Por Alexandre Matias - Jornalismo arte desde 1995.
Só mais essa, vai…
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Engraçado como o Duran Duran significa um monte de coisas diferentes, dependendo do ponto de vista adotado. Dá pra lermos a obra do grupo como art rock (refletindo os dias em que a moda começou a ser tratada como arte pela intelligentsia pop), pioneiros do videoclipe, epítome technopop, new wave para as massas, visionários do estilo vazio que dominaria sua década de atuação (os anos 80) ou, como eles mesmos se denominavam, novos românticos. Mas além de todos estes rótulos, o grupo inglês pode ser considerado um dos principais fatores não apenas na morte prematura da disco music como na resistência conservadora do rock’n’roll durante os anos 80. Se ainda existem moleques andando por aí com camisetas do Ramones e da Harley Davidson ao mesmo tempo que posam de rebeldes, deveriam agradecer sua existência ao Duran Duran.
Afinal, eles retardaram o processo de transformação que a disco music submeteu a música pop. A disco estabeleceu o fim do formato canção no imaginário atual. Respeitado inclusive pelos “rebeldes” do rock, a camisa-de-força formada pela seqüência óbvia “introdução/estrofe/refrão/estrole/refrão/ solo/ estrofe” foi estabelecida no começo do século 20 à medida em que a música erudita foi sendo passada para trás por um capricho tecnológico. Graças a primeiro aos tubos do fonógrafo de Edison e depois aos discos de cera do gramofone, o som só conseguia ser gravado por poucos minutos, em unidades de registro de baixa tecnologia. Logo, óperas e sinfonias perdem espaço para sonatas, valsas, exercícios e árias, cuja duração reduzida cabia nos cinco minutos exigidos pelos instrumentos de reprodução sonora. Com isto, a música popular viu a possibilidade de sair dos saraus e ruas para entrar nas salas de estar. Para isto, recondicionou sua estrutura ao formato canção – graças a ourives musicais de diversas partes do globo -, que logo ultrapassaria a música clássica no gosto popular e se tornaria a principal moeda no mercado de discos.
Nem mesmo o rock, que rompeu com parâmetros rígidos e dogmas da indústria do disco, conseguiu derrubar a canção. Quando tentou, retrocedeu no tempo e costurou diversas canções em colchas de retalhos que tentavam, em vão, emular a respeitabilidade e maturidade das obras de música erudita – era o rock progressivo, um dos responsáveis por popularizar o formato LP que, mesmo ultrapassando o pioneiro single como item de consumo no mundo inteiro, não abriu mão da unidade canção como bem básico em sua escala de valores.
Mas ao mesmo tempo em que estudantes ingleses frustrados tentavam canalizar sua baixa-estima em solos gigantescos e letras pastoris, alguns de seus contemporâneos nova-iorquinos estavam se divertindo bem mais. Negros, latinos ou descendente de italianos, homens e gays, este grupo de adolescentes passeava pelas noites de Nova York em busca de diversão sem limites e, cada um em seu momento, descobriu que o melhor jeito de não deixar a noite parar era comandando o som da festa. Nomes como David Mancuso, Francis Grasso, Nicky Siano, Steve D’Acquisto e Michael Cappello, e mais tarde Larry Levan, Frankie Knuckles, Walter Gibbons, Tee Scott, François Kervokian e David Rodriguez, assumiam o controle dos fonógrafos para despejar sobre a pista de dança as sementes do fim da música pop como conhecíamos até então.
Cada um destes sujeitos (todos com seu lugar de honra na árvore genealógica do DJ) entendeu o ritmo como vínculo unificador do espírito da noite e dispôs-se a tentar a utopia de George Clinton, uma nação sob o mesmo ritmo. Mais do que isso, propunham um planeta ao som do mesmo ritmo, recorrendo a discos vindo de diversas partes do planeta. A ampla paleta de cores sonoras adquiridas por estes DJs era reflexo da própria noite, em que diferentes culturas, raças, religiões e classes sociais se reuniam sob o mesmo teto. Assim, enfileiravam clássicos do rock com lados B instrumentais de grupos de funk, seguidos de bandas africanas elétricas, combos acústicos de ritmos latinos, percussão brasileira, cantos árabes e outras possibilidades sonoras à disposição. Estes sujeitos se enfiavam em lojas de discos (novos ou usados) procurando músicas que ampliassem ainda mais o espectro de suas noites, e que fizessem todo mundo dançar.
Assim, aos poucos foram entendendo o mecanismo da pista de dança. Surgiram as evoluções técnicas: músicas que se encaixam nas outras, variações na rotação de algumas faixas para o ritmo da festa continuar o mesmo, alterações de volume, efeitos sonoros, bateria eletrônica, mestre de cerimônias, efeitos sonoros e luminosos, malabarismo de discos… Tudo que estes DJs queriam eram que seu público ficasse impressionado com seu talento para conduzir uma noite, uma qualidade egoísta e comunitária ao mesmo tempo, já que um bom DJ garantia uma ótima festa.
Nestas mutações musicais, a canção deixa de ser imprescindível. O ritmo vem por cima de tudo e o groove passa a ser o item mais associado à pista de dança. Os novos refrões passam a ser os riffs de guitarra, as linhas de baixo, acordes tocados em tecladões cavernosos, solos, ataques de sopro, vocais encantadores – trechos musicais que sempre acompanham o ritmo musical da noite. E todos estes elementos podem ser encontrados em canções, mas não precisam seguir a mesma fórmula de sempre para que sejam assimilados e desfrutados.
Até que, pela convergência de diversos fatores, esta cena que acontecia no underground nova-iorquino explodiu para o resto do mundo. Seus valores foram deturpados radicalmente (o protagonista de Os Embalos de Sábado à Noite, Tony Manero, era sim italiano, mas machista e estuprador) e assim foi assimilado pela massa que, até então, consumia passivamente os subprodutos dos anos 60, baladeiros enfadonhos, bandas de rock progressivo, heavy metal e pop baba. Quando o punk rock surgiu no horizonte com uma solução possível (ironicamente, “no future”), o mercado de discos abraçou a noite da Grande Maçã como sua nova galinha dos ovos de ouro.
Não é exagero dizer que a disco music mudou mais a cara da música pop do que o punk. Enquanto este último resgatava os valores originais do rock e os contrapunha às qualidades mercantilistas da indústria de entretenimento (cobrando valores subjetivos, como “autenticidade” e “fidelidade”), a disco mexeu nos pilares desta mesma indústria. Formalizou o remix, inventou o DJ, cunhou o disco de 12 polegadas, acabou com o formato top-hits das rádios, abriu o leque de influências musicais, estreitou a relação entre artistas, executivos e produtores, reeditou o conceito de casa noturna (antes clubes, depois discotecas), reinventou conceitos de publicidade e promoção, profissionalizou as relações entre música e o mundo dos negócios, entre outros pequenos mas importantes detalhes. Mas, o feito mais importante do gênero foi ter mandado o formato canção para os ares. Assim, revoluções musicais que eram fruto de mudanças no comportamento social (como o hip hop, a acid house, o trance, o techno e o noise) puderam acontecer.
(Pode-se dizer que a revolução causada pela disco é a responsável pela padronização e pasteurização do pop e pela decadente mentalidade da atual indústria fonográfica. Mas lembre-se que ainda estamos em pleno andamento do que parece ser o fim do mercado de discos como nós conhecemos – o que, olhando à distância, pode ter sido causado pela própria disco).
