Delta Estácio Blues segue intenso

Fui até fazer as contas pra checar, mas apesar deste ter sido o primeiro show do Delta Estácio Blues de Juçara Marçal que vi este ano, foi o décimo que vi desde que ela o lançou pela primeira vez ao vivo há mais de dois anos e meio, no teatro do Sesc Pinheiros. Acompanhei a gestação desse trabalho de perto, mesmo antes de transformar-se em show, quando Juçara e seu produtor e compadre Kiko Dinucci ergueram um contraponto transversal ao seu primeiro disco solo Encarnado ao reunir pedaços de sons como bases instrumentais para canções encomendadas para outros camaradas e cúmplices musicais. Uma vez lançado, o desafio foi transformar aquele conjunto de fonogramas numa apresentação ao vivo, atingido com louvor quando os dois reuniram-se ao velho chapa Marcelo Cabral e a então desconhecida Alana Ananias, erguendo o disco num espetáculo ao vivo. O resultado anda no fio da navalha entre o noise elétrico e o eletrônico industrial, transformando a coleção de sambas tortos compostos ao lado de Tulipa Ruiz, Maria Beraldo, Negro Leo, Jadsa, Rodrigo Ogi e Douglas Germano num atordoo físico e emocional que até hoje considero o melhor show do Brasil. E depois de acompanhar a evolução deste organismo vivo nestes últimos anos, cada vez mais desenfreado e arrebatador, foi uma felicidade reencontrá-lo em mais uma edição desse transe elétrico, desta vez no Sesc Consolação e intensificado pelas luzes de Olívia Munhoz, que começou a trabalhar com Juçara no ano passado, quando ela comemorou os dez anos do Encarnado, e entrou para o time DEB encontrando uma intensidade irmã das luzes que fez no show do ano passado. Sempre foda.

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Delicadeza e sofisticação

Mais uma vez Juçara Marçal mostrou toda sua majestade ao visitar o clássico Elizeth Sobe o Morro em um espetáculo idealizado e dirigido pelo jornalista e pesquisador Lucas Nobile, que pinçou o disco em que Elizeth Cardoso investiga uma cena sambista carioca que incluía nomes consagrados como Nelson Cavaquinho (registrado pela primeira vez em disco neste álbum), Zé Kéti, Cartola e Nelson Sargento, além dos então novatos Paulinho da Viola e Elton Medeiros. Para recriar o álbum, Lucas reuniu um time precioso para acompanhar Juçara por duas noites no Sesc 14 Bis, que recebeu Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Marcelo Cabral, Fumaça e Xeina Barros com lotação esgotada. Além do repertório do disco, o grupo ainda pinçou canções que se encaixavam no espírito do disco, sejam músicas da época, como “Vazio” de Elton Medeiros, “Século do Progresso” de Noel Rosa, “Mas Quem Disse Que Eu Te Esqueço” de Dona Yvonne Lara e “Mascarada” de Zé Keti, e contemporâneas, como “Pavio de Felicidade” de Rodrigo Campos, “João Carranca” Kiko Dinucci e “Gurufim”, parceria dos dois, que fechou o show deste domingo. Um espetáculo maravilhoso, delicado e sofisticado, banhado pelas luzes hipnotizantes de Olívia Munhoz, que rendeu momentos mágicos, como as versões para “Rosa de Ouro” (de Paulinho e Elton), “Sim” (de Cartola, num dueto entre Juçara e Kiko) e “Minhas Madrugadas” (de Paulinho e Candeia) em que Juçara avisou que tentaria “encarnar” a Divina, o que fez com maestria, num dos shows mais bonitos do ano até aqui.

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A vingança de Kim Gordon

Além de seu evento principal, o Popload desse ano desdobrou-se em dois eventos paralelos realizados no Cine Joia – o primeiro deles com a banda nova-iorquina Lemon Twigs, um dia antes do festival e o outro no dia seguinte, com a mestra Kim Gordon fazendo uma apresentação solo. E diferente do primeiro deles, o segundo contou com uma abertura à altura da atração principal. E não apenas porque a norte-americana Moor Mother – artista,ativista e poeta – transita em uma seara musical tão perigosa e transgressora quanto a atual fase da fundadora do Sonic Youth, mas por ter convidado Juçara Marçal e Kiko Dinucci para a acompanharem na primeira parte de sua apresentação, que pode ser considerada um dos grandes momentos do festival como um todo. Juntos, os três desbravaram um caminho tortuoso entre o canto e a fala, com Moor Mother e Juçara entrelaçando vozes em uma ação contínua entre som e sentido, enquanto Kiko seguia tornando seu violão percussivo, batucando riffs, linhas de baixo e ruídos para as duas soltarem-se livres. Depois que a dupla saiu, Moor Mother seguiu sozinha no palco igualmente virulenta, cuspindo versos em dois microfones, um deles sempre com algum efeito, enquanto disparava bases eletrônicas e pesadas a partir de seu computador. Mas depois do ataque inicial do trio, seu solo perdeu um pouco do atordôo, tornado livre justamente por não ter nenhum elemento sonoro pré-gravado. E era só o começo da noite…

