Como se cria uma lenda (no sentido literal), edição 2006: Bruxa de Blair, Zé do Caixão, YouTube, hip hop naïf, Alysson Jazz Ensemble, trip hop, música brega, violência familiar – eis Bertulina, de Marli. Quando eu vi, já tinha sido visto quinze mil vezes. Suspeito que este número irá crescer…
Não sei ainda, mas parece que “Crazy” segue esse rumo…
McDonald’s e Maconha, Coca-Cola e cocaína.
Eu tou selecionando umas coisas do YouTube pra linkar aqui, mas tinha que colocar isso antes…
Visto de fora, nossa normalidade é a coisa mais absurda possível. Matamos e fritamos bichos pra comer. Estudamos metade da vida para trabalharmos em coisas que não tiveram a ver com nada daquilo que aprendemos. Carros usados como armas, armas usadas como brinquedos, brinquedos usados como formas de provocar os outros. O comportamento humano talvez seja a verdadeira essência da humanidade. Não é a racionalidade ou a estrutura física ou a espiritualidade que nos torna quem somos: é a forma que agimos uns com os outros, como nos portamos diante das diversas situações da vida, rituais e manias que, tiradas de contexto, não fazem sentido algum. Você não vê nenhuma espécie no planeta terra – e talvez no universo – que seja, ao mesmo tempo, tão sábia e tão idiota. Isso é a base da obra davidbyrneana, a síntese do conceito das letras dos Talking Heads. Analisando a sociedade humana como se a antropologia (ou a zoologia) fosse a sociologia, David Byrne muda um pouco o foco da realidade e vê uma coisa completamente diferente. Assim, torna-se um cara à frente do nosso tempo, mesmo que por apenas uma hora. Percebendo algumas coisas antes de todo mundo, Byrne é metade do que faz o Talking Heads uma das melhores bandas detodos os tempos. A outra metade é a poderosa seção rítmica do grupo.
Fundado em pleno punk rock, os Talking Heads (como o B-52’s, o Devo, o Fall, o Gang of Four e tantos outros) transformaram a inaptidão técnica em ritmo, criando grooves – quadrados, em geral – que nos impunham ao ritmo robótico da canção. Mas aos poucos, a banda começou a criar uma forma prática de tocar que floresceu onde ninguém esperava – na cozinha. O casal Tina Weymouth e Chris Franz era mais inofensivo que qualquer outro tipo de dupla. Ela frágil e apática, ele gordo e sorridente, usando bonés daquele jeito que só os caipiras norte-americanos conseguem. Mas dali, provavelmente da química sexual dos dois, surgiu uma máquina de ritmo sinuosa e marcial. O baixo de Tina é macio e meloso, conduzindo a dança no sentido horizontal, enquanto o maridão trabalha no sentido vertical com pulso firme e preciso; um funk minimal que cresce e controla o ambiente. Acrescente aí a guitarra e os teclados de Jerry Harrison, o mesmo que, ao lado de Johnattan Richman e sob a supervisão do ex-Velvet John Cale, gravou as primeiras demos que mais tarde se tornariam o primeiro e clássico disco dos Modern Lovers. Jerry solava bem, mas reduziu sua guitarra ao suíngue apertado de Tina e Chris e passou a usar o teclado mais como uma máquina de ruídos, tocando-o como um piano quando necessário. À frente de tudo, a figura caricatural de David Byrne. Magrelo e constantemente de olhos arregalados, Byrne não tinha cabelos espetados ou jaqueta de couro. Pelo contrário, tocava usando roupas normais, calças de linho e camisas de gola, meias de algodão e tênis. Seu ar tímido contrastava com sua performance robótica que, acrescido de sua voz nem aguda nem grave e deliciosamente desafinada e da forma percussiva que tocava seu instrumento – às vezes uma guitarra, às vezes um imenso violão. Eram os Talking Heads. Sua crítica social irônica era – junto com o marxismo do Gang of Four e o pós-modernismo do Pere Ubu – o máximo que o rock poderia se aproximar do intelectualismo sem parecer pedante ou, pior, progressivo. No final dos anos 70 esta palavra era vista com os piores olhos possíveis, criando um preconceito que atravessa décadas (alguém já disse que é impossível ignorar um gênero inteiro e isso é verdade).
E os Heads eram intelectuais. E botavam o povo pra dançar. E aos poucos ganharam omundo. Mas estamos ainda em 1979, quando o grupo ainda vinha sendo assimilado. O primeiro disco, Talking Heads’77, contou com a sorte de um hit perfeito: Psycho Killer, um clássico. O segundo, More Songs About Food and Buildings, os associava pela primeira vez com Brian Eno, num casamento que se mostrava prático e promissor. Ainda não era o suficiente. Precisavam de uma prova definitiva, um disco que não deixasse dúvidas se o grupo era bom ou não. E assim nascia Fear of Music.
