Por Alexandre Matias - Jornalismo arte desde 1995.

She wants revenge

E você achava que a metralhadora na perna da mina no filme do Rodriguez era ir longe demais…

Laertevisão

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Outro dia o Cadu se perguntava “o que aconteceu com o Laerte?” em referência ao fato do velho cartunista ter abandonado a lógica dos três quadrinhos em sua tira diária na Ilustrada e começado a explorar os limites do formato. O processo foi deflagrado pela morte de seu filho RafaelDaniel,mas tudo indica que a fase terapêutica já passou e Laerte assimilou a nova linguagem como sua. Em vez de colocar personagens conhecidos pra repetir piadas em diferentes pontos de vista, Laerte optou pela criação, às vezes sem sentido, às vezes pesada, limitada pelo espaço de uma tira de jornal – como um tipo de cineasta ao ser confrontado com um novo formato de tela. É como se Laerte tivesse cansado de fazer A Praça é Nossa e tivesse começado a… filosofar.

Comparo essa fase atual do Laerte com a primeira viagem de ácido do Robert Crumb (aquela que fez ele criar todos seus personagens mais conhecidos), só que às avessas (assistimos à abolição do personagem, algo que o Fernando Gonzales domina de uma forma muito pessoal) e em câmera lenta. Acho que ele está indo muito além dos limites do que qualquer artista brasileiro hoje. Nenhum outro conterrâneo – nem Fernando Meirelles, nem o Kassin – está tão ligado á sua própria época e sublinhando isso em sua própria arte do que Laerte. É um privilégio lê-lo todos os dias (já era, mas isso é como assistir às gravações do Bitches Brew).

E essa lógica foi para toda obra atual dele. Das tirinhas no caderno de informática da Folha ao quadrão sobre TV na Ilustrada de domingo. Estes últimos foram reunidos no excelente Laertevisão – Coisas que Não Esqueci, em que mistura memórias muito pessoais com suas lembranças sobre a TV. Fosse o Laerte antigo, veríamos pequenos quadros de comédia de situação no Brasil dos anos 50. Mas como é este novo Laerte, há um espaço para a reflexão e a filosofia (mesmo que infantil, pura) que nos prova que somos contemporâneos de um gênio.

(Como se os Piratas do Tietê já não nos tivessem provado, mas enfim…)

PS – A Carola deu o toque, passei batido – o filho dele que morreu foi o Daniel. O Rafael ajudou ele a organizar o Laertevisão. Mau meu.

Os Saltimbancos Trapalhões – Chico Buarque e os Trapalhões

Esse não entrou na lista final, mas pediram pra eu fazer o texto antes de fecharem a votação. Não entrou na revista, mas tá aqui…

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O encontro improvável entre um bardo sambista da MPB e um grupo de humor televisivo soltou faísca ao menor atrito. Bom pra todos: Chico Buarque procurava outros temas, uma vez que a resistência à ditadura tornava-se redundante com a abertura do general Figueiredo (seu disco daquele ano, Almanaque, não tinha uma música de protesto sequer), e os Trapalhões precisavam de um prumo para ajudar sua carreira cinematográfica deslanchar de vez. E descobrimos um Chico acanalhado e Didi, Dedé, Mussum e Zacarias funcionando – e bem – sem a ajuda da TV. Da circense – e emblemática – “Piruetas” à cândida “Minha Canção”, a trilha passa pelo forró “Rebichada”, o rock “A Cidade dos Artistas” (com Elba Ramalho), a doce “Hollywood” (com Lucinha Lins) e o xote “Alô Liberdade” (com Bebel Gilberto), sem perder o rebolado e a graça. Mas o Chico subversivo ainda dava sinais nas entrelinhas – das desculpas ao “Meu Caro Barão” à “réstia de luz onde dorme o meu irmão” (que, sutilmente, aponta os últimos porões do Dops). Fora o próprio tema do filme, adaptado da versão que Chico fez de uma peça infantil italiana nos anos 70 – que canta, sem remorso, “todos juntos somos fortes/ Não há nada a temer”.

A Sétima Efervescência – Júpiter Maçã

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Flávio Basso já tinha passado pelas fases do rock anos 80 (no TNT), pela algazarra desbocada do começo dos 90 (nos Cascavellettes) e tendia para o folk (quando mudou seu nome para Júpiter Apple), mas um raio lisérgico atingiu sua cabeça pela metade da década e ele se reinventou mais uma vez. Desta vez, pegou diferentes pontas soltas pelo rock brasileiro – jovem guarda, mod, rock de garagem e psicodelia – e as reuniu em um disco forte, coeso e completamente chapado. O disco começa com o hit chinelo “Lugar do Caralho”, um cavalo-de-tróia que não prepara o ouvinte para a chuva Technicolor de referências – que flutuam ao redor do compositor como alucinações sorridentes. Em algum lugar entre Roberto Carlos, Rita Lee e Syd Barrett, Júpiter sente seu corpo derreter, visita outros planetas e conversa com seres imaginários. “Lóki”, aqui, é elogio.

