Mocofaia chega a São Paulo

, por Alexandre Matias

Acontece nesta quarta-feira a primeira apresentação do trio Mocofaia – formado pelos baianos Luizinho do Jêje, percussionista do coletivo Aguidavi do Jêje, e Marcelo Galter, pianista e compositor, e pelo poeta e compositor carioca Sylvio Fraga – em São Paulo, quando tocam no Bona com a participação do pernambucano Zé Manoel. O trio surgiu sob a benção do saudoso maestro baiano Letieres Leite e Fraga, idealizador da gravadora Rocinante, que lançou o primeiro disco do trio no ano passado, escreve para o Trabalho Sujo sobre o nascimento deste projeto. Os ingressos para a apresentação, que começa às 20h, podem ser comprados neste link. Leia abaixo:

Saudade do maestro
Para falar do encontro entre os Mocofaia, é preciso falar do Letieres Leite.

Comecei a trabalhar com o professor em 2017, no meu disco Canção da Cabra. Um ano antes ouvi pela primeira vez sua Orkestra Rumpilezz e foi um dos maiores impactos musicais que senti na vida. Estava à procura de alguém para fazer os arranjos do meu disco e lembro de dizer: se não for Letieres, vai sem arranjador, vou lançar sem sopros e cordas. Sua visão sobretudo rítmica era a universidade que eu buscava para minhas inquietações. Consegui mandar as músicas para o maestro e ele disse que estaria no Rio e que gostaria de ouvir o grupo tocando ao vivo, num ensaio. A partir daí ele topou e fizemos o disco. Senti minha cabeça musical se expandir décadas em um ano.

A Rocinante já estava dando seus primeiros passinhos e Letieres se tornou uma espécie de padrinho nosso, conversando muito sobre a música feita no Brasil, sobre percussão e racismo, sobre a falta de consciência rítmica entre músicos profissionais, sobre a real dimensão das origens negras da nossa música… E eis que, num desses encontros, talvez comendo arroz de polvo na Confraria do França no Rio Vermelho, ele topou gravar conosco o primeiro disco de seu — agora lendário — quinteto. Ele tinha recebido várias propostas para gravar, inclusive no exterior, mas teve a generosidade (típica dele) de acreditar no nosso incipiente projeto. Ele disse que estava cansado do universo das gravadoras e que queria trabalhar com pessoas da música.

A gravação foi marcada e antes de subir a serra para nosso estúdio, o quinteto fez um show no antigo Blue Note no Rio de Janeiro. Foi ali que conheci, pela primeira vez, Luizinho do Jêje e Marcelo Galter. Conheci também Ldson Galter, baixista extraordinário que hoje é um grande amigo e colaborador. Depois do show, empolgado, fui falar com a banda. Eles me cumprimentaram com uma desconfiança mais do que justa e fiquei um pouco intimidado.

No dia seguinte, aguardando a turma no estúdio, descubro que a van deles quebrou no meio da serra. Chegaram, horas depois, mais desconfiados ainda. Mas no mesmo dia já estávamos todos imersos no disco vivendo intensamente aquela trabalheira de alegria e exaustão sob a aura inebriante do professor.

Dali em diante, Luizinho, Marcelo e eu estivemos juntos em diversos trabalhos, inclusive no projeto individual de cada um. Um belo dia, Luizinho resolve se mudar para o Rio de Janeiro. Começamos a compor. Marcelo veio em seguida e se juntou. Quando acumulamos algumas primeiras músicas, ficamos com vontade de tocar as composições e pra isso montamos uma espécie de grupo de trabalho, de estudos. Isso por sua vez foi influenciando o surgimento de novas canções, as composições “enxergando” na frente, no modo de tocar do conjunto.

Uma marca do trabalho é justamente a criação coletiva presencial. Não é o jeito mais conhecido de se fazer música, de mandar para o letrista ou vice-versa. Lembro de fazer a música “História do Quintal” com Luizinho no sofá da sala, num sábado de chuva. Ele criou uma levada de violão, ligamos o gravador e fomos cantando em cima, inventando letras com melodia, comentando as ideias na hora, pedindo pra repetir, seguindo adiante, uma coisa muito livre, de livre associação, olhando para o quintal chuvoso. Depois ouvimos a gravação e após alguma capinagem, dali saiu a música. Nesse processo, aprendizados são absorvidos como se a criação do outro fosse a nossa própria, inclusive quando nascem na forma de concessões.

A construção dos arranjos me leva diretamente para o mundo do brincar. Apesar de infâncias e origens totalmente distintas entre os três, fomos crianças que brincaram muito, que ficaram bastante soltas no melhor sentido, todos conectados também ao mato, à natureza. Luizinho dentro do Terreiro do Bogum, no Engenho Velho da Federação, Marcelo em Pirajá, bairro periférico de Salvador e eu entre Nova Jersey, nos EUA, e a zona sul do Rio de Janeiro.

Para finalizar, volto ao maestro, exemplo máximo de quem soube guardar dentro de si uma criança pulsante. Marcelo bem lembrou outro dia que uma das mocofaias originais – termo que significa “espaço onde predomina a falta de ordem” – era a mochila do Letieres. Dali saia laptop, roupa, necessaire, chocolate, sapato, partituras, flauta… uma confusão danada, mas tudo rigorosamente essencial para ele.

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