O tempo espiralar da nova Bienal
A 35ª Bienal de São Paulo começa nesta quarta-feira e eu conversei com uma de suas curadores, a pesquisadora e crítica de arte Diane Lima, sobre como o tema desta edição, Coreografias do Impossível, avança a discussão sobre arte para além do decolonialismo em mais uma matéria que faço para o site da CNN Brasil.
Leia abaixo:
Bienal de SP começa hoje com tema provocativo; curadora explica as “Coreografias do Impossível”
CNN conversou com crítica, pesquisadora e mestra em comunicação baiana Diane Lima, do time curatorial da mostra
Parece uma mera provocação poética, mas o projeto de curadoria da 35ª Bienal de São Paulo dá um passo importante na discussão sobre o papel da arte e do mundo das artes visuais e como sua estrutura lida com as transformações da sociedade – e vice-versa. Desta quarta-feira (6) até 10 de dezembro, 121 artistas, entre eles 37 brasileiros, vão ter suas obras expostas na 35ª Bienal de Arte de São Paulo.
O tema as “Coreografias do Impossível” proposto pelo time de curadores formado por Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel ultrapassa a visão decolonizadora (aquilo que tira as características do colonizador), tão presente neste mundo nos últimos anos, para abraçar um ponto de vista mais amplo e desregrado. Daí a tensão entre a ideia de coreografia – aparentemente algo que obedece um conjunto de regras – e do impossível – que torna-se possível apenas ao ser cogitado, algo que transcende a setorização e a divisão do mundo da arte em busca de uma visão menos categórica.
“Uma história que pratica uma certa monocultura, o modo como ela não possibilita que não haja nenhum tipo de escape fora de sua própria regra que não seja criando uma relação de autoridade que é marcada por essa violência, é sempre o outro ou aquilo que eu desconheço, e portanto irá carregar uma nomenclatura que é pejorativa e subalternizadora”, continua Diane.
É aí que estão justamente as tais coreografias do impossível: quais são os critérios para organizar uma exposição deste porte que não divida as obras e seus autores em baias e gavetas pré-definidas para facilitar a digestão do público. “Se você me perguntar se a gente consegue ter uma defesa categórica dessa exposição, a gente não tem: o que temos são nós, tramas, encruzilhadas, encontros, relações, não são sessões, blocos, áreas específicas”.
Tempo espiralar
Ela menciona, por exemplo, a visão espiralar do tempo – que não trata a passagem do tempo de forma linear e sim cíclica, circular e repetitiva – como uma das formas de entender esta outra forma de lidar com os diferentes: achar pontos em comum, em vez de separá-los.
“Quando a gente pensou no tempo espiralar, da performance de um tempo circular, isso não partiu de um desejo de trazer o tempo espiralar como um tema, mas de entender como esse tempo espiralar estava presente em muitos dos trabalhos”.
“Nesse processo de aprendizado e caminhada, a gente foi entender que o tempo foi importantíssimo como ferramenta metodológica para a criação das coreografias, dos percursos e das narrativas”, desenvolve a curadora. “Há, no projeto curatorial, um desejo de romper com as categorias, com os temas e o modo como as exposições são normativamente organizadas em setores, em blocos. O tempo foi muito importante para a gente entender como a gente poderia também coreografar esse lugar espiralar na exposição, na construção do espaço. Em vez de pensar de uma forma linear, como uma obra se comunica com a outra”.
A pesquisadora menciona o mergulho que o time da curadoria fez na obra de todos os artistas convidados justamente para encontrar estes pontos de conexão.
“Por exemplo, a gente tem algumas obras do artista cubano Wifredo Lam, um clássico da história da arte afro-diaspórica internacional, e descobrimos, num trabalho de pesquisa intensa dentro do arquivo da Sarah Maldoror, considerada a mãe do cinema africano, um filme no qual a Sarah faz uma apresentação sobre a obra do Wifredo Lam”, relata. Ela menciona diversas outras conexões, como a obra “The Divine Cypher”, da brasileira Ana Pi, que conversa com a cineasta ucraniana Maya Deren, que tem um trabalho sobre entidades vodu no Haiti.
