Em 2024 a mineira Luiza Brina conseguiu por em prática um trabalho que vinha desenvolvendo desde que começou a fazer música, quando materializou uma série de canções que batizava apenas de “Oração” num disco chamado Prece. Desde o ano passado ele vem ganhando forma quando ela convidou Charles Tixier para ajudá-la na produção de um disco que contava com uma orquestra inteira formada por mulheres e várias participações especiais (da argentina LvRod à mexicana Silvana Estrada, passando por Sérgio Pererê e Iara Rennó). Quando a convidei para fazer a temporada de março deste ano no Centro da Terra, ela resolveu apresentar o conceito e as músicas do disco – até então inéditas – chamando poucos convidados (como Tixier, Castello Branco, Iara, Jadsa e Batataboy) e deixando as apresentações intimistas. Prece surgiu opulento e grandioso no mês seguinte, quase um avesso das apresentações no teatro, embora manteivesse seu clima introspectivo e pensativo – e isso aguçou minha curiosidade para saber o disco funcionaria no palco. A curiosidade foi satisfeita neste domingo, quando ela abriu setembro acompanhada apenas de um quarteto – Guilherme Kastrup (percussão e eletrônicos), Lucas Ferrari (eletrônicos), Patrícia Garcia (oboé) e Clarissa Oropallo (fagote) – no palco do Sesc Vila Mariana. A formação pouco ortodoxa emulava a pompa de uma orquestra em versão reduzida, mas os samples disparados por Lucas e Kastrup instigavam ainda mais as madeiras tocadas por Patrícia e Clarissa. À frente, Brina cantava suas orações que por vezes funcionavam como mantras – especificamente as de número 18 e 17. Esta última ela cantou acompanhada de Maria Beraldo, depois de tocar uma das principais músicas do disco de estreia da convidada catarinense, “Amor Verdade”. Sérgio Pererê foi o outro convidado da noite, dividindo vocais na oração de número 13 e tanto Beraldo e Pererê retornaram ao palco no bis, quando repetiram a oração 18 e seu refrão mantra (“pra viver junto é preciso poder viver só, pra gente se encontrar/pra andar junto é preciso poder andar só, pra gente caminhar”) para felicidade do público. E assim sua Prece foi atendida.
Linda a estreia da carreira musical de Olívia Munhoz, mais conhecida por ser uma das melhores iluminadoras da cena independente brasileira, nesta terça-feira no Centro da Terra. Não digo que foi uma surpresa porque ela já havia me mostrado suas músicas há anos atrás, quando, num papo sobre produção de eventos, ela me contou que também compunha suas próprias canções. Quis ouvir, quis saber mais – e quem repara na luz de Olívia sabe que sua sensibilidade não é meramente cênica. Ela me mostrou as músicas e eu falei que valeria experimentar como um show, algo que temos conversado há alguns anos – e ela sempre me contando os lentos passos: quem seria a banda, como seriam os arranjos, o início das aulas de voz. A minha surpresa veio quando vi aquelas músicas que tinha ouvido ainda em fase demo ganhar corpo e estatura quando ela reuniu, como dizia no título da noite, um Grande Elenco para acompanhá-la. E que elenco! Como se não bastasse a banda base, composta pelos amigos Gongom (bateria), Paola Lappicy (teclados) e Guilherme D’Almeida (baixo), cada um deles solando e brilhando à sua maneira, mas sem tirar o holofote de Olívia, que cantava e tocava guitarra segura e tímida na mesma medida. O espetáculo ainda trouxe participações surpresa luxuosas, entre um naipe de metais – formado por Maria Beraldo, Fernando Sagawa e João Barisbe – e duas vocalistas de apoio – Bruna Lucchesi e Paula Mirhan – que apareceram sem ser anunciados. Mas por mais iluminado que fosse o elenco, toda a luz emooldurava as canções e a interpretação de Olívia, que segurou lindamente essa primeira – e justamente por isso curta, sem bis – apresentação. Uma noite feliz.