O fato é que logo que a disco music estourou, todo mundo estava fazendo disco, em todas as partes do mundo. Fenômeno planetário, ela varreu culturas inteiras, reunindo-as pelo mesmo ritmo, que foi cooptado por artistas de diferentes áreas musicais – dos Rolling Stones a Frank Sinatra, passando por Gilberto Gil e Rod Stewart, artistas estabelecidos de todos os lugares abraçavam a disco como novidade artística, mas sempre de olho no lucro. A mania foi além da música e virou grife de loja de discos, de casa noturna, de roupas e cosméticos, e invadiu os meios de comunicação como um todo.
Natural que surgisse uma banda que fizesse o caminho inverso dos Stones em “Miss You”. Em vez de soar como uma banda de rock fazendo disco, o Duran Duran (que começou como uma imitação chinfrim do Roxy Music) era uma banda de disco fazendo rock. Mas não apenas isso.
Antenados com seus tempos, eles surgiram em 1979, com um golpe publicitário em forma de música – algo parecido com o que os Sex Pistols haviam feito três anos antes e que ainda era imitado por bandas inglesas sem criatividade, no começo dos anos 80. O grupo formado por John Taylor, Simon Le Bon, Roger Taylor, Nick Rhodes e Andy Taylor embarcou nesta onda, mas em vez de escrever manifestos e pregar rupturas, preferiram investir na própria imagem. Se ligaram que a década que começava dava muita atenção ao visual e capricharam na embalagem. Das roupas em tons pastéis aos penteados cheios de gel fixador, passando pela postura de palco e maquiagem. Lições aprendidas nos tempos em que emulavam o glam rock, se definiram em uma passagem clássica de seu primeiro hit, “Planet Earth”: “A new-romantic looking for the TV sound”. O trocadilho (“novo romântico” com “neurótico”) seria adaptado por William Gibson para batizar o marco-zero cyberpunk, Neuromancer, de 1984. E o “TV sound” era o som que eles queriam fazer.
Daí o cuidado nos videoclipes, que tornaram a banda pioneira no gênero. Inspirando-se no visual que o cinema começava a ditar como moderno (ar blasé, mulheres maravilhosas, cores berrantes, brilho, neon), transformaram seus filmes promocionais em singles pós-modernos e tiveram na MTV seu principal veículo de comunicação. A recém-criada emissora norte-americana agradeceu os cuidados com a imagem do grupo o transformando em seu principal artista nos anos pré-Thriller. Mesmo depois do furacão Michael Jackson, o Duran continuou mandando ver no visual, se inspirando ainda mais no cinema da época (“Wild Boys” remete a Mad Max e “Hungry Like the Wolf” homenageia Indiana Jones).
Mas e o som? Seria muito fácil o grupo embarcar na onda pós-punk vigente na Inglaterra: um som hermético e dançante, seco e sombrio. Mas ele não condizia com a utopia pop que o grupo almejava. Por isso, abraçaram a disco music e o baixo que cavalga (“tum-turutum–turutum…”) surrupiado do gênero se tornaria a marca regristrada do Duran Duran.
Por isso, nem new wave nem tecnhopop, o Duran Duran fazia disco-rock. Usando descaradamente artifícios em voga, eles apareciam como uma banda pop dos anos 70 submetida a um lavagem cerebral de timbres em um laboratório de disco music. Era a contramão do que fazia o Depeche Mode, que usava a canção para as pessoas se acostumarem com a nova era tecno (ouça “Just Can’t Get Enough” e perceba que, enquanto a banda apenas repete o refrão da música, todos os clichês de timbre e ritmo usados até hoje por DJs de techno e trance vão sendo inventados, instantaneamente). O Duran fazia o caminho oposto – aproveitava-se do sucesso e da familiaridade do público com a disco para entrar no mercado.
Isso não tira nenhum mérito do grupo – e é provável que, se ele não tivesse existido, outro grupo surgiria para cumprir esta função. O fato é que o Duran usou a disco como os Raimundos usaram o forró – apenas uma forma de conseguir se encaixar no meio. Se o fizeram bem (como a primeira parte da coletânea Decade mostra claramente), é por serem bons. Mas o fato é que graças ao Duran Duran, boa parte dos valores revolucionários assimilados durante o período da disco music dissiparam-se, e deram, ao final dos anos 80 e começo dos 90, uma nova chance do rock tentar ser rebelde e revolucionário. Se aqueles valores permanecessem desde então, os moleques com camisas dos Ramones e da Harley Davidson seriam vistos como os góticos, os fãs de Harry Potter, os praticantes de RPG e os colecionadores de blues: uma tribo reclusa e irredutível, que se acha melhor que o resto da humanidade mas não tem ambições de mudá-la.
E outro.
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No dia 30 de janeiro de 1969, os Beatles subiam no terraço do prédio de sua gravadora, a Apple, para apresentar aquele que seria o último show de sua carreira. Fazendo barulho sobre Londres, sem platéia definida nem contato visual com o público, os quatro tocaram como se tocar fosse a única coisa que importasse. Como se apenas a química entre os músicos fosse responsável por todo o fenômeno beatle. Sem tocar desde 1966, quando anunciaram o fim de suas excursões após um memorável concerto em San Francisco, os Beatles subiam mais uma vez no palco que para mostrarem que eram mais que instrumentos exóticos, letras psicodélicas e truques de estúdio.
Terminava ali também a última possibilidade de manter o grupo unido. Após as dramáticas gravações do Álbum Branco (que assistira Ringo deixar a banda, além de compilar a coleção mais plural e pessoal de canções de cada membro da banda), o grupo se sentia cada vez menos coletivo. A morte do empresário Brian Epstein, seguido do fracasso do filme Magical Mystery Tour na TV britânica, pesaram astante sobre a imagem de grupo perfeito que o quarteto se apoiava. A presença de Yoko Ono e diversos projetos paralelos individuais tornavam a convivência entre os integrantes do grupo insuportável, com trocas de acusações, brigas espinhosas e conspirações traidoras para isolar determinado membro.
A briga mais cruel era a inevitável entre John Lennon e Paul McCartney. A dupla de compositores e força-motriz do conjunto se tornava um campo de batalha sangrento, vil e selvagem. A meta dos dois era a mesma – tomar conta do grupo. Depois da morte de Epstein, em 67, o grupo criou o sonho impossível que era a Apple, uma gravadora, produtora e promotora simplesmente interessada em patrocinar qualquer projeto que fosse proposto. Resultado: os Beatles perderam mais dinheiro que na época da Beatlemania, quando a inexistência de leis sobre direitos autorais tornaria o faturamento da banda bilionário.
Quase falidos e com o imposto de renda em seus calcanhares, tanto Paul quanto John sugeriram novos empresários. McCartney chamou John Eastman, sócio da Kodak-Eastman e pai da esposa de Paul, Linda. Lennon convidou Allen Klein, então empresário dos Rolling Stones, um dos maiores vilões da história do rock. Convencido pela lábia de Klein (que gritou “peguei eles!” quando ouviu sobre a morte de Brian no rádio do carro), Lennon deixou-se levar e confiou parte de sua produção ao picareta. O sujeito pôs a mão em boa parte das gravações inéditas dos Beatles e faturou com pirataria. Sempre fingindo-se de vítima.
Fora isso, George Harrison já se mostrava tenso demais naquele meio, saindo em paus homéricos com John e, principalmente, Paul. Ringo Starr já demonstrara sua insatisfação ao abandonar as gravações do Álbum Branco por ser tratado como um mero músico contratado. Todos olhavam-se com raiva e ódio, numa das fases mais barra pesadas já presenciadas por uma banda de rock.
