Por Alexandre Matias - Jornalismo arte desde 1995.

Tenho mais o que fazer

Ou back in full-effect

Poizé, tentei ser diário, mas não rolou. Quer dizer, de certa forma, até rolou, mas contando com remixes de textos velhos como estepe – o que não era exatamente o que eu vinha tentando fazer. A retomada deste site foi uma espécie de aquecimento pra 2003, depois de um breve – e merecido – período de descanso mental. Três meses dedicados à leitura e ao nada fazer, com frilas solavancando a ladeira pra não cair no marasmo ou no aperreio.

Daí reativar o site (que estava funcionando como uma e-stante pros meus textos online). A idéia era um misto de exercício com terapia:chegar todo dia na frente do computador e bolar um texto a partir de um disco que eu estivesse ouvindo. Muitos textos saíram de uma vez só, outros foram sendo mastigados com o tempo e outros ainda estão sendo regurgitados na pasta Meus Documentos, aquele limbo que o Word força todos os textos a irem, antes de entrarem em suas respectivas pastas…

Mas o fato é que a retomada surtiu efeito, embora, como manda a vida, contrário ao que eu pretendia. Surgiu então essa idéia: um site simples, sem imagens, onde eu pudesse linkar toda a minha produção online de uma vez só e que, ao mesmo tempo, eu não ficasse preso à obrigação de falar de música. Sim, música é o assunto em boa parte deste site, mas eu tou com a cabeça em outras coisas, e falar só de música bitola qualquer um.

Junto com este primeiro texto e os diversos links espalhados pelas páginas, vou acrescentando outras coisas que me vierem à cabeça. Já me vieram a lista dos 50 discos do ano, um clipping de posts que valem serem citados, outros de trechos de textos que também merecem ser lidos (desculpe o inglês, mas essa altura do campeonato, precisamos de um esperanto prático e fácil de se aprender), a reedição de um blog que eu fiz em maio passado, só de links (a coisa mais legal da internet é o link, claro), coluninha de piores e melhores (pra compartilhar epifanias e exorcizar o mau humor sem agredir verbalmente), o famoso “o que eu estou ouvindo”, links pra sites, blogs, colunas, projetos e bandas de amigos e uma lista de livros em .pdf ou em .txt (eu sei que ler na tela é uma merda, mas pra que é que serve a impressora do trabalho?) que estão por aí na internet (até acharem como cobrar por isso – você já ouviu falar no Palladium?).

Muita informação, claro, mas nem tudo está aqui para ser lido de uma vez só – sequer lido. Queria apenas dar continuidade ao processo de fluxo de consciência que abri com o site que comecei em dezembro (a propósito, o conjunto da obra tá aqui). Atentem que esta é a 26ª edição do Trabajosulho (uma inversão de sílabas besta só pra dizer que tem outro nome – mas na URL ainda é trabalhosujo, como codinome mesmo), portanto, não é um site novo, mas a primeira mudança de muitas outras, que com certeza virão.

Esta foi a grande lição do ano que passou. Sem estar pronto a todo momento pra mudar tudo de uma hora pra outra, fica difícil se ajustar à lenta transformação que estamos atravessando. E não estou falando de mobilidade social, alpinismo profissional, frilancerismo econômico ou mutações morfológicas. Mas da torrente de idéias que moldam o nosso dia-a-dia, afinal, como diz um monte de gente, “it’s all in the mind“.

(Periodicidade? Nah, eu trabalho pra mim. E, não, eu não reviso)

Matias Psychedelic Breakfast

Três considerações pela manhã

R&S: WYSIWYG
SSU: Já podemos falar num cânone
MG: Atacadão de slogans

Jeckyll & Hyde

John Cale
Sesc Vila Mariana (São Paulo)
Quinta-feira, 9 de dezembro de 1999

Foi só ele entrar no palco e todos se calaram. Parecia aquele velho professor de história que tomou alguma coisa no passado e até hoje não conseguiu voltar ao normal, dando aulas tão extravagantes quanto divertidas. Surgiu no palco com um blaser marrom sobre uma camiseta preta, calça marrom escuro, calçando um par de tênis escandalosamente vermelhos. Os comentários logo começaram a ser sussurrados, como se aquele professor de história tivesse vindo com um sapato de cada cor.

No palco, um piano de cauda, um violão no pedestal, três banquinhos, um com um pequeno teclado antigo em cima e uma mesa com samplers. Primeiro Cale pegou o violão e cantou duas músicas novas, sem apresentá-las ao público. Não precisava. Ao violão, Cale se permite ao desleixo – impensável ao piano – e a ênfase da apresentação fica por conta de sua interpretação. Sua voz parece sequer precisar de microfone, ela invade o ambiente num misto de tédio e fúria e agarra o espectador à força. Do berro ao sussurro, o maestro galês passa de músico erudito contemporâneo a velho punk em questão de segundos, entre um verso e outro.

Ele vai ao piano, seu instrumento de origem. Do mesmo jeito que acariciava e esmurrava o violão, ele é Jeckyll e Hyde em frente ao piano, mas ao contrário do outro instrumento, aqui ele sabe tudo. Interessante perceber como suas mãos acabam servindo de metáfora para si mesmo: enquanto os polegares e indicadores são incisivos, assinalando a repetição de acordes com força e violência, os outros três dedos floreiam arpegios nos espaços vazios, quase um tique de músico erudito.