Fora das categorias
Um dos principais trunfos da nova categoria é fugir das categorias tradicionais da arte.
“O público vai poder ver isso de modo muito intenso nesta Bienal: a gente tem paisagens sonoras, projetos que mobilizam a relação com a luz, as instalações que tratam diretamente de determinados tipos de construção e imaterialidades naturais”, continua a curadora, mencionando também uma quantidade grande de obras que tratam da relação com o não-humano, com a natureza, justamente como uma forma de romper com a linearidade da história da arte ocidental.
“Essa multiplicidade cultural e de epistemologias faz com que a gente crie um espaço mais aberto, mais democrático e que as pessoas de fato se reconheçam”, arremata Diane.
“Foi uma preocupação muito grande porque quando a gente começa a pensar expositivamente, nossa formação, nossa bagagem e referenciais educacionais, culturais e cognitivas, por conta da massificação do pensamento ocidental, a gente tende a agrupar, determinar e categorizar”, continua a curadora.
“A coreografia de percursos de narrativas que a gente criou tornou o trabalho ainda mais intenso, porque significava que a gente precisava fazer sessões extensas e intensas de apresentações dos trabalhos, da intensidade do modo que a gente estudou as produções e as práticas. E foi isso que possibilitou a gente criar conexões.”
Apesar de a princípio não querer mencionar uma ou outra obra dos mais de 120 artistas que a Bienal traz nesta edição, Diane acaba destacando algumas predileções e pontos que considera focais durante o evento, como a cantora, educadora e pensadora Inaicyra Falcão, que foi convidada para produzir um disco, um livro e uma performance para a Bienal, ou a obra da artista Ana Pi com Taata Mutá Imê, que também trata do tempo espiralar.
Sauna lésbica?
“A gente tem obras que desorientam e desorganizam nosso modo de ver e de imaginar, como uma obra chamada “Sauna Lésbica”, que parte de uma pergunta muito provocativa que é ‘imagine se existisse uma sauna lésbica?’”, comenda Diane sobre a obra de Malu Avelar feita em parceria com Ana Paula Mathias, Anna Turra, Bárbara Esmenia e Marta Supernova.
“Ela nos convida a pensar radicalmente o que aconteceria se existisse uma sauna lésbica e propõe um espaço com esse nome. Não vou dar spoiler, o público vai ter que ir lá pra conferir. É uma obra que começa a acontecer à medida que a gente fala sobre ela, em que a gente diz que ela existe, ela tem uma capacidade generativa muito forte.”
Diane também menciona a obra “Pink Blue”, da artista canadense Kapwani Kiwanga, uma instalação que brinca com a polarização das cores rosa e azul, que aos poucos transcende a discussão que parece ser apenas de gênero.
“Quando navegamos mais profundamente na obra, descobrimos que o rosa e o azul não fazem um debate muito objetivo sobre gênero, mas é uma discussão sobre sistemas de controle. A artista descobriu depois de uma pesquisa intensa que um determinado tipo de pink é utilizado nos sistemas prisionais para acalmar as pessoas que estavam dentro do sistema carcerário e alguns tipos de azul foram utilizados em alguns espaços públicos para que usuários de drogas encontrassem suas veias. São essas camadas e essa imaginação radical que essas obras nos levam a pensar.”
Para além da decolonização
“Desde o início a gente trabalha com alguns conceitos e teorias de um forma muito ampliada. A gente olhou para diversas cosmologias e o próprio projeto nos ditou suas necessidades”, continua a pesquisadora.
“A gente teve discussões importantes nos últimos anos sobre a decolonização das instituições de arte, eu mesma estive muito envolvida nesse debate, e acho que o tempo vai pedindo ferramentas e as obras, pensamentos e pensadores que a gente conseguiu reunir também nos apontou para pensar o impossível.”
Diane está satisfeita com o resultado e entende esse momento como algo que horizontalize a hierarquia do mundo da arte. “As instituições e os curadores aprendem com os artistas, a ideia é que a gente aprenda e caminhe com os artistas e que não seja uma relação hierárquica.”
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