Eis a capa de Colinho, segundo disco solo de Maria Beraldo, que sua autora vem cozinhando há algum tempo e que finalmente está prestes a colocar no mundo. O sucessor do ousado Cavala é mais uma parceria da compositora com o produtor Tó Brandileone, contará com participações especiais (e pelo teor de um repost, Ana Frango Elétrico é uma delas), tem em Kendrick Lamar uma de suas principais referências (como contou em um stories) e terá seu primeiro single lançado na semana que vem. São as boas notícias do segundo semestre que não param de chegar!
Marcelo Cabral desligou seu primeiro disco solo, Motor, nesta quarta-feira, no Auditório do Sesc Pinheiros, quando reuniu-se com Maria Beraldo e Guilherme Held para revisitar mais uma vez seu disco de 2018 pela última vez ao mesmo tempo em que começa a mostrar seu próximo trabalho, ainda sem título definido, mas já em fase de finalização. Entre as canções sóbrias e melancólicas deste seu disco de estreia, Marcelo, tocando guitarra e não seu instrumento de origem, o contrabaixo, entrelaçou o clarone e o sax de Beraldo à guitarra de Held criando uma atmosfera ao mesmo tempo ambient e noise, com o auxílio de seu vocal conciso, pedais, microfonia e do técnico de som, Bernardo Pacheco. E entre as músicas do disco novo, que está sendo gravado com o baterista Biel Basile, d’O Terno, mostrou composições feitas com Rodrigo Campos e Rômulo Froes, além de uma canção composta com um novo parceiro, quando entregou “Tarde Azul” para ganhar letra de Fernando Catatau. Foi bem bonito.
Terceira vez que pude ver ao vivo o sensacional Erosão, primeiro trabalho solo da baterista Mariá Portugal, que ela gravou antes da pandemia mas que só conseguiu apresentá-lo nos palcos depois que atravessamos aquele pesadelo. Neste meio tempo, ela mudou-se para a Alemanha, o que tornou suas apresentações ainda mais esporádicas por aqui. E ela mesma já avisou que a sessão que puxou na Casa de Francisca nesta quarta-feira talvez seja a última vez que ela executa esse trabalho ao vivo por aqui. E que despedida! Numa formação bem mais enxuta daquela que ela reuniu no primeiro show, no Sesc Pompeia, em outubro de 2022, quando contou com nove músicos no palco, mas igualmente inusitada – e excelente. Ela regeu a apresentação a partir de seu instrumento, dividindo os vocais com o camarada Tó Brandileone, que cantavam sobre um instrumental em que três sopros (Maria Beraldo, Rômulo Alexis e Marina Bastos) e dois contrabaixos acústicos (mais uma vez Arthur Decloedt e Marcelo Cabral) conversavam entre si – em horas plácidos e corteses, em outras empolgados e endiabrados e a apresentação seguiu o mesmo fluxo único em que canções transformam-se em improvisos, solos e encontros instrumentais, que funcionam como pontes que intercalam um tema ao próximo. Uma obra aberta e fechada ao mesmo tempo, em que Mariá nos provoca a pensar nossa relação com o tempo e o espaço, mesmo sem fazer isso de forma racional. E aí está a magia desta apresentação, que é ao mesmo tempo densa e leve – e nesta terceira vez ela estava irrepreensível. O que me faz acreditar que ela voltará a ser visitada nos palcos sim (foi mal, Mariá…), só que talvez não tão em breve… Inclusive tomara.
#mariaportugal #casadefrancisca #trabalhosujo2024shows 8
Maria Beraldo encerrou sua temporada no Centro da Terra nesta segunda-feira convidando seus compadres Lello Bezerra e Marcelo Cabral para tocar músicas que ela compôs depois do lançamento de seu primeiro disco solo, Cavala, e entre canções feitas por encomenda para outros artistas e estudos de músicas que ainda estão tomando forma, ela burilou seus rascunhos e mostrou o rumo que seu próximo trabalho pode tomar. Algumas canções estão completas (como “Baleia” que escreveu para o Delta Estácio Blues de Juçara Marçal, completamente desconstruída, logo na abertura do show, e “Truco”, composta para o filme Regra 34, de Julia Murat, e a inédita “Ninfomaníaca”), outras estão sem letra (como uma que fez para uma série que pediram uma música “meio Clube da Esquina”), outras têm apenas um trecho e algumas são exercícios instrumentais. Entre as músicas, Maria foi explicando seus contextos e traçando um possível rumo em que elas podem se encontrar num futuro – álbum – próximo. Foi lindo.
