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Prince vive!

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Um festival, uma coletânea e um documentário celebram a biografia de Prince, encerrada de forma prematura este ano – escrevi sobre as comemoraçoes em meu blog no UOL.

Era inevitável que a morte prematura de Prince em abril deste ano desse início a uma série de homenagens e reverências à obra do gênio da soul music moderna e o final de 2016 já trouxe três destas novidades. A primeira delas é a coletânea Prince 4Ever, lançada no fim de novembro e que tornou-se o 40° disco do artista a estar entre os mais vendidos.

Lançada como um CD duplo, 4Ever reúne a nata dos hits de Princee nquanto ele ainda era um artista da Warner e vão de sua fase inicial na virada dos anos 70 para os 80 (“I Wanna Be Your Lover”, “Soft and Wet”, “Why You Wanna Treat Me So Bad?”, “Uptown”, “When You Were Mine”, “Controversy”, “Let’s Work”), até seu auge durante os anos 80 e 90 (“1999”, “Little Red Corvette”, “When Doves Cry”, “Let’s Go Crazy”, “Raspberry Beret”, “Kiss”, “Sign o’ the Times”, “Alphabet St.”, “Batdance”, “Cream”, “Girls & Boys”, “If I Was Your Girlfriend”, “U Got the Look”, “I Could Never Take the Place of Your Man”, “Diamonds and Pearls”, “Gett Off”, “Sexy MF”, “Nothing Compares 2 U”, entre outras). Mas a grande novidade é a faixa inédita “Moonbeam Levels”, gravada em 1982, que só agora vê a luz do dia. É o comecinho da abertura do baú de Prince, que é enorme.

Outra homenagem já havia acontecido em outubro, quando a mansão do artista, o lendário Pasley Park, foi convertido em um museu. A Graceland de Prince é uma mansão avaliada em 10 milhões de dólares e conta com vários estúdios, salas de ensaio, uma enorme casa de shows, além do escritório particular de Prince, com suas três camas cercadas por espelhos. Poucos conheceram o lugar quando Prince era vivo devido à sua personalidade reclusa e foi lá que ele gravou alguns de seus grandes discos, como Sign o’ the Times, Parade e Diamonds and Pearls. O Pasley Park fica na cidade de Chanhassen, no estado de Minnesota, nos EUA, e as visitas (que custam US$ 38,50) já podem ser feitas desde outubro.

A novidade é que o lugar anunciou um grande evento para o aniversário da morte de Prince. Celebration 2017 acontecerá no Pasley Park entre os dias 20 e 23 de abril do ano que vem e contará com shows das diferentes bandas com quem Prince tocou durante sua carreira, como a Revolution, Morris Day & The Time, a New Power Generation, além de Liv Warfield e Shelby, que tocarão com a 3RDEYEGIRL, banda que o acompanhou em suas últimas apresentações. Os ingressos para os quatro dias custam entre 500 e mil dólares (mais informações no site do festival) e não serão permitidas fotos ou filmagens durante o evento.

E o documentário Prince: R U Listening?, acaba de ser anunciado para o ano que vem. Segundo o site Screen Daily, o diretor Michael Kirk (dos documentários Find Your Groove e Crescendo) contará a história da ascensão de Prince no início dos anos 80 a partir de entrevistas com músicos que o acompanharam na época (como Dez Dickerson, seu primeiro guitarrista, Andre Cymone, seu amigo pessoal e primeiro baixista e a baterista Sheila E), bem como seus contemporâneos famosos, tais como Bono, Mick Jagger, Lenny Kravitz e Billy Idol. A previsão de lançamento do documentário é para o segundo bimestre do ano que vem, para coincidir com o aniversário de morte do artista.

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Escrevi lá no meu blog no UOL como tudo que assistimos de Westworld até aqui pode ter sido apenas um prefácio para a história de verdade.

Quantas perguntas Westworld precisa responder em seu décimo episódio, que vai ao ar na virada deste domingo para segunda-feira, para encerrar a primeira temporada da série? O programa, inspirado no filme de mesmo nome dirigido por Michael Crichton nos anos 70 e produzido por J.J. Abrams e Johnathan Nolan, já pode ser considerado um dos grandes acontecimentos televisivos do ano e o saldo de dúvidas que poderá ser quitado neste season finale pode determinar se o nível de genialidade da proposta e da execução da série até agora será coroado com uma conclusão à altura das expectativas suscitadas. E, ao que tudo indica, será.

Por isso, se você não acompanha Westworld, assistiu alguns episódios sem dar a devida atenção ou está entretido em algum lugar do meio da primeira temporada, pare de ler este texto agora. A partir daqui vem uma sequência de spoilers e especulações sobre o que falta acontecer no seriado que pode estragar a surpresa de quem ainda está tateando seu rumo neste futuro de robôs idênticos a seres humanos. Se este for o seu caso, sugiro que leia o texto que escrevi no começo da semana exaltando a importância da série sem entregar o ouro. E para evitar algum acidente, jogo uns gifs animados na sequência para não correr o risco de estragar a surpresa de ninguém.