Ao piano, canta dois poemas de Dylan Thomas e entra em seus clássicos. Eles surgem um atrás do outro: primeiro uma versão fria para “Child’s Christmas in Wales” seguida de uma imponente “Chinese Envoy”. “Essa é uma canção para Drella”, ele anuncia antes de entrar na bela “Style it Takes”, composta ao lado de Lou Reed no disco Songs for Drella, de 89, homenagem ao padrinho do Velvet Underground, Andy Warhol.

Volta ao violão, desta vez com “Leaving it Up to You”, tocada com míseros dois acordes. “Essa música é sobre dois caras que se apaixonam na cadeia”, brinca com o público, “na verdade é a minha versão para o filme The Ballad of Cable Hogue, um filme de Sam Peckinpah” e entra em “Cable Hogue”, do subestimado Helen of Troy, de 75.

“A Dream” dá início ao único deslize do show: a entrada de Adam Dormblum. Ele senta-se na mesa de samplers ao lado do pequeno teclado vermelho de Cale e começa a disparar ruídos eletrônicos e pedaços de música. Até aí tudo bem, o problema é que a noção de modernidade eletrônica de Dormblum ficou parada no 1994 de Dummy, do Portishead.

Mas a presença de Adam incomodava menos quando o velho Velvet abria a boca. Em suas incursões ao lado do único músico convidado do show, Cale deixava de cantar para apenas contar histórias. Começa com a já citada “A Dream”, também de Songs for Drella, onde Cale encarna um Warhol no meio de um sonho, reclamando, às vésperas da própria morte, dos amigos que o deixaram de lado – incluindo aí Cale e Reed, citados nominalmente. “Gun” – “uma música sobre uma dupla de detetives” – perde toda força e transforma-se numa peça tensa que preenche todo o teatro do Sesc – uma excelente casa de shows, diga-se de passagem. Cale não parece ter envelhecido, ele parece ser exatamente o que sempre foi. Ou melhor: ele sempre foi velho, mesmo aos 20 anos. Natural que envelhecesse com classe.

De novo ao piano, ele rendeu “Chasing Ghosts” antes de entrar em sua parceira com Brian Eno, Cordoba. “Quando estava gravando o disco Wrong Way Up com Brian Eno, às vezes não tínhamos idéias para as letras. Então entrávamos na enorme biblioteca de Brian e ficávamos passeando pelos livros. Até que encontrei um livro de exercícios de inglês para quem fala espanhol. Essa letra era o Exercise 24 do livro, cujo nome íamos manter. Mas aí eu vi uma matéria sobre um terrorista espanhol chamado Cordoba e batizei-a com este nome”. Depois de “Cordoba”, ele volta aos anos 70 – “essa é do Elvis Presley” – em sua personalíssima versão para “Heartbreak Hotel”, que perdeu os toques de soul music da versão do disco Slow Dazzle, de 75, e aparecia sóbria. Fechando o show, ele atacou “Fear is the Man’s Best Friend”, transformando o teclado piano num instrumento de percussão e destruindo a própria garganta de tanto berrar. Aplaudido de pé, voltou para o último número: uma versão para “Hallellujah”, de Leonard Cohen. Cale se despediu com um sorriso nos lábios. Um acústico e individual, mas com tanta energia e vigor quanto o outro melhor show deste ano, o dos Chemical Brtohers

Quem é Alexandre Matias


Foto: Caroline Bittencourt

O jornalista brasiliense Alexandre Matias escreve há 18 anos o Trabalho Sujo, que começou como uma coluna no jornal Diário do Povo, em Campinas, e hoje é um dos principais blogs de cultura pop do Brasil. Sócio dOEsquema, um dos maiores condomínios de blogs na ativa no Brasil, ele foi editor do caderno de cultura do jornal Correio Popular, em Campinas (1999-2001); editor-executivo da Conrad Editora (2001-2002) onde também editou a revista Play; editor-chefe da agência de notícias do projeto Trama Universitário (2004-2007) da gravadora, por onde coordenou a edição brasileira do livro Cultura Livre, de Lawrence Lessig, no Brasil; editor do Link (2007-2012), o caderno de tecnologia e cultura digital do jornal O Estado de S. Paulo e diretor de redação da revista Galileu (2012-2014). Nestes vinte anos de fechamento, colaborou com a Folha de S. Paulo (cadernos Ilustrada, Informática e Mais), revistas da editora Abril (Super Interessante e Info), Trip, entre outros veículos. Teve boletins nas rádios Eldorado, Estadão-ESPN e CBN. Traduziu livros como Bilionários por Acaso (Ben Mezrich), O Império Contra-Ataca (Donald F. Glut), Fritz the Cat (R. Crumb), Freak Brothers (Gilbert Sheldon), The Originals (Dave Gibbons), Mr. Natural (R. Crumb) e Chuva de Estrelas (Peter Lamborn Wilson). Foi curador do Festival da Cultura Inglesa por dois anos (2011-2012) quando trouxe para o Brasil nomes como Franz Ferdinand, Miles Kane, The Horrors, We Have Band e Blood Red Shoes e curador do projeto Prata da Casa do Sesc Pompéia em 2012. Participou do júri do programa Rumos Música do Itaú Cultural em 2004. Mantém o podcast Vida Fodona desde fevereiro de 2006. Discoteca desde 1997 e mantém a festa Noites Trabalho Sujo desde 2011, tocando em diferentes casas de São Paulo como Alberta #3, Trackers, Casa do Mancha, Da Leoni, Neu e Apartamento Byob.

Email: alexandrematias@gmail.com