Centralizando sua tese sociológica no medo, David Byrne explicava com detalhes um mero capítulo de algo que as pessoas não tinham certeza que sequer existia. Era um disco conceitual sobre o medo sem sequer citar o medo. As canções encerram conceitos definitivos sobre assuntos diversos e todos eles são encarados com estranheza, com diferenciação. O medo é decorrente. Gravado no apartamento de Chris e Tina, em Long Island (Nova York), Fear of Music começa nos apresentando ao desconhecido.
I Zimbra é uma letra do poeta nonsense Hugo Ball e não quer dizer nada, pelo menos que saibamos: “Gadji Beri Bimba Clandridi/ Lauli Lonn Cadori Gadjam/ A Bim Beri Glassala Glandride/ E Glassala Tuffm I Zimbra”. O ritmo é tenso e repetitivo e o funk torna-se sombrio e mais negro que em qualquer outro disco do Talking Heads. Culpa do baixo de Tina Weymouth, que torna-se um elástico de groove da noite pro dia e da percussão afro-caribenha que aos poucos vai tomando conta do grupo. A letra é cantada em coro como um rito tribal por todos os Talking Heads e por Brian Eno, que “trata” o disco (a definição é dele mesmo – “treatments”, nos créditos) e acrescenta teclados esquizóides ao final da canção. Na base, quieto, quase escondido, Robert Fripp ajuda Jerry e David a compor o muro de som que cresce até explodir subitamente ao fim da música.
Em Mind, o baixo de Tina (o fio condutor de todo o disco) puxa as guitarras abafadas que parecem datilografar alguma palavra. Byrne, preocupado, procura algo para mudar a mente do ouvindo, já que nem as drogas, nem o tempo, nem a ciência, nem a religião, nem o dinheiro, nem ele mesmo parecem surtir efeito. “Tento falar consigo para esclarecer as coisas/ Mas você sequer me ouve”, canta desesperado, enquanto as guitarras cantam riffs preguiçosos que deslizam pelobaixo central.
Paper tenta incitar a paranóia: “Segure o papel contra a luz (alguns raios podem atravessá-lo)/ Exponha-se lá fora por um minuto (alguns raios podem atravessá-lo)”. O suíngue torna-se massivo e, paradoxalmente, minimal, e é enfeitado com guitarras que parecem extraídas de Revolver, dos Beatles.
Cities começa baixinho até explodir num groove robótico que seria explorado melhor no disco do ano seguinte, Remain in Light. Na letra, Byrne descreve cidades pelos defeitos, enquanto procura um lugar pra morar: “Pense em Londres, uma cidade pequena/ É escuro, escuro de dia/ As pessoas dormem de dia/ Se quiserem”, “Há muitos ricos em Birmingham/ Muitos fantasmas em muitas casas/ Olha lá: uma fábrica de gelo seco/ Um bom lugar pra arrumar idéias prontas”, “Esqueci de Memphis/ Casa de Elvis e dos gregos antigos/ Eu tô fedendo? Eu fedo a comida/ É só o rio, é só o rio”. Sem avisar ninguém, Byrne “rouba” uma estrofe inteira, imprimindo apenas sualetra no encarte.
Life During Wartime (que foi surrupiada por Marcelo Nova para compor Hoje, do Camisa de Vênus, e recentemente gravada pelos Paralamas do Sucesso) é o mais próximo do Talking Heads que estávamos acostumados. Como diz o título, a canção fala da vida durante a guerra, mas sem romantismo ou pavor. A faixa conta a história de um cara que, em meio a uma guerra, tenta viver uma vida normal, apesar de tudo. A letra compila alguns dos melhores momentos do letrista. “Ouvi falar numa van cheia de armas pronta pra sair. Ouvi falar de cemitérios clandestinos perto da estrada, num lugar que ninguém sabe onde é. Som de tiros à distância, estou me acostumando. Moro na periferia, moro no gueto, moro por toda cidade. Isso não é uma festa, não é uma discoteca. Não dá pra ficar de bobeira. Não dá pra dançar ou paquerar. Não tenho tempo pra isso. Transmita a mensagem ao receptor, espere respostas, algum dia. Tenho três passaportes, um par de visas, não sei nem meu nome de verdade. Perto da colina, estão abastecendo caminhões, tudo está pronto pra sair. Durmo de dia, trabalho à noite, nunca mais chego em casa. Isso não é uma festa, não é uma discoteca. Não dá pra ficar de bobeira. Não tenho tempo pro Mudd Club ou pro CBGB. Não tenho tempo pra isso. Ouviu falar de Houston? Ouviu falar de Detroit? Ouvi falar em Pittsburgh, PA? Melhor não ficar à janela, alguém pode vê-lo. Tenho umas frutas e manteiga de amendoim pra alguns dias. Não tenho caixas, não tenho fones, nem discos pra ouvir (…) Adoraria te beijar, adoraria te abraçar, não tenho tempo pra isso”.