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Para começar, quais perguntas ainda precisam ser respondidas? Ao contrário da série que deu fama a um de seus produtores (Lost, de JJ Abrams), Westworld já respondeu a grande maioria dos questionamentos que levantou, alguns diretamente, outros insinuados de tal forma que só faltam serem mencionados literalmente para confirmarmos a certeza. Nesta última categoria, uma dessas questões – que ajuda a entender a estrutura da série – ficou evidente aos seus espectadores: estamos assistindo a cenas de uma mesma história que acontecem em épocas diferentes, e a edição – ao lado do fato dos “hosts” (os androides quase perfeitos da série) não envelhecerem – é recortada de forma a nos enganar que estamos assistindo a fatos que acontecem numa mesma época.

A linha do tempo de Westworld até agora nos apresenta a três diferentes etapas, embaralhadas propositadamente para nos confundir: uma época que aconteceu mais de trinta anos atrás, quando Ford e Arnold criaram aquele universo; outra que acontece trinta anos atrás, quando Dolores mata Arnold pouco antes da abertura de Westworld ao público e outra que acontece no presente, quando alguns robôs começam a sofrer a mesma pane que Dolores sofreu trinta anos antes, provocando o desequilíbrio daquele faroeste artificial.

Ford e Arnold são os criadores daquele universo. Desenvolveram a robótica e a inteligência artificial a um ponto tão complexo que seus robôs passaram no teste de Turing, aquele criado por Alan Turing no meio do século passado para determinar seu um interlocutor era um ser cibernético ou natural. A partir desta descoberta criaram Westworld, um ambiente falso, inspirado no velho oeste norte-americano, que seria habitado por aqueles robôs.

O problema era que cada um deles tinha uma visão sobre como aquele universo deveria funcionar. Arnold, encantado com sua obra, queria que ela evoluísse ainda mais, atingindo um ponto em que descobrisse a natureza de sua existência e ganhasse consciência de fato. Ford considerava tal evolução perigosa e preferia que os robôs funcionassem como meros brinquedos para os seres humanos, transformando Westworld em um parque de diversões para adultos.

No período que antecede a morte de Arnold, Westworld era um universo sendo ensaiado, com robôs caubóis lentamente começando a aprender como comportar-se naquele novo cenário. E Dolores – o primeiro robô – era a criação favorita de Arnold, que ele ensina a percorrer um caminho para que ela consiga atingir a própria consciência. Este caminho – “o labirinto” – é percorrido duas vezes pela personagem em épocas distintas, mas como os robôs não envelhecem, a edição do seriado faz que as mudanças entre tempos diferentes pareçam acontecer simultaneamente.

Há outro detalhe, explicado em um dos episódios mais recentes, sobre a natureza da memória da inteligência artificial. Enquanto nossas lembranças, humanas, desgastam-se com o tempo e tornam-se quase opacas quando comparadas com a realidade que habitamos, as dos robôs – por sua natureza sintética – podem ser acessadas de forma quase instantânea e intacta, fazendo que uma lembrança, mais do que algo nostálgico, possa ser praticamente revivida. É isso que tem acontecido com Dolores enquanto ela refaz, sozinha no presente, o mesmo caminho que percorreu com William há trinta anos. E também com Maeve quando ela se lembra de sua vida anterior, em que tinha uma filha.

Arnold, portanto, conseguiu fazer que Dolores percorresse este caminho por conta própria, rumo à própria consciência. A natureza de Bernard, nos revelada nos episódios mais recentes não apenas como ele mesmo sendo um robô, mas também um robô-clone para onde Ford conseguiu transferir a consciência de Arnold depois de sua morte, explica que as cenas em que o assistimos interrogando Dolores com o vestido azul (diferente dos interrogatórios de robôs no presente, em que eles todos estão nus) aconteceram antes da inauguração de Westworld.

Dolores é o robô favorito de Arnold, que ele, em segredo, conduz rumo à consciência. O que provavelmente assistiremos neste último episódio é a confirmação de que Dolores é Wyatt, o grande vilão de uma das primeiras narrativas. No penúltimo episódio, vimos que Teddy maquiava a lembrança de um passado genocida como a memória da guerra. E que ele foi um dos principais agentes na matança que ocorreu pouco antes da abertura do parque ao público, quando Arnold foi morto por Dolores. É quase certo que a cena que vimos sendo descrita como Wyatt matando o general seja encenada, de fato, por Dolores e Arnold – o ponto crucial da tomada de consciência da robô.

