Além de seu evento principal, o Popload desse ano desdobrou-se em dois eventos paralelos realizados no Cine Joia – o primeiro deles com a banda nova-iorquina Lemon Twigs, um dia antes do festival e o outro no dia seguinte, com a mestra Kim Gordon fazendo uma apresentação solo. E diferente do primeiro deles, o segundo contou com uma abertura à altura da atração principal. E não apenas porque a norte-americana Moor Mother – artista,ativista e poeta – transita em uma seara musical tão perigosa e transgressora quanto a atual fase da fundadora do Sonic Youth, mas por ter convidado Juçara Marçal e Kiko Dinucci para a acompanharem na primeira parte de sua apresentação, que pode ser considerada um dos grandes momentos do festival como um todo. Juntos, os três desbravaram um caminho tortuoso entre o canto e a fala, com Moor Mother e Juçara entrelaçando vozes em uma ação contínua entre som e sentido, enquanto Kiko seguia tornando seu violão percussivo, batucando riffs, linhas de baixo e ruídos para as duas soltarem-se livres. Depois que a dupla saiu, Moor Mother seguiu sozinha no palco igualmente virulenta, cuspindo versos em dois microfones, um deles sempre com algum efeito, enquanto disparava bases eletrônicas e pesadas a partir de seu computador. Mas depois do ataque inicial do trio, seu solo perdeu um pouco do atordôo, tornado livre justamente por não ter nenhum elemento sonoro pré-gravado. E era só o começo da noite…
Depois Kim Gordon subiu ao palco do Cine Joia para encerrar as atividades do Popload Festival deste ano como principal artista do segundo show paralelo do evento – e quanta diferença um lugar pode fazer a um show. Porque ela apresentou um show bem parecido – tanto em repertório quanto em duração – com o que fez na versão completa do festival, no dia anterior. Mas colocá-la em uma casa de shows sem luz natural e com o foco totalmente preso nela fez toda a diferença – principalmente porque no sábado ela tocou ao ar livre, sob a luz do sol e com o som e atenção do público dispersos. O domingo foi a vingança de Kim Gordon, que ainda contou com um ótimo som no Cine Joia, que potencializou ainda mais a virulência de sua apresentação. Vestindo uma camisa social e gravata preta no lugar do moletom do dia anterior, ela veio mais a rigor para um show que, como o outro, priorizava seu segundo álbum, The Collective, à frente de uma banda de rock novíssima que não ficava presa às amarras do gênero – muito pelo contrário, buscava explorar com vigor e ruído os espaços abertos por Kim em sua investigação musical em torno da música urbana deste século. O canto falado e quase ausência de contato com o público reforçavam a frieza da sonoridade daquele quarteto, solapando bordoadas sonoras que passavam pela banda anterior de Kim como referência (ela inclusive pegou na guitarra em várias canções), mas não reverência, fazendo todos saírem felizes do encontro ao perceber que ela continua um motor da transgressão, mas não quer olhar para trás. Muito foda.
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Tive que ir de novo no formidável encontro dos violões de Kiko Dinucci e Jards Macalé, que, nessa sexta-feira, fizeram um show quase idêntico ao que fizeram no dia anterior, numa apresentação menos informal – embora tenha rendido boas prosas entre as músicas, como na quinta – e um pouco menor que a anterior, talvez porque Jards tenha trocado “Mal Secreto” – que é mais extensa devido a uma citação do clássico da bossa nova “Corcovado” – por uma versão acachapante – e solitária – para “Movimento dos Barcos”, esta posta no repertório a pedido de Kiko. Escrevi sobre o show, que deverá repetir-se em algum momento em breve, em mais uma colaboração que faço para o Toca do UOL.