A última alternativa, proposta por Paul McCartney, era voltar-se para a música. Voltar-se para as raízes, para o som que uniu eles no início. Sem overdubs, sem colagens de som, nem efeitos especiais: os Beatles eram guitarras-teclados-baixo-e-bateria, um conjunto feito para tocar ao vivo. Assim começaram as gravações do vai-ou-racha dos Beatles, Get Back.
As gravações começaram no início de 69 e, para elas, o grupo convidou o tecladista Billy Preston, que já havia tocado com meia Motown. Depois dele, veio toda uma equipe de cinema, disposta a capturar os Beatles em ação, criando sua música. Para preencher o espaço vazio dos estúdios da Apple (pela primeira vez não gravavam um disco em Abbey Road), colocaram refletores e holofotes coloridos, criando uma paisagem psicodélica apenas com iluminação capaz de irritar o mais calmo dos mortais. Que dirá quatro músicos que se odiavam com câmeras por detrás de seus ombros.
Assim foi a gravação de Get Back, um caldeirão de vibrações ruins sendo cozido ao som de músicas antigas e novas composições criadas no espírito do novo álbum. Para Get Back, os quatro foram ao mesmo prédio em que tiraram a foto de seu primeiro disco e recriaram uma versão cabeluda e barbuda da capa de Please Please Me. As duas fotos estampariam, mais tarde, o par de coletâneas mais memorável dos Fab Four: 1962-1966 e 1967-1970.
Na frente das câmeras, os Beatles voltavam no tempo trazendo versões viscerais para clássicos de suas adolescências como “Be Bop A Lula”, “You Really Got A Hold On Me”, “Kansas City”, “Going Up Country”, “Save The Last Dance For Me”, “Tracks Of My Tears”, “Rocker”, “Shake Rattle And Roll”, “Lawdy Miss Clawdy” e “Blue Suede Shoes”. John e Paul trariam músicas à moda antiga: “I’ve Got A Feeling” foi composta pelos dois, embora em separado; “Don’t Let Me Down” e “One After 909” (esta, pré-61) vinham de Lennon e McCartney daria “Get Back”. Os dois ainda contribuiriam com faixas a seu próprio modo. John vinha com a insistente “Dig It”, a country “Two Of Us”, a bucólica e lírica “Across The Universe” e o folk uptempo de “Dig A Pony”. Paul trouxe baladas, como “The Long And Winding Road”, “Teddy Boy” e “Let It Be”. George tinha em suas duas faixas duas brincadeiras com base no blues – a primeira misturando-a com uma valsa (“I Me Mine”), a segunda gravada de forma intimista (“For You Blue”).
E no meio de rocks de primeira, bate-bocas que ficaram históricos graças ao filme Let It Be. Paul McCartney cobrando serviço de Lennon e Harrison, cada vez mais dispersos e instáveis. George e Paul se bicam a todo momento, como irmãos se provocando. Lennon fazia vista grossa para Paul, que cantava o refrão de “Get Back” (“Volte pro lugar de onde você veio”) olhando na cara de Yoko Ono. Pra acabar com esta nuvem negra, eles decidiram sair do estúdio e voltar ao palco. O palco só não poderia ser um palco tradicional, tinha que ser algo espontâneo. Novamente, a idéia foi de Paul, que propôs fazer um show no dia seguinte no alto do prédio da Apple.
Era uma quinta-feira fria de inverno e mesmo o sol claro no céu não incomodava o frio. No terraço do prédio da Saville Row, o grupo vestiu os casacos de cada uma de suas esposas e tocou os últimos quarenta e dois minutos para uma platéia desconhecida. O público só conseguia ouvir o som vindo do céu, sem saber de que direção. Aos poucos, alguns percebiam a movimentação e se agarravam em escadas de incêndio e nos prédios vizinhos para perceberem que “sim! São os Beatles!”.
O curto show contou com dez canções. Começaram com duas versões de Get Back para esquentar, emendaram “Don’t Let Me Down”, “I’ve Got A Feeling”, “The One After 909”, “Dig A Pony”, (que aparecem no filme Let It Be), mais duas versões de “I’ve Got A Feeling” e “Don’t Let Me Down”, seguida da versão que aparece no filme de “Get Back” (que termina o show com Lennon agradecendo sarcasticamente: “Queria dizer “obrigado” para em nome do grupo e e esperamos ter passado no teste”).
Depois deste show, eles decidiram que a banda iria acabar e juntaram esforços para fazer de Abbey Road, que começaria a ser gravado em fevereiro (cinco anos depois de conquistarem os Estados Unidos no programa Ed Sullivan Show). Get Back, o disco, foi tocado até maio, quando ficou pronto, mas foi cancelado. O lado A do disco tinha “One After 909”, “Rocker”, “Save The Last Dance For Me”, “Don’t Let Me Down”, “Dig A Pony”, “I’ve Got A Feeling” e “Get Back” (a versão do compacto). O lado B era formado por “For You Blue”, “Teddy Boy” (que só veria a luz do dia no primeiro disco solo de Paul, McCartney, de 70), “Two Of Us”, “Maggie Mae”, “Dig It” (com seus quase dez minutos), “Let It Be”, “The Long And Winding Road” e “Get Back” (a versão do topo da Apple).
Depois de arquivado, o disco começou a ser pirateado por ter vazado pelas mãos de Allen Klein. Depois de seu fim, em abril de 70, o grupo entregou o material das sessões de Get Back para o lendário produtor Phil Spector, que depois produziria discos solo de John e George. Phil não respeitou o material dos Beatles e picotou-o à sua maneira. Tirou o belo teclado de The Long And Winding Road e Let It Be, acrescendo a elas coral e orquestra. Dig It se tornaria uma vinheta de 14 segundos. Uma série de diálogos dos integrantes da banda foram usados fora de contexto, criando uma paisagem inexistente de som.
O material das sessões de Get Back logo caiu nas mãos dos pirateiros. Além do disco original, todas as versões alternativas e os rascunhos para Abbey Road se tornaram a segunda maior fonte de pirataria beatle, perdendo apenas para as sessões da BBC. O material da rádio inglesa já foi lançado de forma oficial, mas o de Get Back não. Muita gente especula a possibilidade de, daqui a alguns anos, os Beatles voltarem à mídia com mais um disco duplo, algo como The Get Back Sessions. Que seria, ao lado de Live At The BBC e dos três volumes de Anthology, um best of da pirataria do grupo. Que seria reeditada em toda extensão, num futuro não muito distante. Mas isso é outra história.
Outro texto ressuscitado.
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“‘Shout’ faz parte do primeiro cânone do rock’n’roll. Influenciamos os Beatles. Tivemos hits na Motown. Jimi Hendrix tocou em nossa banda antes do festival de Monterey. Tivemos hits nas eras do funk e da discoteca. Rappers sampleiam-nos. Você pode ouvir nossa música em estádios, em filmes, em comerciais. Ninguém tem esse tipo de currículo”. Ernie Isley tem razão. Ninguém, na história do rock durou tanto tempo, passou por tantas mudanças e continuou importando em toda sua existência como os Isley Brothers. São quase 60 anos na ativa, ajustando-se à modernidade sempre com estilo e personalidade. Uma carreira finalmente festejada na belíssima caixa de três CDs It’s Your Thing: The Story of the Isley Brothers, lançada no final do ano passado.