O grande trunfo de Westworld, no entanto, não é a revelação destes mistérios – mas a execução desta revelação. O momento em que Bernard é revelado como sendo um robô não é propriamente um grande segredo, mas uma confirmação de uma suspeita, orquestrada de forma sutil e sublime (a estranheza que uma simples pergunta – “que porta?” – pode causar). O mesmo está para acontecer com a confirmação de que William é o Homem de Preto trinta anos mais tarde.
Há questões parentes destas espalhadas por todo último episódio, algumas delas meras desconfianças, outras, fortes indícios. A própria natureza de Westworld é dúbia e passamos a questionar a humanidade de todos os outros personagens. Ford é um robô? Theresa era um robô? Os dois funcionários cúmplices de Maeve são robôs? Todo Westworld é um enorme ecossistema de robôs, tanto hosts quanto guests peças num enorme xadrez cibernético?

E qual é a grande nova narrativa de Ford? A saída de Maeve? Será que a segunda temporada de Westworld vai para além do universo que já conhecemos? E qual é o papel da Delos em toda essa história?

Essa é a minha aposta. Ao chegarmos aos limites da semelhança e estranheza entre humanos e máquinas, o próximo passo a ser dado é contemplá-la no mundo real. O velho dilema entre homens e robôs que é clássico na ficção científica – de Eu, Robô a Matrix – é mais uma vez atualizado em uma série cujo tema é a construção de narrativas que nos confunde ao mesmo tempo que nos encanta. É como se todas as perguntas sobre a natureza da ilha de Lost fossem respondidas ainda na primeira temporada. Estamos prestes a ver a descoberta de uma nova escotilha de Desmond para descobrir que a Delos é uma Iniciativa Dharma muito mais refinada (e, aparentemente, mais gananciosa) para entender o papel de Westworld junto ao resto do planeta (se é que Westworld fica nesta planeta…).

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Escrevi lá no meu blog no UOL sobre o lançamento do compacto com versões alternativas para “The Boy with the Thorn in His Side” e “Rubber Ring” que pode começar época de relançamentos do clássico grupo indie inglês.

Outro dia o guitarrista Johnny Marr comentou que o grupo que lhe deu fama, os Smiths, quase voltaram à ativa na década passada, quando o vocalista e líder do grupo, Morrissey, empolgou-se em uma conversa de bar sobre os bons tempos. O relato do encontro é parte da recém-lançada biografia de Marr e o interesse por este quase encontro, mesmo tendo sido revelado quase uma década depois, mostra como o grupo inglês ainda é influente e popular. Deve ter sido uma das motivações para a gravadora Warner anunciar o primeiro compacto do grupo em décadas, como antecipou o site True to You, conhecido por ter, entre suas fontes, o próprio Morrissey.

O single, que ainda não tem data prevista para ser lançado, reúne versões inéditas para faixas conhecidas pelos fãs do grupo: uma mixagem demo para o hit “The Boy With The Thorn In His Side” com uma versão inédita da faixa “Rubber Ring”, uma das favoritas dos fãs.

A capa do single foi feita pelo próprio Morrissey e segue o padrão das clássicas capas do grupo, desta vez com um retrato do ator Albert Finney, de filmes como Assassinato no Expresso Oriente (1974), Os Duelistas (1977) e À Sombra do Vulcão (1984).

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Conversei com o Carlos Marcelo sobre a nova versão de sua biografia do líder do Legião Urbana, Renato Russo – O Filho da Revolução. O papo tá todo lá no meu blog no UOL.

“Acho que, além da insatisfação com a manutenção das desigualdades sociais, certamente ele reagiria ao avanço da cultura do ódio, da escalada de violência – virtual e real”, me explica o jornalista Carlos Marcelo, autor da biografia Renato Russo – O Filho da Revolução (Ed. Planeta), quando pergunto o que o vocalista do Legião Urbana, que morreu há vinte anos, acharia do clima belicoso que tomou conta do Brasil em 2016. “Renato sempre fazia questão de condenar de forma veemente o fascismo, e acredito que estamos vivendo tempos de comportamentos que se aproximam desse ideário pernicioso. Em síntese: ele não precisaria atualizar a letra de ‘Perfeição’, tudo que está lá continua valendo.”

Realmente, a letra da canção de 1993, carro-chefe do disco O Descobrimento do Brasil, conversa bastante com os ânimos acirrados e a frustração com o status quo deste ano:

“Vamos celebrar a estupidez humana
A estupidez de todas as nações
O meu país e sua corja de assassinos
Covardes, estupradores e ladrões
Vamos celebrar a estupidez do povo
Nossa polícia e televisão
Vamos celebrar nosso governo
E nosso Estado, que não é nação
Celebrar a juventude sem escola
As crianças mortas
Celebrar nossa desunião
Vamos celebrar Eros e Thanatos
Persephone e Hades
Vamos celebrar nossa tristeza
Vamos celebrar nossa vaidade.

Vamos comemorar como idiotas
A cada fevereiro e feriado
Todos os mortos nas estradas
Os mortos por falta de hospitais
Vamos celebrar nossa justiça
A ganância e a difamação
Vamos celebrar os preconceitos
O voto dos analfabetos
Comemorar a água podre
E todos os impostos
Queimadas, mentiras e sequestros
Nosso castelo de cartas marcadas
O trabalho escravo
Nosso pequeno universo
Toda hipocrisia e toda afetação
Todo roubo e toda a indiferença
Vamos celebrar epidemias:
É a festa da torcida campeã.

