O Homem Que Não Estava Lá
Mais um réquiem por Syd, que saiu naquela Bizz com o Skank na capa.
Syd Barrett (1946-2006)
A vida íntima de Syd Barrett, que um dia sonhou com um grupo chamado Pink Floyd
Lá se vai Syd Barrett, mais uma vez. O anúncio de sua morte, cinco dias após acontecer no dia 7 de julho de 2006, abalou uma comunidade de fãs do primeiro Pink Floyd – um grupo bem diferente daquele que fez fama intercontinental, anos mais tarde – e da carreira solo de um autêntico mito da história do rock. Mais do que um gênio desvirtuado pelas drogas, Barrett foi a primeira vítima dos anos 60 – uma década que ainda teria outros mártires depois do fatídico 1968 em que o líder e fundador do grupo oficialmente não respondia mais pela banda, uma época cujas lembranças não pertencem a quem as viveu, como reza o ditado popular.
Barrett sempre permanecera lá, mesmo quando mais distante do olho público, como um misto de sobrevivente de seu próprio Vietnã mental e troféu da ordem estabelecida como prova de que substâncias alteradoras de consciência não combinam com o conceito de civilização. Escolha seu mito favorito: Syd era o próprio Narciso lisérgico se vendo refletido num oceano de LSD, o Ícaro rumo ao Sol da psicodelia, o Prometeu que roubara o ácido dos deuses. E daí que tudo tenha começado na Califórnia misturado com Ki-Suco? Syd Barrett e o Pink Floyd transformaram a psicodelia norte-americana em algo visível e palpável ao mesmo tempo em que agradável – o último suspiro de uma cultura secular, a fleuma bretã, cedendo ao avanço de sua própria cria, o pop americano. E, ao encarnar o herói mitológico, Barrett não aguentou a pressão.
E pirou. Com a guitarra pendurada ao pescoço, tornou-se quase um souvenir inglês de uma era que, apesar de ter acontecido no ano anterior, parecia pertencer a um passado distante. 1968 escureceu as cores technicolor de 1967 na marra – e Barrett sem funções no grupo que sonhou (“o nome veio num sonho”, mentia, para melhorar a história) era a melhor tradução para o sonho multicolor. Obrigou o Pink Floyd a se reinventar na frente de todo mundo ao mesmo tempo em que deu origem a uma série de lendas e rumores sobre o que teria acontecido com o mítico fundador da banda.
Não ficou feliz com a saída do grupo e encarava profundamente David Gilmour, seu amigo de adolescência e substituto na banda, quando o encontrava. Gilmour sentiu o peso e foi o principal incentivador da retomada da carreira musical de Barrett, que resume-se aos dois discos impressionistas lançados em 1970, The Madcap Laughs e Barrett. No mesmo ano, fez duas aparições: em fevereiro tocou cinco faixas no programa “Top Gear” da BBC (apresentado por John Peel) e em junho tocou quatro músicas no Music Fashion Festival, em Londres, ao lado de David no baixo e Jerry Shirley, do Humble Pie, na bateria. No ano seguinte, gravou três músicas para outro programa da BBC e em 1972 fez três apresentações ao lado de uma banda nova, chamada Stars (com Jack Monck no baixo e o baterista Twink, ex-Pink Fairies), de quem não existem registros gravados.
Em paralelo a isso, veio mudando de casa em casa, sempre morando com conhecidos que o tratavam como louco ou guru – às vezes, ao mesmo tempo. Há relatos de Barrett trancando namoradas no quarto por dias ou sendo isolado em bad trips intermináveis, mas os fatos se fundem às lendas e pouco se tem certeza sobre este período da vida de Syd. Além do excesso de drogas, que ele tomava sem discriminação, outros aspectos foram decisivos para a queda de Syd – como a morte do pai quando ainda era criança e casos de esquizofrenia na família. Mas a saída do Floyd (decidida dentro de uma van poucas horas antes de buscá-lo para um show em 1968, nenhum dos remanescentes lembra de quem foi a idéia de não buscá-lo) também pesou para seu estado.
Tanto que a sombra de Syd se arrastou por toda a carreira da banda, em discos como Dark Side of the Moon e Wish You Were Here – e durante as gravações deste disco, Syd visitou o grupo pela última vez, em 1975. Ficou no estúdio por um bom tempo sem ser reconhecido – e há uma imagem desta visita na autobiografia de Nick Mason, Inside Out, sobre a legenda “Syd Barrett: 5 de junho de 1975”. Rick Wright, num documentário para o canal VH1 lembra do antigo líder com tristeza: “Ele estava com a cabeça toda raspada, sobrancelhas inclusive, e ficava pulando, escovando os dentes, era terrível. Roger chorou, todos nós choramos”.
Depois desta última aparição, o pouco que se sabia sobre a vida íntima de Syd aos poucos começa a ganhar público. Ele mudou-se para Cambridge, onde passou a morar com a mãe e esforçar-se para esquecer do seu passado, que lhe trazia más lembranças. Sua irmã, Rosemary, tentou colocá-lo em diferentes tratamentos, mas só tinha sucesso quando ele se entregava a trabalhos manuais, como fabricação de cestos, jardinagem e pintura. Constantemente visitado por fãs curiosos, passou a se chamar de Roger, seu nome de batismo, para evitar confusões com sua antiga personalidade – mas é falsa a história de que ele não sabia quem tinha sido. A irmã chegou a contar que quando ele assistiu ao documentário que leva seu nome, produzido em 2002 pela BBC, no início deste ano, ele comentou que havia gostado, apesar do barulho.
Em casa, Syd passava a maior parte do tempo pintando e cuidando de tarefas domésticas – além de ajudar com a mãe antes que ela falecesse, em 1991. Desde então morava só, mas sempre era visitado pela irmã, que, após sua morte, confessou ao biógrafo de Barrett, Tim Willis, ter exagerado na proteção ao irmão, evitando até que antigos conhecidos se aproximassem. Pintava ouvindo música erudita e jazz em um velho aparelho de som sem rádio e a única música pop que ouvia era os primeiros discos dos Rolling Stones. Escreveu um livro sobre a história da pintura que a irmã não pretende lançar – ao menos por enquanto. Ou seja, Syd se foi – como sempre tinha ido. Mas ele sempre volta.