção conservadora. Grupos que forjaram suas reputações a partir da repetição de fórmulas e clichês que lhes distanciaram do ímpeto inicial de suas carreiras. Tanto Aerosmith quanto Red Hot Chili Peppers são os melhores disso: artistas cuja primeira fase da discografia foi dedicada à vida louca de rockstar, se reinventaram numa segunda fase como uma caricatura do que eram, bandas voltadas para tiozões que se consideram roqueiros. Enquanto o pop se tornou subversivo, o rock se tornou reacionário e conservador.
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