A história dos Isley Brothers começa quando o chefe do clã Isley, um sujeito enorme e respeitável de fala mansa mas de objetivos bem definidos, chamado O’Kelly aproxima-se de Sallye Bernice em um encontro familiar, revela-lhe seu desejo de tornar-se seu marido e de dar-lhe uma tropa de filhos que se tornaria uma trupe de artistas. Vindo do emergente showbusiness, O’Kelly percebeu como poucos empresários o potencial da indústria de entretenimento no jovem século 20 e apostou a própria linhagem como estava certo. Precisava apenas encontrar a parceira correta. Naquele dia no meio dos assustadores anos 30 (que começara com uma falência financeira massiva e terminaria com uma guerra mundial), o patriarca Isley pousou o pesado olhar sobre a bela pequena e sabia que seu futuro estava começando. Mudaram-se para Lincoln Heights, um subúrbio de Cincinatti, Ohio.
E as crianças nasceriam. O’Kelly Jr., Rudolph, Ronald e Vernon entrariam no mundo da criação artística como muitos antes deles. Na igreja, foram apresentados não só ao gospel como à importância de se entregar à uma performance. Em casa, seu pai lhes alimentava com diferentes músicas, acostumando-os a todos os estilos para que retirassem o melhor de todos eles. Eram os Isley Brothers e logo estariam em programas de televisão ao lado de artistas como Dinah Washington, Erskine Hawkins e Nat King Cole. Inspirados no grupo Billy Ward and the Dominos, eram um quarteto vocal mirim que começava a fazer sucesso no circuito de doo-wop.
Mas algumas coisas fugiram dos planos do pai Isley. Primeiro foram os nascimentos dos caçulas Ernie e Marvin, uma década e meia após o nascimento da primeira safra. Depois veio a trágica morte de Vernon, atropelado por um caminhão quando andava de bicicleta. Finalmente, o velho O’Kelly previu que não estaria vivo para ver o sucesso dos filhos, para horror da família. Mesmo assim, fez com que seus filhos voltassem à vida artística mesmo após a morte do irmão, que havia suspendido suas apresentações.
Como havia previsto, O’Kelly morreu em 1956, o mesmo ano em que os irmãos decidiram embarcar para Nova York, tentar a sorte na cidade grande. Descobertos na rua por Richard Barrett (que havia descoberto artistas como Frankie Lymon and the Teenagers, Chantels, Crows, Little Anthony, entre outros sucessos da era pré-rock’n’roll), o trio foi contratado por George Goldner, que fez fama sobre os nomes encontrados por Barrett. Mas com os Isleys não seria tão fácil e o grupo gravou cinco singles que não deram em nada. Até que o próprio grupo sugeriu à sua nova gravadora (a RCA) que gravassem um número que fazia sucesso nos shows, chamado Shout. Não era nem uma música, era “uma coisa”, como eles mesmos diziam. Atiçando a multidão a gritar “shout!” (“grite!”), a faixa se limitava a um jogo de pergunta e resposta feito entre artista e platéia, um número conhecido das missas gospel. Os Isleys apenas traduziram-no para o rock e tiveram um hit instantâneo.
Mas um só não era suficiente. Depois de alguns singles sem sucesso, o grupo voltou à estaca zero. Havia mudado-se em definitivo para Nova Jérsei, ao lado de Nova York, mas os discos não estavam vendendo. Até que caíram nas mãos do empresário Bert Berns, que mais tarde seria responsável pela autoria de hits como “Piece of My Heart” (gravada por Janis Joplin e Dusty Springfield) e “I Want Candy”, além de descobrir talentos como o Them e os Drifters. Foi ele quem decidiu dar ao grupo um single que já havia gasto com o grupo Top Notes (numa versão produzida por um novato Phil Spector). Mas adaptá-los ao novo número era justo, afinal fora “Shout” uma das inspirações para “Twist and Shout” (a outra, claro, seria “The Twist”, de Chubby Checker). Com os Isley Brothers, “Twist and Shout” ganhou sua primeira versão notável – mas não sua definitiva. Esta chegaria através de um novo grupo inglês que incorporaria hits dos jovens Isleys em seu repertório. Mas seria a versão dos Beatles para “Twist and Shout” um dos principais carros-chefe para a invasão da Beatlemania. O sucesso puxado pela explosão dos Beatles afetou quase todos os artistas que eles gravavam e logo os Isleys estariam na Inglaterra, excursionando com um jovem pianista que mais tarde passaria a atender por Elton John.
Mas enquanto estavam na Inglaterra, as coisas mudaram. Com a Beatlemania veio a invasão britânica e vários grupos como Rolling Stones, Animals e Yardbirds se debruçariam sobre a música negra americana ganhando o mercado branco e tomando lugar nas paradas de rhythm’n’blues. Como todos os artistas negros no começo dos anos 60 (à exceção louvável de James Brown), os Isley Brothers tiveram que se adaptar ao rock inglês e logo montariam uma banda. Mais do que isso: montariam seus próprios shows e gravariam seus próprios discos. Fundaram a gravadora T-Neck e logo um novo talento em Rudolph e Kelly afloraria. Juntos, os irmãos mais velhos seriam responsáveis por toda a estrutura por trás do conjunto, procurando músicos, conversando com empresários, fechando contratos e shows. Ronald foi liberado para mostrar seu verdadeiro talento vocal, com sua voz macia que se tornaria marca registrada do conjunto.
Foi Rudolph quem descobriu o jovem Jimmy Hendricks e o trouxe ao convívio dos Isleys. Além de talentoso, Jimmy provara ser praticamente um irmão do conjunto. Passou a morar com o grupo e se tornaria o vínculo entre os três mais velhos e os dois mais novos, provocando-os a pegar nos instrumentos dos irmãos quando estes não estavam vendo. Fazia tudo com a guitarra em punho e desde o início provava seu talento no instrumento. Singles como “More Over and Let Me Dance” e “Testify” (este último o primeiro lançamento da T-Neck) mostravam que o jovem guitarrista tinha um futuro e tanto pela frente. Largou o grupo e continuou sua carreira, voltando aos holofotes poucos anos depois, com seu novo grupo, Experience, e mudando a caligrafia de seu nome. Agora se chamava Jimi Hendrix e nem o rock nem a guitarra jamais seriam os mesmos.
Enquanto isso, os Isleys baixavam a guarda à toda poderosa Motown, a principal gravadora negra americana nos anos 60, que vinha há tempos paquerando o grupo. Foram recebidos como astros e tiveram tratamento de primeiro time ao serem entregues às mãos dos mesmos Holland-Dozier-Holland que haviam produzido hits para Marvin Gaye, os Four Tops e as Supremes. Havia se tornado questão de honra para a Motown produzir mais um hit para os Isleys e este foi “This Old Heart of Mine”, uma baladaça no velho estilo da gravadora de Berry Gordy, em que Ronald deitou e rolou. Mas o grupo era a ovelha negra entre os ternos e vestidos claros da Motown, sequer moravam em Detroit e fugiam do padrão industrial que todo artista ali era submetido. O segundo single, “Take Me in Your Arms (Rock Me a Little While)”, mantinha a qualidade mas não teve o mesmo sucesso comercial. Percebendo que seu destino fosse andar com as próprias pernas, nunca com a ajuda dos outros, mais uma vez os irmãos deixaram seu antigo patrão para tentar a sorte com as próprias asas.