Memories Can’t Wait fecha o lado A com a mais séria canção dos Heads. Pesada e deprê, Memories… fala em amnésia e coma, mas de forma pertubadora e sutil: “Você lembra de alguém aqui?/ Não, você não se lembra de ninguém/ Estou dormindo, deitado/ Nunca acordei, não me arrependo/ Há uma festa na minha mente/ Que nunca acaba/ Uma festa lá em cima o tempo todo/ Vão festejar até cair/ Outros podem ir pra casa/ Outros podem ir dormir/ Estou aqui o tempo todo/ Não posso ir embora”. Pela primeira vez as guitarras assumem o comando e o resultado é a música mais assustadora dodisco.
O lado B começa no extremo contrário. Air é doce e suave (com belos backing vocals) e dá ao baixo os controles do disco, mais uma vez. Agora o objeto de insegurança e aflição é o ar, que, segundo Byrne, “também pode te machucar”.
Heaven talvez seja um dos melhores momentos do disco. Rock lento e onírico, a faixa descreve o céu como um lugar que nada (ou “o nada”) acontece o tempo todo. “A banda no céu toca minha música favorita/ Toca mais uma vez, toca a noite inteira”, “Quando esse beijo acabar, recomeçará/ E não será diferente, será exatamente o mesmo”. O nada e a morte tornam-se objetos de uma apreciação lúdica e inédita na música pop. “É difícil acreditar que o nada absoluto possa ser ser tão excitante, tão divertido”.
Animals brutaliza a banda para falar da agressividade e do instinto animalesco do ser humano. “Descobri que os animais não ajudam/ Eles pensam, são bem espertos/ Cagam no chão, vêem no escuro/ Nunca estão lá quando precisamos deles/ Nunca estão lá quando os chamamos/ (…) Animais pensam, entendem/ Acreditar neles é um grande erro/ Animais querem mudar minha vida/ Eu sempre foi ignorar conselhos de animais”. Realçando o lado animal do ser humano, Byrne transforma os bichos em seres tão racionais como nós, apenas para ridicularizar nossas ansiedades e fobias.
A guitarra elétrica é posta em um tribunal em Electric Guitar. O som é um antiska que conta a história de um atropelamento (da própria guitarra), que chega a algumas conclusões: “Nunca ouça a guitarra elétrica” e “Alguém controla a guitarra elétrica”.
Drugs encerra o disco com uma atmosfera ao mesmo tempo tensa (culpa do baixo, dos teclados e da guitarra esparsa) e bucólica (culpa dos sons florestais sob o som da banda).
Fear of Music é mais uma versão contemplativa que o Talking Heads faz da raça humana, observando-a desta vez pelas coisas que lhe incomoda, que lhe assusta. E é o disco em que o funk do grupo está mais coeso e denso, antes de explodir no universo de ritmos caribenhos que seria o próximo disco do grupo, Remain in Light. Mas isso é outro papo…
Foto: pstrelkow
Ontem, na gravação do programa Bem Brasil, no Sesc Pompéia, a Nação Zumbi tocou uma música sem guitarra, “Cidadão do Mundo”. Mas Lucio Maia, o guitarrista, ainda estava no palco – só que comandando um oscilador que distorcia os ruídos emitidos por seu instrumento, largado ligado no chão. Isso é uma amostra do que o novo projeto de Lucio, Maquinado, está fazendo com a cabeça do cara. Ao lado dos bambas cearenses Junior Boca (que toca com Otto) e Fernando Catatau (do Cidadão Instigado) nas guitarras (isso mesmo, três guitarras!), ele estréia o projeto ao vivo hoje, ali no Sarajevo, na balada Frankáfrika, do Radiola Urbana. Vai ser istaile.
Textinho do Caderno C, fase Campinas ainda.
Para uns, o cinema é uma retratação subjetiva da realidade, um ponto de vista muito específico através do qual observamos determinada história que, ficção ou não, tem algum vínculo com a nossa existência, com a nossa noção de ser. Para outros, a sétima arte consiste na forma com que as imagens são conduzidas, fazendo com que passemos por diversas e específicas emoções apenas pela forma que o conjunto multimídia de texto, atuação, imagem e som discorre frente aos olhos. Para os seguidores da segunda vertente, Stanley Kubrick é o Maestro, com “m” maiúsculo.