“E aí, doutor Kiko?”, perguntou Jards Macalé a Kiko Dinucci, que respondeu com outra pergunta (“E agora?”) prontamente respondida por Macau: “Agora foda-se”. Sabíamos que seria memorável, mas acho que nem Kiko nem Jards tinham ideia da química que baixou sobre os dois na primeira das duas apresentações que marcaram para esta semana no Sesc Pompeia. Mesmo com diferenças de geração, personalidade, origem e criação, os dois são gêmeos univitelinos no violão e dividem o mesmo humor – autodepreciativo e de um pugilismo quase fraterno – e apreço pelo baixo calão da vida, o que tornou a apresentação um acontecimento histórico. Passeando por diferentes fases do repertório de Jards, clássicos do samba e algumas canções de Kiko, os dois mostraram a força e a delicadeza de seus violões. Jards é da geração impactada diretamente por João Gilberto e seu instrumento fica entre o ritmo sincopado do mestre baiano e o suingue carioca de seu contemporâneo Jorge Ben, enquanto Kiko, guitarrista de nascença, convertido ao outro instrumento pelo samba, é diretamente influenciado pelo violão de Jards, além de trazer suas influências elétricas – do punk ao noise – para seu pinho. Mas o ponto em comum dos dois é a história do samba, visitada através de clássicos (como “Se Você Jurar” de Ismael Silva embutida em “Let’s Play That”, “Luz Negra” de Nelson Cavaquinho, “Ronda” de Paulo Vanzolini e “Favela”), e a devoção de Kiko por Jards, mencionada pelo próprio, que o perseguia por shows vazios em São Paulo quando ainda era adolescente (dele e de Itamar Assumpção, que não conheceu, como frisou). Isso deixou-o à vontade para passear com Jards em seus sambas imortais como “Pano pra Manga”, “Farinha do Desprezo”, “Boneca Semiótica”, “Depressão Periférica” e “Soluços” (esta no bis), além de duas que Jards tocou maravilhosamente sozinho: “Anjo Exterminado” e “Mal Secreto”. Kiko por sua vez fez duas de seu Rastilho sem Jards (“Febre do Rato” e “Gaba”) e lembrou que há cinco anos ele lançava seu clássico disco naquele mesmo teatro do Pompeia. Os dois ainda tocaram músicas que compuseram juntos, como “Vampiro de Copacabana” e “Coração Bifurcado”, mas tiveram um de seus melhores momentos quando emendaram “Antonico” – eternizada por Gal em seu disco ao vivo Fatal, que Jards visitou diversas vezes em diferentes momentos de sua carreira (tanto só quanto com o próprio Ismael, com Marçal e com Dalva Torres) e que Kiko vem tocando no momento acústico do show mais recente de Juçara Marçal – com uma que Jards nunca havia tocado ao vivo, “No Meio do Mato”, de seu disco Contrastes, de 1977. Um show que parece, ao mesmo tempo, um reencontro de velhos irmãos e o início de uma longa amizade musical. Sorte a nossa.
#jardsmacale #kikodinucci #sescpompeia #trabalhosujo2025shows 094
Esse encontro do Jards com o Kiko só com seus respectivos violões no Sesc Pompeia promete ser histórico, hein? Se liga que os ingressos já estão à venda…
Arnaldo Antunes apresentou seu Novo Mundo em São Paulo neste fim de semana, quando esteve na choperia do Sesc Pompeia acompanhado de quase a mesma bandaça que o ajudou a erigir seu novo disco – além de Kiko Dinucci na guitarra, Vitor Araújo nos teclados e synths e Betão Aguiar no baixo, o novo grupo tinha Curumin na bateria (em vez do produtor do álbum, Pupillo) e Chico Salem ao violão e guitarras. Mas talvez por ter visto o primeiro dos três shows do fim de semana, na sexta-feira, tenha pego um momento em que eles ainda estavam tateando o novo show, o que fez a noite aquecer do meio pro fim. Com o foco no repertório do novo álbum (mas sem participações especiais – podiam ter chamado Ana Frango Elétrico ou Vandall para participar de uma das músicas), Arnaldo também passeou por outros momentos de sua carreira, visitando tanto Titãs (“O Pulso” e “Comida”, que apareceu no bis) quanto Tribalistas (quando engatou “Já Sei Namorar” logo no começo e “Passe em Casa” antes de terminar a primeira parte) quanto hits de sua carreira solo, mas o show engrenou bonito quando pinçou uma nova (“Tire Seu Passado da Frente”) e emendou com uma versão para o reggaeinho “Cultura”, que, ao deixar na mão dessa banda, virou uma dubzeira cabulosa e o primeiro grande momento desse grupo cinco estrelas soando como uma unidade em si, em vez de mera cama sonora para as canções de Arnaldo. Autor e banda ainda estão se reconhecendo no palco e é inevitável que aos poucos todos soarão como uma só força, mesmo com os holofotes voltados para o poeta.