Enquanto isso, Ernie e Marvin cresciam ouvindo não apenas a música que os irmãos faziam, como todo o resto. Quando o primeiro disco de Jimi Hendrix viu a luz do dia, ele deu um estalo em ambos caçulas que passariam a dedicar-se a ensaios secretos com Ernie à bateria, Marvin no baixo e o cunhado Chris Jasper ao teclado, que metiam as canelas adolescentes no pegajoso pântano do funk. Procurando opinião da família para uma música que havia acabado de compor, Ronald desceu ao porão e encontrou os três moleques numa tremenda jam session. A atmosfera o inspirou a cantar a nova música sobre a base pesada dos irmãos e o resultado foi a contagiante “It’s Your Thing”, que batizaria o novo disco do grupo, o primeiro álbum pela ressuscitada T-Neck.
A música os colocou como pioneiros do funk, uma novidade que a música negra havia produzido nos anos 60 e que reinaria na década seguinte. O ano era 1969 e as duas principais gravadoras negras daquela década (a Motown e a Stax) mostravam que suas fórmulas estavam desgastadas. Era preciso reinventar-se e os Isley Brothers perceberam isso antes que todo mundo. Depois que os Isleys atravessaram a barreira entre a soul music e o funk, artistas como Isaac Hayes, Marvin Gaye, Temptations, Stevie Wonder, Booker T & the MGs, entre muitos outros atravessaram uma fronteira que poucos (James Brown, Sly Stone, George Clinton) haviam conseguido. O sucesso do agora sexteto (embora oficialmente ainda um trio) foi fundamental para que a música negra percebesse que era possível a transição para um novo gênero sem que o artista se descaracterizasse.
Mas era apenas o começo da era funk dos Isleys. Discos como The Brothers: Isley (com “I Turned You On” e “The Blacker The Berrie”), Brother Brother Brother (com a faixa-título, “Lay Away” e “Work to Do”) e Get Into Something (com a faixa-título, “Keep On Doin’” e “Freedom”) amadureceriam ainda mais o grupo, que aprofundava-se cada vez mais na alma humana, engajando-se numa política humanista que parecia ser uma conclusão de seu trabalho em família. Uma comunhão entre gêneros tão distintos quanto doo-wop, soul e gospel era encontrada por baixo do peso espetacular que a nova cozinha dava pro grupo. O grupo aceitou um desafio pessoal ao embarcar no disco Givin’ It Back, em que dava arranjos cobertos de melanina para hits de artistas brancos, como Neil Young (“Ohio”), Stephen Stills (“Love the One You’re With”), James Taylor (“Fire and Rain”), Carole King (“Nothing to Do But Today”) e Bob Dylan (“Lay Lady Lay”).
A participação dos novatos logo passou a ser importante o suficiente para comprometer o processo de criação e os irmãos mais velhos decidiram oficializar os outros três no grupo. Agora acompanhados pelo firme baterista George Moreland, os novos Isley Brothers agora eram seis elementos e a fusão das gerações foi orgulhosamente anunciada na capa e no título do álbum do grupo de 1973, 3 + 3. A nova formação trazia uma sutil mas importante mudança. Ernie havia deixado as baquetas para assumir a guitarra e o resultado deixou os irmãos mais velhos boquiabertos. Um improviso sobre a velha “Who’s that Lady?” (lançada pelo grupo em 1964) foi o suficiente para o grupo ter certeza de relançá-la, com o novo arranjo dado pela guitarra emborrachada de Ernie.
Os anos 70 continuaram com grandes discos, ajudando a criar a disco music competindo cabeça a cabeça com outros titãs da black music, o Earth Wind & Fire. “Competíamos pela atenção dos executivos de nossa gravadora. Competíamos contra o outro nas paradas. “That’s the Way of the World” contra “Fight the Power”. “I Love Music” contra “For the Love of You”. Era negócio sério”, lembra Ronald no encarte da caixa. Os hits vinham em discos como Live it Up (“Midnight Sky”, “Hello It’s Me” – de Todd Rundgren! – e a faixa-título), The Heat is On (“For the Love of You”, “Make Me Say it Again Girl” e “Fight the Power”), Go For Your Guns (com “Voyage to Atlantis”, “The Pride” e “Footsteps in the Dark”), Showdown (com “Groove With You”), Mission to Please, Harvest for the World e Between the Sheets (os três últimos sucessos com suas faixas-título). Até que o ano de 1985 assistiu o primeiro desfalque no grupo, quando os três caçulas saíram e lançaram o poderoso Caravan of Love como Isley Jasper Isley.
Novamente a morte uniu os irmãos, quando o primogênito Kelly morreu durante o sono em 1986. A morte de Kelly fez com que Rudolph passasse a se dedicar à igreja, deixando de lado o showbusiness. O som dos Isleys iria demorar para voltar a ter o brilho de outrora, mas este era polida por toda a nova geração do rap. Do Public Enemy ao Dr. Dre, os principais nomes do gênero da década de 80 deram ao grupo o respaldo artístico que a crítica dos anos 70 fingia não ver. O sucesso restaurado do grupo fez com que eles entrassem nos anos 90 como um dos primeiros nomes do Rock and Roll Hall of Fame, sendo indicados no mesmo ano que Hendrix, 1992.
Nada mal para uma família que passou por todas as etapas da história do rock quase incólume, tentando se adaptar e criando regras para cada novo gênero que o mercado parecia impor. Andando por conta própria, os Isleys cresceram ao apostar neles mesmos, num exemplo de autodeterminação e força de vontade contada por uma caixa com mais de três horas do melhor da música negra. “Até mesmo hoje, quando estou para cantar uma faixa, eu penso como será que Sam Cooke cantaria. Ou como Ray Charles deveria estar fazendo”, explica Ronald, “Então eu percebo: ei, não preciso esperar por eles. Posso fazer eu mesmo”. A síntese do pensamento de uma linhagem histórica, sangue bom que fez com que o mundo acompanhasse o ritmo que eles quisessem que o mundo dançasse. Afinal de contas, como eles mesmos disseram: “It’s your thing/ Do what you wanna do”.
Dica do compadre Fred, que emenda o link pra geral aprender.
…depois dessa, tcho zarpar pro Skatalites. Depois eu conto, sério.
O último ressuscitado do dia, prometo.
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Apesar de dividir sua banda com Steve Malkmus, do Pavement, Dave Berman é categórico ao afirmar que, se podemos falar de projeto paralelo nessa história, é o Pavement que é o projeto paralelo do Silver Jews. Explica-se: uma vez que formou sua banda no fim dos anos 80, convocou os colegas de faculdade Steve Malkmus e Bob Nastanovich, antes mesmo deles montarem o Pavement, para ajudarem na parte instrumental de seu projeto musical, batizado de Silver Jews. Com o estouro do Pavement em 92 (graças ao magnum opus do lo-fi, Slanted and Enchanted), os olhares sobre a banda de Berman triplicaram e todos passaram a se referir ao grupo como um brincadeira alheia de Steve Malkmus.
Mas basta passear por American Water, o segundo disco da banda, pra saber quem manda. Berman gosta de escrever sobre coisas comuns, sobre a vida real, sobre situações reais e de balbuciar sua voz preguiçosa por cima de suas letras.
Seu novo disco é fruto de sua nova filosofia de vida, inventada por ele mesmo, que a chama de “Nova Abertura” (New Openness). Interessante e prática, ela prega que você deve fazer exatamente o que tem vontade de fazer o tempo todo, seja isso uma coisa ruim ou boa. Não conter-se, deixar-se soltar o tempo todo, não guardar segredos nem sentimentos.