Nada Como Um Dia Após Outro Dia – Racionais MCs

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A história da ascensão dos Racionais está ligada diretamente à paulistanização do resto do Brasil. À medida em que o resto do dinheiro que existia no Rio de Janeiro começava a se deslocar de vez para o outro lado da Dutra durante os Anos Fernando, o Brasil deixou de falar “s” chiado e “r” arrastado para chamar os caras de “mano”, as meninas de “mina” e a noite virar “balada”. E acompanhando o passo dos anos 90, passaram por diferentes degraus: nova banda de rap, principal nome do hip hop de São Paulo, porta-voz da metade debaixo da pirâmide social brasileira, sempre crescendo em tamanho e importância. Os Racionais MCs são o Legião Urbana da parte pobre do Brasil e Renato Russo era só um indie birrento perto do magnetismo zen, ameaçador e populista de Mano Brown. E se música é filme, o duplo Nada Como Um Dia… que seguiu sua obra-prima de 1997 (Sobrevivendo no Inferno, Taxi Driver com Touro Indomável) é algo entre o GoodFellas e o Cassino do gangsta rap brasileiro. Scorsese operático, a lente de KL Jay empresta um glamour artificial (leia-se “g-funk”) a uma rotina dramática e pesada – e transforma o rap na trilha sonora de um Brasil paulistano, cheio da grana e sempre desconfiado – noiado e barão. “Vida Loka”, como dizem.

Realce – Gilberto Gil

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O fim da ditadura militar deixou boa parte da MPB desnorteada – sem um inimigo comum, estava oficializado o cada-um-por-si. De todos seus artistas, talvez o que melhor tenha entrado nos anos 80 seja Gilberto Gil – ao lado de Rita Lee. Mas se Rita despiu-se da persona Mick Jagger para entrar de cabeça no pop deslavado, Gil abraçou o reggae (regravando Bob Marley) e a disco music (escalando Lincoln Olivetti para os teclados) como opções estéticas. No entanto, Realce, o primeiro disco do cantor pela gravadora Warner e o último de sua série de discos “Re” (Refazenda, Refavela e Refestança são os outros), é brasileiríssimo – a começar pela irresistível “Toda Menina Baiana”. Mas a viagem continua por outros clássicos de Gil, como “Tradição”, a bela – e bi – “Superhomem – A Canção”, “Sarará Miolo” e a faixa-título, além da incrível reinvenção de “Marina”, de Dorival Caymmi.

Gilberto Gil (1968) – Gilberto Gil

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O fardão da Academia Brasileira de Letras vestido na capa do segundo disco lançado pelo futuro ministro da cultura não deixa dúvidas: estamos entrando no território de Sgt. Pepper’s. Mas o filtro tropicalista vai além dos choques de contrastes e estéticas proposto pelo disco manifesto da turma baiano-paulistana. O que vemos, em vez do conflito, é a banda do sargento Pimenta subir o coreto da pracinha de alguma cidade do interior do Brasil. Gil rege o disco com batuta do mestre Duprat e com a assistência luxuosa dos Mutantes em ponto de bala. A certa altura da jam “Pega a Volta Cabeludo”, o baterista Dirceu resume a vanguarda e a breijerice numa frase: “O som psicodélico é redondo que só uma gota”.

Qualquer Coisa/Jóia – Caetano Veloso

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São raríssimos os artistas que se adaptam ao mote “quanto mais hippie melhor” – e até aqui encontramos Caetano Veloso. No pacote duplo de 1975, ele agarra-se aos Beatles (a capa de Qualquer Coisa sampleia a de Let It Be, a de Jóia vem do primeiro solo de Lennon, Two Virgins – além das versões para “Help!”, “Lady Madonna”, “Eleanor Rigby” e “For No One”) para tornar-se mínimo. Aqui quase sempre ouvimos Caetano, seu violão, algum vocal de apoio, certa percussão, flautinha ali, teclado acolá – tudo muito discreto, lírico e sutil. Uma carta de intenções sussurrada ao ouvido.

Refavela – Gilberto Gil

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A paisagem apresentada é a renovação do cenário da favela, mas, em contraponto ao clima campestre do disco anterior de Gil (Refazenda), Refavela não é apenas um disco de periferia e sim um álbum de ponto de vista urbano, cantando dores e prazeres da vida na cidade grande – mas sem uma visão apocalíptica sobre a inevitabilidade da metrópole, quase sempre vista como caótica e opressora. Não aqui. Gil encara ruas, postes acesos e prédios como criação humana e, portanto, da natureza. Maravilhado com o despertar das consciências nacionais tanto de um movimento negro e quanto da noção de que a miséria do país é onipresente, o baiano usa o violão como guitarra de funk e propõe uma abordagem rítmica sobre a tensão da cidade grande. E assim Gil continua se revendo.

Revolver – Walter Franco

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Você já ouviu essa disco: um gênio improvável em uma trip solitária beirando o autismo, seguido de uma banda azeitada no jazz-rock setentão, segura do próprio improviso. Esta fórmula deu origem a jóias como Bryter Layter, Astral Weeks, Histoire de Melodie Nelson e, no Brasil, ao ímpar Revolver. O segundo e último disco da fase clássica do cantor e compositor (depois do lançamento, recolheu-se por completo, dando as caras vez por outra), consagra seu estilo, em que combina a sabedoria ancestral do trocadilho com brincadeiras concretistas em forma de letras. Entre a voz e a banda, outra assinatura musical sua sublinha todo o disco – colagens de vocais e sussurros superpostos. Revolver também é daqueles momentos únicos em disco no Brasil, quando certa intelectualidade lírica acompanha de igual para igual o instrumental vigoroso de uma banda de rock.