Depois Kim Gordon subiu ao palco do Cine Joia para encerrar as atividades do Popload Festival deste ano como principal artista do segundo show paralelo do evento – e quanta diferença um lugar pode fazer a um show. Porque ela apresentou um show bem parecido – tanto em repertório quanto em duração – com o que fez na versão completa do festival, no dia anterior. Mas colocá-la em uma casa de shows sem luz natural e com o foco totalmente preso nela fez toda a diferença – principalmente porque no sábado ela tocou ao ar livre, sob a luz do sol e com o som e atenção do público dispersos. O domingo foi a vingança de Kim Gordon, que ainda contou com um ótimo som no Cine Joia, que potencializou ainda mais a virulência de sua apresentação. Vestindo uma camisa social e gravata preta no lugar do moletom do dia anterior, ela veio mais a rigor para um show que, como o outro, priorizava seu segundo álbum, The Collective, à frente de uma banda de rock novíssima que não ficava presa às amarras do gênero – muito pelo contrário, buscava explorar com vigor e ruído os espaços abertos por Kim em sua investigação musical em torno da música urbana deste século. O canto falado e quase ausência de contato com o público reforçavam a frieza da sonoridade daquele quarteto, solapando bordoadas sonoras que passavam pela banda anterior de Kim como referência (ela inclusive pegou na guitarra em várias canções), mas não reverência, fazendo todos saírem felizes do encontro ao perceber que ela continua um motor da transgressão, mas não quer olhar para trás. Muito foda.

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Abaixo algumas fotos que a Bárbara Monfrinato fez do show:  

Duas vezes histórico

Tive que ir de novo no formidável encontro dos violões de Kiko Dinucci e Jards Macalé, que, nessa sexta-feira, fizeram um show quase idêntico ao que fizeram no dia anterior, numa apresentação menos informal – embora tenha rendido boas prosas entre as músicas, como na quinta – e um pouco menor que a anterior, talvez porque Jards tenha trocado “Mal Secreto” – que é mais extensa devido a uma citação do clássico da bossa nova “Corcovado” – por uma versão acachapante – e solitária – para “Movimento dos Barcos”, esta posta no repertório a pedido de Kiko. Escrevi sobre o show, que deverá repetir-se em algum momento em breve, em mais uma colaboração que faço para o Toca do UOL.  

Violões univitelinos

“E aí, doutor Kiko?”, perguntou Jards Macalé a Kiko Dinucci, que respondeu com outra pergunta (“E agora?”) prontamente respondida por Macau: “Agora foda-se”. Sabíamos que seria memorável, mas acho que nem Kiko nem Jards tinham ideia da química que baixou sobre os dois na primeira das duas apresentações que marcaram para esta semana no Sesc Pompeia. Mesmo com diferenças de geração, personalidade, origem e criação, os dois são gêmeos univitelinos no violão e dividem o mesmo humor – autodepreciativo e de um pugilismo quase fraterno – e apreço pelo baixo calão da vida, o que tornou a apresentação um acontecimento histórico. Passeando por diferentes fases do repertório de Jards, clássicos do samba e algumas canções de Kiko, os dois mostraram a força e a delicadeza de seus violões. Jards é da geração impactada diretamente por João Gilberto e seu instrumento fica entre o ritmo sincopado do mestre baiano e o suingue carioca de seu contemporâneo Jorge Ben, enquanto Kiko, guitarrista de nascença, convertido ao outro instrumento pelo samba, é diretamente influenciado pelo violão de Jards, além de trazer suas influências elétricas – do punk ao noise – para seu pinho. Mas o ponto em comum dos dois é a história do samba, visitada através de clássicos (como “Se Você Jurar” de Ismael Silva embutida em “Let’s Play That”, “Luz Negra” de Nelson Cavaquinho, “Ronda” de Paulo Vanzolini e “Favela”), e a devoção de Kiko por Jards, mencionada pelo próprio, que o perseguia por shows vazios em São Paulo quando ainda era adolescente (dele e de Itamar Assumpção, que não conheceu, como frisou). Isso deixou-o à vontade para passear com Jards em seus sambas imortais como “Pano pra Manga”, “Farinha do Desprezo”, “Boneca Semiótica”, “Depressão Periférica” e “Soluços” (esta no bis), além de duas que Jards tocou maravilhosamente sozinho: “Anjo Exterminado” e “Mal Secreto”. Kiko por sua vez fez duas de seu Rastilho sem Jards (“Febre do Rato” e “Gaba”) e lembrou que há cinco anos ele lançava seu clássico disco naquele mesmo teatro do Pompeia. Os dois ainda tocaram músicas que compuseram juntos, como “Vampiro de Copacabana” e “Coração Bifurcado”, mas tiveram um de seus melhores momentos quando emendaram “Antonico” – eternizada por Gal em seu disco ao vivo Fatal, que Jards visitou diversas vezes em diferentes momentos de sua carreira (tanto só quanto com o próprio Ismael, com Marçal e com Dalva Torres) e que Kiko vem tocando no momento acústico do show mais recente de Juçara Marçal – com uma que Jards nunca havia tocado ao vivo, “No Meio do Mato”, de seu disco Contrastes, de 1977. Um show que parece, ao mesmo tempo, um reencontro de velhos irmãos e o início de uma longa amizade musical. Sorte a nossa.