Sem querer esconder, ele já abre American Water explicando seu novo estilo de vida em “Random Rules”. Explica que “em 1984 fui hospitalizado por aproximar-me da perfeição” e passa a reconhecer a naturalidade do erro como parte da vida (e, mais, a perfeição é encarada como doença, anormalidade). “Não existe guia quando quem manda é o acaso”, esclarece no refrão, “ninguém deve ter duas vidas/ E agora que você já sabe que meu nome do meio é certo e errado/ Temos duas vidas pra nos darmos hoje à noite”.
Continua contando as vantagens de sua vida aberta em “People”: “Momentos podem ser monumentos pra você/ Se sua vida é interessante e verdadeira”. E fala de aproveitar a beleza real de momentos simples: “Eu adoro ver arco-íris na mangueira de jardim/ Gosto da cidade e da chuva na cidade/ Garotos suburbanos com nomes bíblicos”. Conclui esticando as pernas que “faz sol e calor e é ótimo estar vivo”.
O que ele prega é que em vez querermos passarmos uns por cima dos outros, pra subir na vida, vamos continuar do jeito que estamos e aproveitar as coisas boas que a vida nos proporciona em cada momento. Esquecer-se da própria individualidade em prol de um futuro incerto é sinônimo de infelicidade e ele continua a falar sobre isso. “Fomos educados com réplicas de estradas tortuosas e falsas/ E dia após dia tocamos pandeiro em troca de salário mínimo neste belo cenário” (em “We Are Real”), “você acredita em finais MGM?” (“Like like the the the Death”).
E sem papas na vida, ele cria belíssimas imagens de situações rotineiras, pelo simples ato infantil de observar e deixar-se comparar sem pensar se vai soar ridículo ou não. “Minha roupa de esquiar tem botões que parecem espelhos de loja de conveniência/ E eles me ajudam a ver, que todo o quarto agora é parte de mim”, “os becos são as notas de rodapé das avenidas”, “Quando algo quebra faz um som bonito”, “Deixe o espelho expressar o quarto”. Uma bela surpresa é o country de coração partido de “Honk If You’re Lonely Tonight”, em que o autor diz que seu sorriso parece esconder sua dor, mas que o adesivo no pára-choque do seu carro (o título da música – “buzine se estiver solitária hoje à noite”) entrega tudo.
Musicalmente o grupo soa tímido, bêbado e aliviado ao mesmo tempo, como se Nick Cave nascesse na Califórnia. A base musical tem elementos de rock, folk e country, mas tudo tocado de forma despretensiosa e sem firulas, em especial a bela guitarra de Malkmus, em algum lugar entre Tom Verlaine e Robbie Robbertson. Para os fãs do Pavement, American Water soa como um apêndice a Brighten the Corners, com Malkmus mais do que à vontade com o pop formal. Mas é impossível pensar em Pavement depois de três ou quatro audições – Berman convence-lhe fácil que ele é o assunto aqui.
Entrevista revisitada, atachada com a resenha acima…
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Com quem Dave Berman resolver fazer música, ele é o Silver Jews. O rock desleixado e descompromissado coberto de letras francas e simples – a tal filosofia Nova Abertura – é tudo culpa de Dave, cujo vocal grave lidera os livros de contos que são seus discos. O problema é que entre os colaboradores de Dave estão Stephen Malkmus e Bob Nastanovitch, ambos do Pavement, o que faz muita gente pensar que o grupo é um projeto paralelo dos autores de Crooked Rain Crooked Rain. Segue um papo sobre isso e outras coisas com o cético Berman.
O que é a Nova Abertura?
É um nome de mentira para uma iniciativa real: a rejeição da ironia como uma estratégia artística. No Estados Unidos, a ironia se tornou um gás sufocante que sai da boca de qualquer figura público. A idéia é simples: diga o que você quer, queira o que você diz.
E isso não te torna bastante público? Não é como se despir em público?
É justamente o contrário. Expressar seus sentimentos é uma necessidade que todos têm. Nossa cultura definharia e morreria sem isso. Todos viveriam melhor se pudessem andar sem as roupas na rua.
Você tem algo contra a ficção ou a fantasia?
Precisamos de música e de arte que cubra toda uma área. Fantasia é tão valiosa quanto a dura realidade. O conflito entre as duas é o impulso que nos faz progredir.
E como esta idéia lírica se encaixa com a música? Como você encara a música dos Silver Jews?
Eu gosto de acordes leves e machucados. Sons orgânicos feridos. Resoluções pacíficas. Paz que parece morte, mas que não é morte.
E sua relação com o Pavement? Você sente-se mal ao ficar na sombra do grupo?
Eu gosto, porque as pessoas descobrem a música. Não importa como eles cheguem, pra mim está bom. Se a associação com o Pavement persiste depois que as pessoas me conhecem é um tanto desolador, mas é minha culpa se a música não se destingue como própria o suficiente para ser percebida como própria.
O nome Silver Jews vem de onde?
É inventado. Ninguém se lembra direito. Apareceu num dia e parecia ser o ideal. São apenas duas palavras legais de serem ditas em voz alta.
E o nome do disco, American Water, como surgiu?
Tem uma raça de cachorros que se chama American Water Spaniel. Eu estava levando meu cachorro ao veterinário quando eu vi este nome num pôster sobre raças de cães. Aquela noite eu sonhei com este nome e ele ficou.
E qual sua relação com a crítica? Você lê suas resenhas?
Eu leio as resenhas. Eu não acho que a imprensa musical aqui consegue fazer seu trabalho. Aqui nos Estados unidos não existem críticos com suas próprias vozes. Eles são apenas cafetões do status quo. A escrita é muito semelhante à da publicidade. Eles são uma droga e é uma situação chata.
Por que você não faz shows?
São muitos motivos para serem listados. Não é digno, pra mim. Eu acho que os discos bastam. Turnês interromperiam o ritmo da minha vida. É como uma infância suspensa. Estou tentando viver como um adulto. Não nasci para estar sob os holofotes, num palco. Eu sou o observador, não o observado. É que parece errado para a minha natureza.
O que você está ouvindo hoje em dia?
Blue Öyster Cult, Jerry Jeff Walker, Jackson C. Frank, U.S. Maple e O Clube da Esquina, do Milton Nascimento.
Entrevista feita em abril de 1999
Mais um…
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Amor comum
O Yo La Tengo canta a paixão sem adjetivos em seu belo novo álbum, ‘And Then Nothing Turned Itself Inside-Out’
É difícil estar apaixonado quando não se tem nada a oferecer. Ou pelo menos aquilo que os outros querem. Veja a TV, as revistas, os outdoors: eles vendem uma beleza magra e saudável, um humor inteligente e direto, uma cultura vasta e plural, uma eloqüência carismática espontânea. Você sabe que a vida real não é assim, todo mundo sabe, mas ninguém se importa. Todos compram o que se vende nestas malditas imagens que o capitalismo usou para funcionar como vitrine do senso comum, manipulando-o. Tenha uma destas características a menos e mais difícil será ser aceito no convívio social.
Por isso apaixonar-se é um problema. Com beleza, humor, cultura e papo, tudo fica mais fácil ou menos difícil. Mas quando não se tem nada a oferecer, a timidez torna-se uma parede que esconde o lado realmente bom das pessoas, desprezado pelo marketing. Sua cara-metade pode ser uma pessoa sem qualidades sociais, mero espectador dos “artistas” que a vida – em todas as esferas – destaca. Uma pessoa que nunca vai chamar sua atenção e que se fizer algo neste sentido vai com a certeza que estragará tudo quando abrir a boca ou pousar o olhar. O cortejo social que conhecemos por paquera torna-se um momento de suplício, um fim inatingível.