Vamos celebrar a fome
Não ter a quem ouvir
Não se ter a quem amar
Vamos alimentar o que é maldade
Vamos machucar um coração
Vamos celebrar nossa bandeira
Nosso passado de absurdos gloriosos
Tudo o que é gratuito e feio
Tudo que é normal
Vamos cantar juntos o Hino Nacional
(A lágrima é verdadeira)
Vamos celebrar nossa saudade
E comemorar a nossa solidão.

Vamos festejar a inveja
A intolerância e a incompreensão
Vamos festejar a violência
E esquecer a nossa gente
Que trabalhou honestamente a vida inteira
E agora não tem mais direito a nada
Vamos celebrar a aberração
De toda a nossa falta de bom senso
Nosso descaso por educação
Vamos celebrar o horror
De tudo isso – com festa, velório e caixão
Está tudo morto e enterrado agora
Já que também podemos celebrar
A estupidez de quem cantou esta canção”

A nova edição da biografia, lançada originalmente em 2009 e reeditada com mais informações este semestre, conversa de forma bizarra com o país deste ano, especificamente ao revelar que Renato era colega de classe do ex-ministro Geddel Vieira, pivô da saída do ministro da cultura do governo Temer, Marcelo Calero. O livro conta que Geddel queria entrar para o grupo de estudos de Renato Russo para conseguir uma nota melhor, mas o futuro vocalista do Legião vetou o futuro político, na época conhecido pelos colegas pelo apelido de “Suíno”, no mesmo instante, reforçando que “ele é in-su-por-tá-vel!” (leia a íntegra deste trecho no final do post).

Renato Russo em peça encenada com um grupo de teatro amador na Cultura Inglesa, ainda nos anos 70

Renato Russo em peça encenada com um grupo de teatro amador na Cultura Inglesa, ainda nos anos 70

Pelo que o biógrafo lembra, era o único futuro político com quem Renato conviveu quando ainda morava em Brasíia. “Outras personalidades da música brasileira passaram por Brasília e, mesmo sem ter convivido diretamente com Renato quando moraram lá, também passaram por um processo de transformação na capital: caso de Sergio Britto, dos Titãs e, especialmente, de Ney Matogrosso e Paulo Ricardo. No livro, eu narro a passagem dos três por Brasília. Sem contar, claro, Herbert Vianna, Bi Ribeiro, toda a Turma da Colina”, como era referido o grupo que deu origem à primeira geração de bandas de rock da cidade.

A nova edição do livro aprofunda-se, principalmente, nos últimos anos de vida de Renato Russo, que morreu em 1996. “Me impressionou o processo de criação de seus dois discos solo, ambos meticulosamente planejados por Renato, a dificuldade para finalização do disco A Tempestade, quando Renato já estava bem doente, e também algumas canções que passaram meio batidas quando foram lançadas, a exemplo de “Celeste” – parceria com Marisa Monte, gravada pela Legião em A Tempestade como “Soul Parsifal” – e “La Maison Dieu”, uma das faixas do disco Uma Outra Estação, de letra fortíssima – ‘Eu sou a pátria que lhe esqueceu/ O carrasco que lhe torturou…’ – , cantada em cima de uma base de blues em mais uma interpretação antológica do Renato. A entrevista com Marisa Monte, na qual ela fala que adora o disco póstumo O Trovador Solitário e relembra passagens de sua amizade com Renato, me impressionou. E o depoimento da mãe dele, que entrevistei novamente e me narrou como soube da morte do único filho, me emocionou. Tentei passar essa emoção no último capítulo da nova edição.” Além disso, há vasta iconografia sobre o artista, como algumas das imagens neste post.

Reprodução da censura do veto à canção "Heroína", que fez o Renato ser fichado na PFl

Reprodução da censura do veto à canção “Heroína”, que fez o Renato ser fichado na PFl

Carlos Marcelo concorda quando comento sobre a singularidade de Renato Russo na história de nossa cultura. “É uma figura ímpar na música pop brasileira – não consigo recordar de ninguém, com exceção de Roberto Carlos, que tenha permanecido no topo por tanto tempo. Mesmo os dois grandes roqueiros brasileiros – Raul Seixas e Rita Lee – e os grandes medalhões da MPB – Gil, Chico, Caetano, Milton – tiveram seus altos e baixos”, conta o jornalista. “Renato conseguiu algumas façanhas inigualáveis: emplacar uma canção – ‘Faroeste caboclo’ – de nove minutos no topo das paradas, fazer o Brasil redescobrir a música italiana depois do lançamento do disco Equilíbrio Distante, fazer de uma regravação do Menudo – ‘Hoje à Noite Não Tem Luar’ – mais um sucesso radiofônico, apresentar às novas gerações o 14 Bis com a música ‘Mais Uma Vez’… E isso aconteceu pela combinação única de lirismo e energia, performance e espontaneidade. Como ele cantava, ‘é sangue mesmo, não é mertiolate”‘.