#jardsmacale #kikodinucci #sescpompeia #trabalhosujo2025shows 094

Macalé & Dinucci

Esse encontro do Jards com o Kiko só com seus respectivos violões no Sesc Pompeia promete ser histórico, hein? Se liga que os ingressos já estão à venda

Arnaldo reconhecendo território

Arnaldo Antunes apresentou seu Novo Mundo em São Paulo neste fim de semana, quando esteve na choperia do Sesc Pompeia acompanhado de quase a mesma bandaça que o ajudou a erigir seu novo disco – além de Kiko Dinucci na guitarra, Vitor Araújo nos teclados e synths e Betão Aguiar no baixo, o novo grupo tinha Curumin na bateria (em vez do produtor do álbum, Pupillo) e Chico Salem ao violão e guitarras. Mas talvez por ter visto o primeiro dos três shows do fim de semana, na sexta-feira, tenha pego um momento em que eles ainda estavam tateando o novo show, o que fez a noite aquecer do meio pro fim. Com o foco no repertório do novo álbum (mas sem participações especiais – podiam ter chamado Ana Frango Elétrico ou Vandall para participar de uma das músicas), Arnaldo também passeou por outros momentos de sua carreira, visitando tanto Titãs (“O Pulso” e “Comida”, que apareceu no bis) quanto Tribalistas (quando engatou “Já Sei Namorar” logo no começo e “Passe em Casa” antes de terminar a primeira parte) quanto hits de sua carreira solo, mas o show engrenou bonito quando pinçou uma nova (“Tire Seu Passado da Frente”) e emendou com uma versão para o reggaeinho “Cultura”, que, ao deixar na mão dessa banda, virou uma dubzeira cabulosa e o primeiro grande momento desse grupo cinco estrelas soando como uma unidade em si, em vez de mera cama sonora para as canções de Arnaldo. Autor e banda ainda estão se reconhecendo no palco e é inevitável que aos poucos todos soarão como uma só força, mesmo com os holofotes voltados para o poeta.

#arnaldoantunes #sesscpompeia #trabalhosujo2025shows 069

Os 20 discos mais importantes desde 2020

Meu camarada Carlos Albuquerque, o bom e velho Calbuque, está na equipe da recém-lançada edição brasileira da clássica revista norte-americana Esquire, que chega impressa ao Brasil em edições especiais. E no primeiro número, ele organizou uma enquete com um júri da pesada incluindo jornalistas, executivos da indústria e artistas (este que vos escreve incluso) para descobrir quais são os 20 discos mais importantes desde 2020 até hoje e o resultado (que pode ser visto abaixo) está nas bancas com um texto de apresentação do próprio Calbuque.

Veja abaixo:  

Um documentário sobre o festival Cecília Viva

Já está no ar o registro em vídeo do festival Cecília Viva, que aconteceu no Cine Joia em fevereiro deste ano, reunindo shows de artistas como Boogarins, Crizin da Z.O., Kiko Dinucci, Test, DJ Nuts e a primeira apresentação ao vivo das Rakta desde a pandemia para arrecadar grana para ressuscitar a Associação Cecília, clássico ninho de projetos experimentais musicais em São Paulo que sucumbiu à violência paulistana no começo do ano passado. O filme, feito pela dupla Azideia Filmes (formada por Carlos Motta e Priscilla Fernandes), reúne os melhores momentos dessa histórica noite e capta bem o espírito de agradecimento espalhado entre público e artistas (além de várias aparições minhas no canto, sempre filmando tudo). E não é o último evento: a Associação promete novos eventos de diferentes portes ainda esse ano, o próximo deles acontecendo no dia 15 de maio no Porta, com atrações que serão reveladas em breve.