“O samba e o choro são bem constituintes da origem do meu enredo”, Maria Beraldo arrematou (bem, como ela mesma constatou) no meio de sua terceira noite no Centro da Terra, quando apresentou ao lado de Rodrigo Campos um amplo repertório de sambas, de clássicos da velha guarda a hits do pagode dos anos 90. Só os dois no palco, tomando uma cervejinha, cada um com um instrumento em diferentes momentos – Beraldo ia do cavaquinho ao clarinete ao violão enquanto Rodrigo ia do violão ao repique ao cavaquinho, numa roda a dois que teve momentos terrenos e sublimes. Da primeira música que Maria aprendeu ao cavaquinho (“Apaga o Fogo Mané”, de Adoniran Barbosa) à “Minha Missão” de João Nogueira, o repertório foi costurado por Chico Buarque (“Bom Tempo” e uma versão maravilhosa para “Dois Irmãos”), Exaltasamba (“Gamei”), Só Pra Contrariar (“Inigualável Paixão”) e Dona Ivone Lara (lembrada na maravilhosa “Tendência”, que Maria aproveitou para revelar qual é o tema da terceira lição de sua banda, o Quartabê). Os dois ainda tocaram duas inéditas que compuseram juntos, duas de Rodrigo Campos (“Firmeza?!” e “Batida Espiral”), mas o ponto nevrálgico da apresentação foi exatamente no meio quando emendaram “Lindeza” de Caetano Veloso (você conhece, “coisa liiiiindaaa…”) com “Recado À Minha Amada” do Katinguelê (você também conhece, “lua vai…”) mostrando que o samba segue samba não importa de onde ele venha.
Foi assim, desvirtuando de leve (ma non troppo, porque tá tudo ali), que Maria Beraldo, Josyara e Mariá Portugal (que entrou como convidada-surpresa) celebraram o amor sapatão ao desfilar o repertório de Cássia Eller à base de guitarra (e por vezes clarone), violão e cajón (que Mariá trouxe à tona de duas décadas sem tocá-lo, pronta para ressuscitar o instrumento de percussão no cenário pop brasileiro). A segunda apresentação da temporada Manguezal de Maria Beraldo no Centro da Terra foi intimista e acolhedor ao mesmo tempo que apaixonado e bem humorado, fazendo as três passear por composições de Nando Reis, Renato Russo, Ataulfo Alves, Gilberto Gil, Luiz Capucho, Djavan, Caetano Veloso, Itamar Assumpção (que Beraldo misturou com a base de sua “Da Menor Importância”), João do Vale e Tião Carvalho sempre muito à vontade, brindando taças de vinhos, pedindo para o público (que lotou a casa) cantar junto, numa noite mágica e apaixonante. Bonito demais.
Maria Beraldo começou bem sua temporada Manguezal no Centro da Terra ao apostar num encontro que estava mais à vontade – ao receber a comadre Mariá Portugal, com quem toca no Quartabê e já fizeram tantas coisas juntas, ela sabia que estaria mais tranquila mesmo que para correr riscos. E atravessou quase uma hora de espetáculo alternando entre clarone, clarinete e guitarra elétrica sentada de frente à amiga, em sua bateria, trabalhando diferentes instrumentos de percussão – e vocais. As duas engalfinharam suas vozes entre gritos e sussurros que passearam entre suas próprias canções (como quando misturaram “Petróleo” de Portugal com “Tenso” de Beraldo) e algumas alheias, como “Vaca Profana” eternizada por Gal Costa e uma conveniente e radicalmente desconstruída “Como Nossos Pais”, de Belchior. Uma noite de tirar o fòlego.