Manuscrito de Renato com uma das primeiras referências ao nome Legião Urbana

Manuscrito de Renato com uma das primeiras referências ao nome Legião Urbana

Pergunto sobre o material do grupo que ainda não foi lançado oficialmente: entre músicas inéditas a íntegras de shows, ensaios e versões alternativas, é farto o material do grupo que circulava em fitas cassete desde os anos 80 até em sites de download atualmente. “Existem muitas gravações que circulam pela internet”, lembra Carlos Marcelo, Há, por exemplo, registros de jams durante ensaios no Rio para as turnês dos discos As Quatro Estações e V que são bem interessantes. Mas, mais do que os registros piratas, acho que seria interessante assistir a um documentário apenas com imagens de shows da Legião. Seria uma experiência muito forte.”

Renato e integrantes de outras bandas na Temporada de Rock na ABO, um show que foi um marco da geração dos anos 80

Renato e integrantes de outras bandas na Temporada de Rock na ABO, um show que foi um marco da geração dos anos 80

Renato Russo – O Filho da Revolução seria uma ótima base para este material, Carlos Marcelo inclusive foi consultor de roteiro do filme Somos Tão Jovens, sobre os anos de Renato Russo antes do surgimento da banda. “Acho que o meu livro não comporta uma versão audiovisual nos moldes de um longa-metragem – como disse o próprio Vladimir Carvalho, diretor do documentário Rock Brasília – A Era de Ouro, depois de ler a primeira edição: ‘Carlos, você não escreveu um livro, fez um documentário de seis horas de duração’. Mas ainda acho que falta um documentário exclusivamente sobre Renato e a Legião, com ênfase no resgate da visceralidade das performances ao vivo. Mostrar na tela a tensão do inesperado, pois nenhum show da Legião foi igual a outro. Quem viu um show da Legião passou por uma experiência única. E intensa, às vezes perturbadora. E as novas gerações de fãs, lamentavelmente, não tiveram essa chance.”

Abaixo, o trecho da biografia em que Renato Russo veta o futuro político Geddel Vieira de participar de um grupo de trabalho na escola:

“A turma do Marista tem que preparar apresentação relacionada à música. De imediato, Renato avisa:

— O tema do meu grupo vai ser a história do rock.

Rigoroso na hora de selecionar os colegas de grupo, ele convida Maria Inês Serra e mais dois ou três felizardos que se mostraram dispostos a executar a tarefa como ele planejaria. Tinha gostado de trabalhar com Inês em uma pesquisa sobre cantigas de roda — o esforço alheio representava fator decisivo para a escolha. Deixa claro (a ponto de despertar antipatia e criar fama de chato) que não carregaria ninguém nas costas. Apesar dos pedidos de colegas como Geddel Quadros Vieira Lima para entrar no seu grupo pela garantia de notas altas na avaliação final. Filho do político baiano Afrísio Vieira Lima, o gordinho Geddel era um dos palhaços da turma. Chegava no colégio dirigindo um Opala verde, o que despertava atenção das meninas e a inveja dos meninos — que davam o troco chamando-o de “Suíno”. Tinha sempre uma piada na ponta da língua; as matérias, nem sempre.

— Eu vou ser político!

O jeitão expansivo garantia popularidade entre os colegas, mas não unanimidade. “Ele é in-su-por-tá-vel!”, justifica Renato para Maria Inês, dividindo as sílabas de forma enfática, ao sentenciar a proibição da entrada de Geddel em seu grupo.

A preparação do trabalho consome semanas. A pesquisa, concentrada no acervo guardado por Renato em seu quarto, inclui o detalhamento de aspectos controversos da biografia de ídolos do rock. Ao estudar a trágica trajetória de Janis Joplin e Jimi Hendrix, Renato comenta com Inês:

— Como é que pode alguém se drogar para fazer música?

As tardes de pesquisa, porém, não resultam apenas em fonte de inquietação sobre os destinos erráticos das estrelas do rock. Na parte mais divertida da preparação do trabalho, Inês observa o amigo escolher um disco, colocá-lo na vitrola e iniciar o show particular. Renato canta junto, faz solos imaginários de guitarra, dedilha violão, imita os artistas que se revezam no toca-discos. Reproduz o falsete de Elton John. “And I think it’s gonna be a long, long time…”, dubla o refrão de “Rocket Man”, do cantor e pianista inglês. Também capricha no tom grave da voz para imitar Elvis Presley — sem êxito. A amiga achou que estava escutando Jerry Adriani.