#arnaldoantunes #sesscpompeia #trabalhosujo2025shows 069
Meu camarada Carlos Albuquerque, o bom e velho Calbuque, está na equipe da recém-lançada edição brasileira da clássica revista norte-americana Esquire, que chega impressa ao Brasil em edições especiais. E no primeiro número, ele organizou uma enquete com um júri da pesada incluindo jornalistas, executivos da indústria e artistas (este que vos escreve incluso) para descobrir quais são os 20 discos mais importantes desde 2020 até hoje e o resultado (que pode ser visto abaixo) está nas bancas com um texto de apresentação do próprio Calbuque.
Já está no ar o registro em vídeo do festival Cecília Viva, que aconteceu no Cine Joia em fevereiro deste ano, reunindo shows de artistas como Boogarins, Crizin da Z.O., Kiko Dinucci, Test, DJ Nuts e a primeira apresentação ao vivo das Rakta desde a pandemia para arrecadar grana para ressuscitar a Associação Cecília, clássico ninho de projetos experimentais musicais em São Paulo que sucumbiu à violência paulistana no começo do ano passado. O filme, feito pela dupla Azideia Filmes (formada por Carlos Motta e Priscilla Fernandes), reúne os melhores momentos dessa histórica noite e capta bem o espírito de agradecimento espalhado entre público e artistas (além de várias aparições minhas no canto, sempre filmando tudo). E não é o último evento: a Associação promete novos eventos de diferentes portes ainda esse ano, o próximo deles acontecendo no dia 15 de maio no Porta, com atrações que serão reveladas em breve.
Domingaço no Cine Joia, quando a Associação Cecília reuniu a nata do underground brasileiro atual para um evento histórico. O festival Cecilia Viva foi criado para arrecadar fundos para o renascimento da casa que fechou suas portas no ano passado por motivos de força maior e era um dos principais focos de resistência e criação da cena alternativa de São Paulo. E foi bonito ver o Cine Joia ir enchendo lentamente até praticamente lotar sua parte inferior para ouvir artistas que abraçam o risco e o experimento como matéria-prima de suas apresentações. O festival começou ainda de dia, com o show dos cariocas do Crizin da Z.O., que infelizmente não consegui chegar a tempo, mas consegui pegar o Test – que nunca tem erro. A dinâmica entre a guitarra e o vocal de João Kombi e a bateria de Barata é um casamento único que deixa o público com os nervos à flor da pele, de tanta tensão. Como a maioria das apresentações da noite, o Test fez um show curto e direto, sem espaço para descanso, deixando claro que esse clima – essencialmente paulistano – era a tônica do evento.
Depois do Test foi a vez de Kiko Dinucci subir ao palco do Cine Joia para defender seu primeiro disco solo, Cortes Curtos, sozinho na guitarra. Houve quem se frustrasse ao perceber que o compositor de Guarulhos tocaria seu disco de 2017 sem banda, mas… Sinceramente? Nem precisava. Só o reencontro de Kiko com seu instrumento-base já seria motivo para comemoração (quanto tempo que ele não toca guitarra num show? Nem lembro mais…), mas o sambista-punk foi além e segurou boa parte das músicas de seu disco no clima tenso que instaurou-se no palco durante o festival: emendando uma música atrás da outra, sem conversa nem tempo pra respirar. E como é bom ver o Kiko na guitarra, principalmente quando ele liga o modo noise, invocando o espírito Glenn Branca para o contexto da vanguarda de São Paulo, misturando suas referências-chave (Lira Paulistana, punk rock e samba paulistano). Volta pro noise, Kiko!