“Um filme é – ou deveria ser – mais música que ficção”, dizia, “deve ser uma progressão de atmosferas e sentimentos. O tema, o que está por trás da emoção, o significado – tudo isso vem depois”. Kubrick era essencialmente um compositor cinematográfica: cada cena, um movimento; cada câmera, um andamento; cada filme, uma sinfonia. Sem se ater a uma linha temporal de trabalho (com grande parte dos diretores, que limita-se a descrever o século cujo centro é seu aniversário), Kubrick fez como os grandes compositores eruditos e visitou épocas e lugares, sem pensar em limites. Desde a origem do homo sapiens a um futuro totalitarista, passando pela nobreza européia do século 18, por tropas de soldados romanos, por duas guerras – tudo regido com pompa e pulso, com câmeras que lentamente observam algum ser humano perdendo sua humanidade num cenário grandioso.
Regularmente tachado de pessimista, o centro da obra de Kubrick vem de uma constatação tão profunda quanto significativa. Seu realismo conclui que o que torna o homem diferente dos animais é sua capacidade de escolha, de observação de possibilidades e consciência das decisões tomadas. O homem nasce com a razão, mas é ela quem lhe possibilita sua própria destruição, uma vez que é ela quem permite que a violência seja usada para a dominação. É a violência quem desumaniza o ser humano e sempre que isso acontece, quem usou da violência se beneficia. Toda a obra de Kubrick se baseia na capacidade do ser humano dominar outro semelhante pelo uso da violência. Na natureza do poder.
Ele se manifesta de diferentes maneiras dentro de seu trabalho. Cada filme disserta sobre uma das possíveis formas de poder e como ela pode e normalmente é usada para causar o mal, violenta. Até um filme como Lolita, de 1962, traz este tipo de tensão no ar, reduzindo o pobre Humbert Humbert (de James Mason) a um escravo dos caprichos da personagem-título (Sue Lyon, perfeita). Passamos por Spartacus, de 1960 (com Kirk Douglas, Laurence Olivier e Peter Ustinov); Paths of Glory, de 1959 (também com Douglas); e Nascido para Matar, de 1987 – filmes sobre guerras e soldados, líderes e ordens. A dinâmica do poder na política da guerra é traduzida em cada movimento frio das câmeras. Em Dr. Fantástico, de 1964, o clima documental apenas aumenta a paranóia que ferve o sangue das autoridades americanas depois que um general enlouqueceu e lançou os mísseis que detonariam a Terceira Guerra Mundial.
A autoridade de Alex em Laranja Mecânica, de 1971, frente a sua gangue e ao Estado é um dos mais instigantes conflitos traçados por Kubrick e a mais sólida oração sobre a natureza da violência já feita. Ela volta a ser questionada em 2001 – Uma Odisséia no Espaço, de 1968, que teima em comparar o nascimento do homo sapiens ao da inteligência artificial (um dos projetos que deixou para trás, o filme A.I.), que coloca em xeque até mesmo uma possível evolução espiritual do ser humano. É seu filme mais marcante e o mais fácil de digerir, mesmo porque é um dos poucos com final, posso dizer, feliz.
Mas nada era mais importante para Kubrick do que uma boa imagem. Começou no cinema através da fotografia, hobby da adolescência que lhe tomava o tempo como o xadrez, outra enorme paixão. Como um fotógrafo, Kubrick enxerga onde só ele consegue ver e cria imagens para traduzir suas idéias em belíssimas metáforas audiovisuais. Cenas marcantes como o caubói que cavalga o míssil em Dr. Fantástico, toda a seqüência final de 2001, as alucinações de Laranja Mecânica, as gêmeas em O Iluminado. Recursos diferentes que apenas querem seduzir os sentidos do espectador, que entram no roteiro como espasmos abstratos, às vezes tirando completamente a lógica do filme.
Fanático por sinais, coincidências e símbolos, Kubrick morreu exatamente 666 dias antes de 2001, na Inglaterra, o verdadeiro lar que adotou após brigas com a indústria cinematográfica de seu país. Havia acabado de filmar De Olhos Bem Fechados, que causou polêmica pelo casal de atores escolhidos – Tom Cruise e Nicole Kidman – e por sua “narrativa hermética”. Mas quem entra num filme de Kubrick esperando entender a história, perde o verdadeiro sentido, o banquete sensorial que o cinema pode se tornar.