“No reason to get excited”

, por Alexandre Matias

Watchmen e o pessimismo para as massas

Antes de entrar em qualquer mérito sobre Watchmen – se a adaptação é boa ou não, se o filme agrada os fãs ou conquista os leigos de quadrinhos -, a principal impressão em relação ao filme é seu tom mórbido. Mais do que paranóico ou apocalíptico, Watchmen é deprê – e esfrega isso na sua cara a cada osso que se parte ou ser vivo que explode de dentro pra fora. Zack Snyder parece disposto a nos mostrar que a realidade é bem pior do que imagina o pessimista padrão e recria, com fortes cores oitentistas, a visão ultra-realista e reacionária de Rorschach como principal ponto de vista do filme. Mais justiceiro que super-herói, a desiusão essencial de Rorschach com o resto do mundo contagia todo o filme. E sem sutileza. A cada dez ou quinze minutos uma espécie diferente de susto choca o espectador – seja a moral descendo para mostrar que o poço pode ser mais fundo, seja pedaços de corpos humanos virados do avesso.

O pessimismo não é novidade no cenário pop. Como o próprio Comediante comenta, a Guerra do Vietnã mexeu com o imaginário vitorioso do americano. E o cinema da virada dos anos 60 para os 70 se reinventou a partir desse senso de derrota. Filmes saídos das cabeças de uma geração rock’n’roll de diretores – como Easy Rider, O Poderoso Chefão, Operação França, THX 1138, Taxi Driver, A Última Sessão de Cinema, Apocalypse Now ou American Grafitti – partiam do pressuposto que o Sonho Americano havia tornado-se um pesadelo. Logo essa frustração se refletiria em todas as facetas do cinema daquele país – Rede de Intrigas, Todos os Homens do Presidente, Chinatown, Um Estranho no Ninho, Tubarão, Dirty Harry, Halloween. Liste os melhores filmes dos anos 70 e é bem grande a possibilidade de termos poucos filmes otimistas. Até as comédias de Woody Allen e Mel Brooks e melodramas como Love Story, O Corcel Negro e O Campeão puxavam para baixo. Foi esse mesmo pessimismo que funcionou como adubo para toda uma nova geração. Punk rock, disco music, rap, literatura cyberpunk, grafitti floresceram ao lado de filmes que também não vislumbravam um futuro amigável (Blade Runner, Alien, Mad Max, Akira, O Exterminador do Futuro) – e da geração inglesa de quadrinistas revelados naquela década, a mesma que deu ao mundo Watchmen, Sandman, Batman – A Piada Mortal, Judge Dredd e Orquídea Negra.

A queda do Muro de Berlim fez com que cinema retomasse algum ânimo e aos poucos fomos assistindo a uma diluição de um otimismo de mentira, farsesco, com um pessimismo cênico, de araque, em sucesso de bilheteria e de pieguice. Um arco formado por filmes como Ghost, O Rei Leão, A Lista de Schindler, Central do Brasil, Magnólia, Forrest Gump, A Vida é Bela e Titanic serviu de contraponto ao sorriso cínico de filmes independentes que pareciam ser felizes, mas não eram (Trainspotting, Um Sonho de Liberdade, Los Angeles Cidade Proibida, Se7en e Clube da Luta, tudo dos Coen, do Tim Burton, de Tarantino e do David Lynch). Finalmente, o cenário criado pelo atrito destas duas pontas deu origem a um cinema literalmente espetacular. Roteiro, atuação e direção são deixados em segundo plano para criar uma categoria de filmes ancorada em efeitos especiais, cenas de luta, perseguições e frases de efeito. Nascidos com Matrix, essa nova safra de filmes desta década que está chegando ao fim é justamente a que inclui este monte de adaptações de quadrinhos.

E desde Matrix voltamos a acreditar no super-herói enquanto ícone cultural. Um formato que parecia ter dado tudo de si quando George Clooney foi o Batman naquele filme risível (que, pra mim, é o melhor dos quatro primeiros Batman – justamente porque se baseia na série tosca dos anos 90 60), mas que justamente devido à confusão – ou ausência – de sentimentos da virada do milênio conseguiu se reerguer. Primeiro com o Homem-Aranha, depois os X-Men, Hulk, Demolidor, Batman, Quarteto Fantástico, Super-Homem, Homem de Ferro e agora a lista parece não ter fim – Wolverine solo, Capitão América, Lanterna Verde, Thor, todos esses já têm filmes em andamento.

Eis que chegamos em Watchmen, que está para as histórias em quadrinhos como Cidadão Kane está para o cinema. Durante muito tempo, a história realmente foi a melhor de todos os tempos, mas uma série de autores já a superaram (incluindo o próprio Alan Moore, mais de uma vez). O que permanece intacto é seu impacto, sua importância. Ao lado da recriação do Batman por Frank Miller em O Cavaleiro das Trevas, Watchmen reestabeleceu um novo parâmetro tanto para os quadrinhos comerciais como, principalmente, para as histórias de super-herói. E tudo bem que uma série de inovações de linguagem e formato são responsáveis por manter a importância de Watchmen intacta (como o filme de Orson Welles), mas o motivo de seu sucesso talvez passe longe disso – e tenha mais a ver com a sensação mórbida e nauseante de um apocalipse iminente.

E é esse exatamente o motivo para o possível sucesso de Watchmen. O filme já começou a ser bombardeado pela intelligentsia da crítica de cinema ao mesmo tempo em que vem sendo louvado pelos fãs (embora haja uma série de ressalvas), aumentando ainda mais a expectativa quanto a seu lançamento oficial. Se a noite sem alma que domina o filme se conectar com o pânico paralisado da atual crise que paira sobre o planeta, pode ser que Watchmen funcione como uma enorme terapia coletiva. E faça com o filme de super-herói o que a graphic novel original fez com o quadrinho de super-herói: pendure-o algum tempo sobre o abismo da realidade e deixe-o livrar-se de seus acessórios supérfluos. Deixando brinquedos caros e efeitos especiais em segundo plano (eles não são a história, afinal de contas), Watchmen pode ajudar o público deste tipo de filme a buscar outras emoções em seu espectro sentimental. Muitos vão achar isso brochante ou caricato como o Nixon na telona mas, como o próprio filme sublinha, assim também pode ser a vida. Aprenda a lidar com isso.

Amanhã eu continuo.

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