No meio da noite, a referência rock ficou em segundo plano quando o DJ Nuts apresentou um set autoral, misturando bases de diferentes pontos da sua vasta coleção de música brasileira com vocais sampleados de rappers brasileiros, criando um clima pesado e tenso com o daquela noite de domingo. E ao trajar uma camiseta do clássico disco primeiro disco solo do ultramagnetic MC Kool Keith como Dr. Octagon (projeto criado ao lado do produtor Dan the Automator), Nuts deixou clara as intenções daquele set, que era menos para dançar e mais para entrar em nossas mentes enquanto mexia no inconsciente com samples levemente reconhecíveis e timbres vocais que todos conhecemos, numa apresentação que mostrou que, mesmo a Associação Cecília tenha nascido num contexto punk, sempre estava aberta a outras formas de experimentação musical.
Os Boogarins vieram quase no final do festival, puxando mais uma de suas sessões de cura e libertação, improviso extremo em que Fefel, Dinho, Benke e Ynaiã passeiam por diferentes recônditos de sua psicodelia brasileira como se estivessem compondo músicas na hora – e enfatizando, como Dinho sempre diz, o poder de cura da música. Os goianos abriram uma exceção para aquela sessão específica e até tocaram músicas num formato mais tradicional, mas sempre abrindo pontes instrumentais em que poderiam voar para onde quisessem. Sempre lavam a alma.
Mas a noite era delas. O reencontro de Paula Rebelatto e Carla Boregas no palco do Cine Joia não foi a primeira atração a ser anunciada do festival à toa – era o primeiro show das Rakta em cinco anos (!!!) e, acompanhadas pela bateria absurda de Maurício Takara, integrante da formação mais recente do grupo, as duas mostraram que não tinha pra ninguém. O surto elétrico de noise e pós-punk das duas acabou por sintetizar a expectativa da noite, reunir o maior público e eletrizar corações e mentes com seu ritual mágico único, que faz uma falta danada pra noite de São Paulo e pra cena underground brasileira. O final perfeito para uma noite histórica para o underground paulistano. Quem foi sabe.
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Boogarins e DJ Nuts são as duas últimas atrações anunciadas para o festival Cecília Viva 2025, que acontecerá no dia 23 deste mês no Cine Joia. Os dois juntam-se a um elenco que já tinha nomes pesados como Kiko Dinucci visitando seu Cortes Curtos, Crizin da ZO, Test e um show único do Rakta e transformam esta noite de domingo num dos grandes eventos da música independente brasileira no começo deste ano. O festival tem a intenção de arrecadar fundos para a reabertura da Associação Cultural Cecília, um dos principais pontos de encontro da música ao vivo independente da cidade, que depois de um roubo no ano passado está tentando se reerguer. E o detalhe é que o quarteto goiano não fará show de seu recém-lançado Bacuri e sim uma de suas sensacionais sessões de libertação e cura, quando deixam o espírito do improviso psicodélico tomar conta. Os ingressos já estão à venda através deste link.
E o festival Cecília Viva, que acontecerá no próximo dia 23 no Cine Joia, acaba de confirmar sua quarta atração. Depois de anunciar um show único do trio Rakta e apresentações da dupla Test e de Kiko Dincucci revisitando seus Cortes Curtos, o evento confirma sua primeira participação de fora de São Paulo ao anunciar em primeira mão para o Trabalho Sujo a vinda do trio carioca Crizin da Z.O. Um dos nomes brasileiros mais festejados de 2024, o grupo esteve presente nas melhores listas de fim de ano graças ao seu impressionante Acelero, colidindo noise, música pesada e funk carioca. O festival acontece como uma forma de arrecadar fundos para inaugurar uma nova fase da Associação Cultural Cecília, reduto da música experimental e underground paulistana, que teve de fechar suas portas depois que a casa foi roubada e teve todos seus equipamentos levados. E outros nomes virão em breve para engrossar a escalação, que ainda está em aberto – os ingressos já estão à venda neste link.