Mesmo sem a parte da dublagem, estrategicamente esquecida na 303 Sul, Renato e Inês recebem nota máxima pelo trabalho. Mais: são convidados a bisar a apresentação, dessa vez no auditório do Marista, diante de alunos de outras turmas do segundo grau. Além da explanação verbal, proporcionam aos colegas uma experiência audiovisual. Coladas em cartolinas, fotografias de ídolos do rock (selecionadas do acervo particular do líder do grupo) são exibidas enquanto o auditório é sacudido por trechos de clássicos do gênero, cuidadosamente pinçados e gravados em fitas cassete. Para aumentar a dramaticidade, Renato faz questão de resumir em frases de efeito, pronunciadas em tom incisivo, os pontos-chave das ideias defendidas no trabalho. Terminada a apresentação, começa o debate. Uma das colegas critica o rock e defende a MPB como porta-voz dos anseios da juventude brasileira. Diante do auditório lotado, Renato rebate:

— O rock é um movimento musical que revolucionou a música popular porque é o único gênero feito por jovens e para os jovens. Por isso, se tornou sinônimo de rebeldia.

Aplausos dos colegas e dos professores. Graças à convicção e ao conhecimento de rock, Renato passa com louvor no primeiro teste de popularidade diante de uma audiência imprevisível. Nada mau para um aluno até então notado nos corredores apenas pelas espinhas e muletas. Com ajuda de Inês, Elvis, Janis e Hendrix, Renato não era apenas mais um entre as centenas de alunos do segundo grau do Marista. Tinha deixado de ser invisível.”

O jornalista Carlos Marcelo (foto: Maria Alice Messias/Divulgação)

O jornalista Carlos Marcelo (foto: Maria Alice Messias/Divulgação)

Uou, Westworld!

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Escrevi no meu blog no UOL sobre o porque do remake de Westworld, produção de JJ Abrams e Johnathan Nolan, já poder ser considerada a melhor série de 2016.

E a HBO conseguiu mais uma vez. Westworld vem superando todas as expectativas, episódio a episódio, e caminha para se tornar o grande evento da TV em 2016, fazendo a emissora recuperar-se do fiasco que foi a primeira temporada de Vinyl e a promissora mas fria The Night Of. Um enorme quebra-cabeças magistralmente montado em frente aos nossos olhos, intercalando a frieza de máquinas com o calor do velho oeste norte-americano, reinventando completamente uma premissa simples de um filme dos anos 70 para o século 21 e enfileirando monólogos magistrais, atuações impecáveis, cenas intensas, diálogos esclarecedores, teorias complexas e revelações sensacionais.

Para quem não está acompanhando, eis a breve premissa, sem spoilers: num futuro próximo existe um parque de diversões para adultos chamado Westword, em que você paga para viver como nos tempos mais selvagens do povo norte-americano, interagindo com robôs idênticos a seres humanos que ficam à disposição dos convidados. E esta disposição é degradante: os “anfitriões” (hosts, em inglês, como os androides são referidos na série) se tornam objetos para todo o tipo de humilhação que os convidados queiram praticar, e assim são tratados como meros objetos e quase sempre morrem mortes violentas – apenas para serem religados e voltar ao papel de escravo dos desejos alheios.

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Mas algo acontece: os robôs aos poucos começam a entender sua própria condição. Acumulando memórias de suas vidas passadas, alguns dos protagonistas da série vão lentamente entendendo o que vivem e, cada um à sua maneira, vai despertando sua consciência e aprendendo a lidar com aquela nova realidade. Alguns simplesmente entram em parafuso e dão tilt – logo no primeiro episódio da série há um destes -, mas outros conseguem ir além. E poucos humanos conseguem perceber isso.

Isso é apenas a premissa inicial, o tabuleiro armado em que seus produtores desdobram cenas ousadas, violentas e emblemáticas, criando uma mitologia específica enquanto mostram personagens rasos lentamente sendo aprofundados. A partir disso, há um enorme e complexo jogo narrativo que faz o espectador perder-se em histórias que parecem acontecer simultanemente, mas que ocorrem em épocas diferentes – um truque genial que parte do princípio de que os robôs não envelhecem.

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Sob esta premissa, há um duelo entre os criadores do parque, Arnold e Ford, que têm ideias distintas para aquele mundo robótico: enquanto o primeiro quer evoluir a inteligência artificial para a descoberta da consciência, o segundo considera isto perigoso e prefere apenas usar os seres sintéticos para “contar novas histórias”. Ford ganha a disputa e Westworld passa para as mãos de uma empresa chamada Delos, cujo interesse no parque vai muito além da gerência dos lucros gerados pelos visitantes e segue desconhecido. A série de dilemas éticos e morais abertos a partir desta disputa seria assunto para uma série apenas sobre isso, mas Westworld vai além.