Ira Kaplan e Georgia Hubley eram assim. São pessoas comuns até demais, não se destacam em qualquer multidão, seja numa sala de aula ou num ônibus lotado. Figurantes no mundo das estrelas, os dois se encontraram sem querer e depois de conversar um pouco sobre música, estavam apaixonados. Músicos na intimidade, começaram a tocar juntos ao mesmo tempo que se descobriam, ele guitarra, ela bateria, revezando-se nos vocais como todo casal apaixonado. Os dois em Hoboken, o mesmo subúrbio de Nova York que viu nascer Frank Sinatra e os Feelies, ele ainda trabalhava mixando bandas num estúdio de fundo de quintal, enquanto ela fazia curtas de animação com a irmã. À procura de um baixista, atravessaram a segunda metade dos anos 80 moldando apaixonadamente seu som.
Graças a um amor quase inconfesso no início, a banda atravessou toda a década de plástico e entrou nos anos 90 com uma moral de respeito, ainda que pequena. Fiéis à reputação, foram aprimorando sua sonoridade tímida e ruidosa à medida que gravavam discos, encontrando finalmente no gordo James McNew o ponto de equilíbrio entre o casal.
Que voltou a se apaixonar. Desde que descobriu sua fórmula no álbum Painful, o Yo La Tengo vem lançando um disco melhor que o outro e é difícil separar esta fluência musical da ótima relação entre os três integrantes. Mas a força magnética que mantém o grupo unido é claramente o amor entre Ira e Georgia, joão e maria ninguém do universo pop, que despreza qualquer tipo de padrão exterior de beleza e aceitação, numa busca quase zen da bondade interior.
Este personagem é recorrente. O nerd que recolhe-se do mundo social em seu quarto, com livros, discos e filmes e canta sua dor e beleza é um dos principais arquétipos na história do rock. De Buddy Holly a Kurt Cobain, passando pelo Pavement, Joy Division, Chemical Brothers, Weezer, Radiohead, Cure, Devo, Smiths, Belle & Sebastian e milhares de outros nomes. Uns se consideram loucos, outros são a escória assumida do mundo, outros ainda uma elite sofisticada e todos se unem pelo simples fato de usarem este exílio do mundo real um meio para expor sua própria individualidade.
O que o Yo La Tengo propõe é o amor e a paixão dentro deste personagem. Mas não de um ponto de vista platônico, inatingível. Ao formar um casal, a dupla central do grupo expõe-se como a concretização deste amor, uma prova que isto é possível. Poucos casais na história do rock agem desta forma, quietos e cabisbaixos, trocando confidências entre acordes e ritmo. A grande maioria dos casais são rockers até o último fio de cabelo – Thurston e Kim, Patti e Fred Sonic, Mick e Marianne, Exene e John, Sid e Nancy. Poucos casos colocam casais tímidos dentro de projetos musicais, entre eles o Talking Heads e o New Order. Fora dos Heads (e da sombra de David Byrne), Chris e Tina exploraram toda a sensualidade rítmica de sua química com o nome de Tom Tom Club (autores da jóia “Genius of Love”). Fora do NO (e da sombra de Sumner e Hook), Stephen e Gillian deslizavam carícias sintéticas como The Other Two.
Como os dois casais, Ira e Kaplan também namoram na música. Enquanto Tina Weymouth e Chris Franz embarcam com o ritmo e Gillian Gilbert e Stephen Morris se atém às texturas eletrônicas, o casal do Yo La Tengo fica com a guitarra e os outros instrumentos (teclados, caixas de som, baixo, pedais de distorção) que possam soar tão valvulados e intensos como a sonoridade de quem são herdeiros, do Velvet Underground. Mas se tanto o Tom Tom Club quanto o Other Two apenas insinua o amor entre os músicos através do som, o Yo La Tengo sempre cantou o amor. E, apaixonados como estão, fizeram um disco inteiro sobre o assunto. And Then Nothing Turned Itself Inside-Out canta a paixão de gente comum, sem o glamour do cinema ou os maneirismos da TV.
“Eu me lembro um dia de verão/ Eu me lembro ir em sua direção/ Eu me lembro ter corado/ E eu me lembro olhando meus pés/ Eu me lembro antes de nos encontrarmos/ Eu me lembro sentar ao lado de você/ E eu me lembro fingir não estar olhando”, Ira confessa à medida que encolhe sua voz para dentro na bela “Our Way to Fall”. É um amor palpável, de olhares cruzados em filas de espera e calçadas, longe do romantismo ideal idealizados pela mídia. “Se você quer meu amor/ Pegue baby”, entrega-se Georgia no hit potencial “You Can Have it All”, “Se você quer meu coração/ Pegue baby/ Pode pegar tudo”. De repente o casal está em plena crise existencial e Ira se vê confessando-se às paredes: “O que eu perdi aqui? O que você não consegue mais agüentar? Espero um suspiro, ouço a porta bater/ Você diz que tudo que fazemos é brigar/ Ih, eu não sei se isso é verdade/ E penso se estou certo ou se isso é parte do problema/ Talvez esteja fora de mim, bloqueando a realidade/ Mas parece apenas uma coisa: você não quer ouvir, eu não consigo me calar”. Em “Last Days of Disco”, o clima é de filme dos anos 50 (só que nos anos 70): “Te vi numa festa/ Você me tirou pra dançar/ Eu disse que a música não era boa pra dançar/ Eu não danço muito/ Mas dancei/ E fiquei feliz por dançar/ E a canção disse “Vamos ser felizes”/ Eu fiquei feliz/ Nunca havia ficado feliz antes/ E a canção disse “Não fique só”/ Me senti só/ Ouvi e fiquei cada vez mais assim”.
A sonoridade tem aquele astral de paisagem que só a paixão consegue trazer e qualquer silêncio é música, olhos fechados soam como a melhor canção. Depois de exorcizar o instinto primitivo no disco com Jad Fair, o grupo voltou ao lirismo e à doçura com delicadeza e sentimento. Colocando à frente o casamento entre o som da guitarra base distorcida e de velhos teclados elétricos, o ritmo do grupo é quase metronômico e a voz de Georgia consegue ter mais doçura (e ser menos infantil) que a de Moe Tucker, do Velvet. Compenetrado entre os teclados, a guitarra e a coleção de discos, Ira é um Johnattan Richman (dos Modern Lovers) em câmera lenta. McNew, fiel escudeiro do casal, assume a função necessária sempre que preciso, seja no baixo, na percussão, na guitarra ou nos teclados. O disco passa como nuvens no céu, sem se preocupar com quaisquer outros ritmos. À exceção de “You Can Have it All”, da bossa lounge “Tired Hippo” e “Cherry Chapstick” (uma versão para uma velha canção de KC & the Sunshine Band em que o grupo encarna o Sonic Youth), todo o disco lembra aquelas conversas a dois no escuro do quarto, que o resto do mundo sai com a luz e ninguém mais existe.
“Apesar de você não acreditar em mim, você é forte/ Escuridão sempre transforma-se em aurora/ E você não vai lembrar disso/ Quando acabar”, consola Georgia em “Tears Are in Your Eyes”. “Algumas vezes em alguns dias/ Eu não estava cego, mas agi desta forma/ Te causando dor, agora tenho de explicar/ Quando o sentimento de vazio passa do escuro à tristeza/ Eu não acredito que isso nunca aconteceu contigo/ Eu vi na TV e ri muito/ Mas é como me sinto agora”, Ira confessa baixinho. “Vamos dormir uma noite pacificamente”, convida Georgia, passando a mão entre os cabelos do marido, em “Night Falls on Hoboken”. Boa noite.