Assista abaixo:  

Uma noite histórica para o underground paulistano

Domingaço no Cine Joia, quando a Associação Cecília reuniu a nata do underground brasileiro atual para um evento histórico. O festival Cecilia Viva foi criado para arrecadar fundos para o renascimento da casa que fechou suas portas no ano passado por motivos de força maior e era um dos principais focos de resistência e criação da cena alternativa de São Paulo. E foi bonito ver o Cine Joia ir enchendo lentamente até praticamente lotar sua parte inferior para ouvir artistas que abraçam o risco e o experimento como matéria-prima de suas apresentações. O festival começou ainda de dia, com o show dos cariocas do Crizin da Z.O., que infelizmente não consegui chegar a tempo, mas consegui pegar o Test – que nunca tem erro. A dinâmica entre a guitarra e o vocal de João Kombi e a bateria de Barata é um casamento único que deixa o público com os nervos à flor da pele, de tanta tensão. Como a maioria das apresentações da noite, o Test fez um show curto e direto, sem espaço para descanso, deixando claro que esse clima – essencialmente paulistano – era a tônica do evento.

Depois do Test foi a vez de Kiko Dinucci subir ao palco do Cine Joia para defender seu primeiro disco solo, Cortes Curtos, sozinho na guitarra. Houve quem se frustrasse ao perceber que o compositor de Guarulhos tocaria seu disco de 2017 sem banda, mas… Sinceramente? Nem precisava. Só o reencontro de Kiko com seu instrumento-base já seria motivo para comemoração (quanto tempo que ele não toca guitarra num show? Nem lembro mais…), mas o sambista-punk foi além e segurou boa parte das músicas de seu disco no clima tenso que instaurou-se no palco durante o festival: emendando uma música atrás da outra, sem conversa nem tempo pra respirar. E como é bom ver o Kiko na guitarra, principalmente quando ele liga o modo noise, invocando o espírito Glenn Branca para o contexto da vanguarda de São Paulo, misturando suas referências-chave (Lira Paulistana, punk rock e samba paulistano). Volta pro noise, Kiko!

No meio da noite, a referência rock ficou em segundo plano quando o DJ Nuts apresentou um set autoral, misturando bases de diferentes pontos da sua vasta coleção de música brasileira com vocais sampleados de rappers brasileiros, criando um clima pesado e tenso com o daquela noite de domingo. E ao trajar uma camiseta do clássico disco primeiro disco solo do ultramagnetic MC Kool Keith como Dr. Octagon (projeto criado ao lado do produtor Dan the Automator), Nuts deixou clara as intenções daquele set, que era menos para dançar e mais para entrar em nossas mentes enquanto mexia no inconsciente com samples levemente reconhecíveis e timbres vocais que todos conhecemos, numa apresentação que mostrou que, mesmo a Associação Cecília tenha nascido num contexto punk, sempre estava aberta a outras formas de experimentação musical.

Os Boogarins vieram quase no final do festival, puxando mais uma de suas sessões de cura e libertação, improviso extremo em que Fefel, Dinho, Benke e Ynaiã passeiam por diferentes recônditos de sua psicodelia brasileira como se estivessem compondo músicas na hora – e enfatizando, como Dinho sempre diz, o poder de cura da música. Os goianos abriram uma exceção para aquela sessão específica e até tocaram músicas num formato mais tradicional, mas sempre abrindo pontes instrumentais em que poderiam voar para onde quisessem. Sempre lavam a alma.

Mas a noite era delas. O reencontro de Paula Rebelatto e Carla Boregas no palco do Cine Joia não foi a primeira atração a ser anunciada do festival à toa – era o primeiro show das Rakta em cinco anos (!!!) e, acompanhadas pela bateria absurda de Maurício Takara, integrante da formação mais recente do grupo, as duas mostraram que não tinha pra ninguém. O surto elétrico de noise e pós-punk das duas acabou por sintetizar a expectativa da noite, reunir o maior público e eletrizar corações e mentes com seu ritual mágico único, que faz uma falta danada pra noite de São Paulo e pra cena underground brasileira. O final perfeito para uma noite histórica para o underground paulistano. Quem foi sabe.

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