Personagens como a cândida Dolores Abernathy vivida por Evan Rachel Wood, o assustador e admirável Robert Ford de Anthony Hopkins, o intrincado Bernard Lowe de Jeffrey Wright, a impressionante Maeve Millay da Thandie Newton e o Homem de Preto de Ed Harris humanizam e emocionam a história com atuações grandiosas e exigentes, Eval Rachel Wood e Thandie Newton especificamente brilham como poucas atuações na TV nesta década e até coadjuvantes como Hector Escanton do nosso Rodrigo Santoro, o William de Jimmi Simpson e a Clementine de Angela Sarafyan desequilibram bastante o seriado.

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Tudo isso sendo orquestrado em cenas que transcendem gêneros e criam imagens impactantes para a cultura pop. Westworld consegue elevar o western para um patamar quase surreal, misturando orgias, canibalismo, religião e genocídios, aprofunda questões éticas tocadas apenas de forma superficial pela ficção científica moderna, atualiza os robôs para a era da impressão 3D e aposta na inteligência do espectador, proporcionando momentos de puro deleite narrativo (o final do oitavo episódio, por exemplo, já é um dos grandes momentos do ano na TV).

Os detalhes também são de tirar o fôlego: cenografia, direção de arte e trilha sonora mantém aquele padrão da emissora em que ela acerta mesmo quando as séries são ruins. A trilha especificamente é um achado: versões para músicas de Amy Winehouse, Radiohead, Rolling Stones, Animals, entre outros, tocadas naqueles pianos típicos de saloon (automatizados, como se fossem os primeiros robôs).

E por cima de tudo há um labirinto. Uma mapa literal que pode ser percorrido geograficamente mas também um jogo lógico que amplia o teste de Turing para uma realidade em que a inteligência artificial evolui como um fractal. Um desafio posto no coração da série tanto para seus protagonistas quanto para seus espectadores, que vai recompensando a cada novo episódio.

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A primeira temporada da série termina no próximo domingo, quando seu décimo episódio vai ao ar (a HBO brasileira vem transmitindo os novos episódios exatamente à meia-noite entre o domingo e a segunda, com reprises na segunda às 21h) e tudo indica que teremos a conclusão de uma série de enigmas e mistérios abertos ao longo dos episódios anteriores – além de tantas outras perguntas que só serão respondidas na próxima temporada, já renovada para o ano que vem.

A esperteza da série vem do casamento de dois talentos: J.J. Abrams, o criador de Lost e Fringe, além de ter ressuscitado Jornada e Guerra nas Estrelas para o novo milênio, e Johnathan Nolan, responsável pelos roteiros dos filmes de seu irmão Christopher Nolan. O primeiro é mestre em instigar a curiosidade, provocar o espectador, abrir teorias e propor possibilidades. O segundo brinca com duplos sentidos, lineraridades temporais e sabe concluir bem as histórias. Os dois já haviam trabalhado juntos na ótima Person of Interest, uma série mais modesta em termos de produção e de narrativa, e agora podem ousar graças à liberdade dada pela HBO. Nolan chamou a esposa Lisa Joy (que já havia assinado as séries Pushing Dasies e Burn Notice) para ajudá-lo na criação daquele novo universo.

Até o fim da semana volto ao tema explicando ainda mais as teorias da série e mostrando como Westworld pode ser muito mais do que apenas a melhor série deste ano. Por enquanto recomendo que você que ainda não assistiu dê um jeito de ver os nove episódios antes do próximo domingo e você que está acompanhando comente a série abaixo. E já deixo de sobreaviso aos comentaristas incautos – por favor avisem sobre spoilers antes de fazer seus comentários sobre a série para não estragar a surpresa de quem não assistiu ainda.

Radiola NZ

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Conversei com Jorge Du Peixe no Maranhão e ele me adiantou que o próximo disco da Nação Zumbi será de versões – dei mais detalhes do projeto que hoje chama-se Radiola NZ – mas pode mudar de nome – lá no meu blog no UOL.

Principal atração do primeiro dia do festival BR 135, que começou nesta quinta-feira, dia 24, em São Luís, no Maranhão, a banda pernambucana Nação Zumbi está encerrando o ciclo de comemoração dos 20 anos do disco Afrociberdelia, segundo álbum da banda, lançado em 1996, para começar um novo projeto, ainda com título provisório de Radiola NZ. O novo álbum trará versões para músicas favoritas do grupo, tanto brasileiras quanto internacionais, e o repertório poderá ter faixas de Amy Winehouse, Last Shadow Puppets, Mutantes, Velvet Underground, Clash, Erasmo Carlos, David Bowie, Roxy Music, entre outros. “Ainda estamos definindo tudo, mas já começamos a rascunhar algumas versões, como ‘Ashes to Ashes’ de David Bowie e ‘Love is the Drug’ do Roxy Music”, me contou o vocalista do grupo, Jorge Du Peixe.

O gatilho para este novo disco, que deve começar a ser gravado neste fim de semana, em Fortaleza, foi o show que o grupo fez no Festival da Cultura Inglesa deste ano, quando foram convidados a fazer versões de músicas em inglês. O grupo tocou versões para “Tomorrow Never Knows”, dos Beatles, “A Message To You Rudy”, dos Specials, “Time of the Season” dos Zombies e “China Girl”, de Iggy Pop e David Bowie. A partir daí a banda começou a cogitar novas versões e o projeto ganhou título e forma, embora ainda esteja em seu estágio inicial.