Outro texto velho.
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Perfeição palpável
A estréia de Badly Drawn Boy – ‘The Hour of Bewilderbeast’ – é um disco que reúne duas qualidades difíceis de se encontrar no pop atual – verdade e beleza
Utopia é um lugar longe. É feito pra ser longe, pra nunca se chegar lá. Lá tudo é perfeito, as coisas organizam-se da forma mais simples e funcional possível, ninguém faz mal a ninguém, todo mundo é feliz. Mas não existe por concepção, é utópico, inatingível. A arte faz nossa conexão com a utopia, criando universos paralelos em que a perfeição é palpável, verdadeira.
Mas até na arte a utopia pode se tornar distante. Ao propor um mundo diferente do nosso, o artista se distancia da realidade o suficiente para entrar na ficção e sabermos que é tudo um sonho. Para a perfeição artística chegar próxima, o artista precisa se despir da individualidade e fazer-se entender numa linguagem universal. Por isso a música é o meio mais popular e o amor é um tema tão cantado – de todos, são os mais fáceis de entender. Essa combinação é praticamente o oxigênio da música pop.
Mas não é fácil tirar sua personalidade de cena e deixar a obra ganhar vida própria. É um processo de generosidade muito intenso, o artista precisa ter um desprendimento quase beatífico em relação a seu trabalho para considerá-lo maior que ele mesmo. Mas quando os ponteiros se acertam e o fruto do trabalho passa a ser o alicerce deste, surgem jóias. Estamos falando de preciosidades do quilate de Revolver (dos Beatles) e Pet Sounds (dos Beach Boys). Nestes dois discos (e em outros e de outros artistas, mas estes exemplificam melhor a situação), os grupos sabiam que o mais importante era ter uma resposta imediata do ouvinte, que ele se identificasse imediatamente com aquela música. E todos sabiam que o ouvinte é qualquer um – por isso, quanto mais abrangente for o tema (e por isso, o amor), mais fácil as pessoas irão se identificar com a música.
Mais do que isso: por mais ousado que se tentasse ser musicalmente, é preciso deixar que o ouvinte descubra a ousadia vindo do pop. Aqueles que percebem a audácia musical não são o público-alvo porque estes se importam com a assinatura do artista. O ouvido público quer descobrir um segredo dentro de uma música pop, por conta própria. Esta mágica proporcionada pela música popular faz com que qualquer um possa vir com um refrão irresistível e se tornar uma mania, só pela qualidade da canção composta. Coisa que é mais comum que podemos imaginar, devido à quantidade de artistas que desaparecem após um único sucesso.
Damon Gough sabe disso e preferiu se preservar. Ou melhor: preservar sua música. Adotou um nome sem o menor apelo comercial (Badly Drawn Boy – Garoto Mal Desenhado) e passou a costurar sua reputação com zelo e paciência. Trabalhando belas canções com produção de baixa qualidade (filiando-se a este gênero sem forma chamado lo-fi), ele passou o ano passado inteiro lançando EPs que não davam pistas sobre o caminho que parecia seguir. Em sessões particulares, aos poucos ia convencendo artistas e jornalistas ingleses (e depois um pequeno culto sempre crescente de fãs) de seu potencial – usando apenas suas canções.
Mas em disco, nada era esclarecido pelo cantor inglês. Pra piorar a situação, ele ainda foi convidado a participar com uma música ao megaprojeto U.N.K.L.E., do dono da gravadora Mo’Wax James Lavelle e do mestre DJ Shadow. Juntos, os dois cozinharam um álbum por três anos e convidaram algumas figurinhas mais importantes do pop alternativo (Mike D, dos Beastie Boys; Thom Yorke, do Radiohead; Ian Brown, ex-Stone Roses; Richard Ashcroft; ainda no Verve) para dar sua palhinha. No meio dos figurões que estrelaram Psyence Fiction, lá estava Badly Drawn Boy com sua “Nursery Rhyme”. Guitarras pesadas e vocal reto, confundia ainda mais aqueles que tentavam o decifrar. Seria ele o Beck inglês? O Elliot Smith inglês? Um John Lennon campestre? Um novo Nick Drake? As dúvidas eram tão pertinentes quanto o consenso de que aquele novo músico ainda iria dar o que falar.
Com seu primeiro álbum, The Hour of Bewilderbeast, ele não apenas confirma as expectativas como torna-se ainda mais promissor. Como? É o segredo lá do começo do texto: as músicas falam de amor, mas de uma forma táctil, reconhecível. Sem nenhum requinte técnico na produção (o que dá um charme rústico ao disco), as canções surgem docemente sólidas, jóias de música pop que tornam a perfeição palpável. Invertendo a lógica pop imortalizada pelos Rolling Stones, é a canção, não o cantor, que importa.
O violoncelo abre o disco seguido pela trompa dão um ar de melancolia renascentista que abrem o disco exigindo um mínimo de solenidade. O baixo aos poucos vai desenhando a cadência da melodia central de “The Shining”, que o violão inicia assim que os três instrumentos se silenciam. Num típico folk inglês, Damon Gough pede para pormos “um pouco de sol em nossa vida”, como se quisesse só arrancar um sorriso num momento de tristeza.
Esse é o tom do disco. Entre a melancolia e o alívio, as canções alternam felicidade e tristeza quase sempre, criando uma atmosfera casual e idílica ao mesmo tempo. A perfeição não é pra sempre: “Sua beleza durará por um instante”, canta em “Once Around the Block”. “O amor é contagiante”, canta mais à frente, em “Magic in the Air”, “quando tudo está bem”. De um lado, a beleza. Do outro, a realidade. É essa dualidade entre sonho e realidade que faz a utopia descrita por Gough tão próxima e natural.
Ele desfila referências à medida que transcorre o álbum. Passa pelo folk urbano de Harry Nilsson (“Everybody’s Stalking”), por momentos que são puro John Lennon solo (“Fall in the River”, “Camping Next to Water” e “Pissing in the Wind” – todas com temática aquática), Dylan (“Magic in the Air”), folk britânico anos 70 (“Stone on the Water”), powerpop (“Another Pearl”), pop sofisticado com toques de jazz e alguma influência latina (“Once Around the Block” e “Disillusion”), Simon & Garfunkel (“This Song”), rap (“Body Rap”), Prince e Guided By Voices (na mesma “Cause a Rockslide”), psicodelia britpop (“Say it Again”, juntando Blur e Oasis na mesma faixa) e terminando com a caseira “Epitaph”.
Esta última, fecha o álbum com clima de varanda ensolarada (assobios, passarinhos, violões), enquanto Gough divaga sobre a perfeição passageira que as pessoas não percebem: “Por favor não me deixe aqui/ Querendo mais/ Espero que você nunca morra/ Não preciso dizer porquê/ Apenas prometa que vai tentar/ Me dar tudo que você pode/ Eu nunca mais te pedirei/ Há vida nova além da porta/ Um berço balança e cai/ Enquanto novas frutas enchem a árvore/ Cimentam a melodia/ Nossos problemas”. Pissing in the Wind resume a generosidade artística do autor, ao abrir mão do que ele poderia querer. “Me dê algo/ Eu fico com nada”. Como se tudo isso fosse nada.