Maria Esmeralda no País dos Bandeirantes

, por Alexandre Matias

Conheço Pérola de outros carnavais, quando ela ainda estava nos corres de produção no Recife e tenho acompanhado sua evolução como curadora musical nos últimos anos, especificamente o trabalho que fez quando estava à frente da agenda de música do Sesc Pinheiros, quando transformou aquela unidade em uma das mais intensas na área de música no ano passado. Agora ela foi para o Sesc Pompeia e segue fazendo bonito como parte da equipe de programação de música de lá, mas confesso que senti um misto de orgulho e ousadia quando soube que ia rolar o primeiro show do disco Maria Esmeralda no teatro desenhado por Lina Bo Bardi. O Maria Esmeralda é uma das gratas surpresas de 2024 ao consolidar uma ideia que o rapper Thalin – que também é baterista d’Os Fonsecas e toca com outros artistas, como Eiras e Beiras e Nina Maia – vem desenvolvendo há alguns anos com seus amigos produtores VCR Slim, Cravinhos, Pirlo e Iloveyoulangelo. Puxei o Thalin pra conversar logo que o disco saiu porque tinha curiosidade pra saber como aquele disco se materializaria no palco e ele falou de ideias grandiosas que achava que não iria realizar naquele primeiro momento. Mas qual a surpresa quando descobri que ia rolar nesta quinta-feira, 19, no teatro do Sesc Pompeia e, ao comentar sobre isso com ela, ela me disse que havia rascunhado algumas linhas sobre o impacto que o disco teve nela. Pedi para ler e segue abaixo o devaneio urbano e crítico de uma curadora de música sobre um dos discos mais importantes deste ano – e o show, que terá a participação da cantora Marília Medalha, que abraçou a temática do disco e esteve na faixa de abertura, já está esgotado, mesmo que eu tenha insistido com o Thalin de abrir a segunda parte do teatro pra dividir a noite com mais gente, mas ele preferiu manter assim, porque tem uma visão. Fala Pérola:

“Cê sabe que a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos abriga várias linhas com nomes de pedras preciosas, né. Entre Turquesa, Coral, Safira, Rubi e Diamante, há a linha 9, Esmeralda. inaugurada em 1957, ela interliga Osasco ao distrito do Grajaú. Com essa tenho intimidade. Foram alguns anos pra lá e pra cá, no curso da Marginal do Rio Pinheiros, paisagem dilatada, intervalos longos entre estações devido a manutenções, a turma vendendo de tudo. A mudança dos nomes das linhas da CPTM foi feita em 2008, com o objetivo de facilitar a identificação e reafirmar a integração da rede metroferroviária na região metropolitana de São Paulo. Gosto de pensar que, também, a transição foi efetuada simplesmente porque é mais legal assim.

“Na frente do fluxo metroviário
Tem um vendedor
Vende capa de chuva ao comprador
-Me-troviário-

Na quadra poliesportiva
Da pracinha famigerada
…”
(“Poliseportiva“)

Audição pra mim é, fundamentalmente, no transporte público, no uber, no avião, no caminhar, no dirigir, à deriva. Em trânsito a gente atinge outro estado, e é o jeito dado também pelo trabalhador no nosso cotidiano colapsado, travado, sem respiração, todo mundo junto indo pro trabalho e voltando pra casa cansados. O disco Maria Esmeralda colou em mim e em uma galera numa conexão de sentido, pela vivacidade, pelo capricho. Escutei bastante no busão, me comovi no Jardim Líbano, Morro Doce, Praça Ramos… Tem observação direta, desenho realista dos personagens que a gente tromba sempre na rua, embora este seja tão abstrato, viajado. A gente se mistura nessa ficção, são variações das mesmas histórias que também são nossas, nossos problemas pessoais, nossas choradinhas em público. Mas também da paixão, que explode e absorve toda a energia, fazendo a cidade reagir prontamente, com suas pedras preciosas. Tudo brilha.

“Já que tudo acabou
Pelo sim, pelo não
Aquele amor
Que nunca mais foi meu
Eu sou o mesmo que você deixou
Eu vivo aqui onde você viveu”
(“Waldomiro“)

Em Frantumaglia, Elena Ferrante, em respostas a cartas e entrevistas, fala de se acalmar, readquirir olhos e orelhas, ver a cidade como se a estivesse redesenhando, com angústias e prazeres. Fala de recorrer a um fio que reconecta os lugares desintegrados pelas emoções e que permite não apenas o perder-se, mas o governo do perder-se. Ela imbica pra Eneida, de Virgílio, em torno da construção de cidades-mulheres, muralhas-mulheres, polis-mulheres e suas batalhas. Não saberemos se o fim do mundo ao qual estamos submetidos neste momento aconteceria se as cidades fossem governadas por nós. Nápoles, São Paulo, Recife.

“O meu primo é gay
Saiu do armário
Eu apelidei
De primo favorito
Ele era Raul
A minha tia tava cheia de eletrodomésticos
E a vizinha só chorava
O Thundercat não parecia mais real
As discussões me pareciam tão reais”
(“Primo Favorito“)

O andamento da sonoridade e da história de Esmeralda é dolente e malvado, enquanto traz felicidade, pela forma, pelo contorno, pelos contrastes deliciosos, pelo sabor, pelos segredos, pela brincadeira fina. A topografia climática me levou a Nelson rodrigues, à força da imaginação (finalmenteeeee) de dona Ivone Lara, a MF Doom, ao papel do amor, da literatura, do perigo, do rap. Thalin sobrevoa, mastiga, derrete, amolece, interpreta, divide no talentinho, chora, respira, grita, sonha, brisa. Caneta e flow platinados protegendo nossa Maria, nossa Carolina, nossa vovó, nossa espada, nossa heroína. Falou que o filho dela é muita treta e tá num problema imenso, tomou suquin de siriguela, brechou a primaiada, defendeu sua filha não nascida de mente erguida, flanou pelas ruas escuras, tirou onda de tsunami, olhou pro sol, fumou um.

“Um primo meu falou que se entregou pra deus
Uma semana depois recebi um áudio da mãe
Chorando, clamando, pedindo ajuda
Falou que o filho dela entrou em briga”
(“Chão de Mármore“)

Ferrante conta que as cidades são isso. Pedra que se torna viva por causa de nossos sentimentos, de nossos desejos. As pedras esperam para decidir seu destino. e a revoada final de Maria Esmeralda é um mistério tão bonito, né, sua redenção, sua desgraça, sua ternura. Não é uma questão de pedir desculpa mesmo, não tem explicação. Eu mesma também carrego nome de novela, de drama e de pedra.

O resto é só fé.

“Nunca fale de Maria”
(“Judas Beijoqueiro“)

Fechada com Esmeralda,

Pérola.”

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