Versões não são novidades para a Nação. Além de ter dois de seus maiores hits escritos por outros artistas (“Maracatu Atômico” de Jorge Mautner e “Quando a Maré Encher” da banda olindense Eddie), o grupo já dividiu um disco com os conterrâneos e contemporâneos Mundo Livre S/A, quando um tocava músicas do outro, além de manter o projeto paralelo Los Sebosos Postizos, em que tocam músicas do período clássico de Jorge Ben. O novo álbum deve ser lançado no ano que vem, mas a banda não tem pressa. “Temos nosso tempo e precisamos respeitá-lo”, conclui Jorge.

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Conversei com a Courtney Barnett antes de seu ótimo primeiro show no Brasil – o papo tá todo lá no meu blog no UOL.

“De repente, parece que tudo mudou”, me explica Courtney Barnett, que apresentou-se na semana passada em São Paulo, quando a pergunto sobre o pesado clima conservador que paira sobre 2016. “Acho que as pessoas jogam muito uma expectativa sobre o próprio futuro delas em outras pessoas e esquecem-se que elas mesmas têm de fazer algo”, conta a cantora e compositora australiana, autora de um dos melhores discos do ano passado, Sometimes I Sit and Think, and Sometimes I Just Sit.

O próprio título de seu disco de estreia (“às vezes eu sento e penso e às vezes eu só sento”) é uma crítica a esta expectativa sobre o papel político do artista. “Eu me sinto frustrada e desiludida com tudo que tem acontecido, mas eu sempre me sinto assim”, ela continua, “eu leio muito as pessoas comentando na internet coisas assim, que o artista tem de ser o farol dos tempos e eu tendo a concordar, mas acho que não pode ser só isso. Isso é uma forma de deixar as coisas nas mãos dos outros e fingir que aquilo não é problema seu.” Pergunto se isso tem relação com a desilusão atual com os políticos e a política e ela apenas ri, concordando com a cabeça e dando de ombros. “As coisas vão piorar, não adianta ficar só lamentando ou procurando culpados.”

29 anos recém-completos, gigantescos olhos claros (um mais esverdeado que o outro) e jeito de moleque, Courtney perde a candura ao subir no palco. O ar juvenil dá lugar a uma guitar hero que cresce no palco e suas crônicas malkmusianas sobre a vida não ser nem especial nem fútil viram pequenos manifestos elétricos, ditos sem rodeios. Acompanhada apenas de um baixista (Andrew “Bones” Sloane) e um baterista (Dave Mudie), ela canaliza a escola de Kurt Cobain, que ouviu tanto hardcore, noise, metal e pop para saber explorar os limites do instrumento. Mas como frontwoman, ela é do time de Chrissie Hynde, cuja segurança e firmeza se misturam com cinismo e ironia, provocando um apelo carismático oposto à aparente fragilidade que seu rosto infantil carrega. Veículo perfeito para suas canções, crônicas às vezes hilárias, às vezes pertubadoras, como “History Eraser”, “Avant Gardener”, “Depreston” e “Pedestrian at Best”.

O show em São Paulo foi um dos últimos da turnê do disco do ano passado, antes de uma pausa de fim de ano para começar a pensar no próximo disco, que ela quer gravar ainda no próximo semestre. “Tenho um monte de ideias, tanto de letras quanto de música, preciso parar para organizar tudo”, conta, explicando que deve voltar para sua casa em Melbourne para começar a compor o segundo álbum.

Entre os 3%

A atriz Bianca Comparato em 3%

A atriz Bianca Comparato em 3%

Conversei com o elenco e a produção da primeira série brasileira produzida pelo Netflix lá no meu blog no UOL.

“Tem um lado meu que acha uma pena, obviamente, tudo isso que está acontecendo no Brasil”, lamenta a atriz Bianca Comparato quando pergunto se ela acha que há algum paralelo entre 3%, a primeira série que o serviço de vídeos Netflix produz no Brasil, e o momento político brasieiro atual. “Mas tem um outro lado meu, que é mais otimista, que acha que é um processo de amadurecimento, que estamos podendo olhar para nós mesmos pela primeira vez, de verdade, sem ingenuidade. E esse embate faz parte. É uma pena o sofrimento que isso causa pra tanta gente. E a série fala muito disso, do sofrimento de quem não consegue. E quem disse quem é bom o suficiente? Quem definiu isso?”

A série, que estreia sua primeira temporada de uma vez só na próxima sexta-feira, dia 25, chega falando sério. O visual, a direção e as atuações instigam o espectador como qualquer outro seriado Netflix – e isso parece vir da fusão de experiências tanto da equipe quanto do elenco. A mistura veteranos como João Miguel, Zezé Motta e a própria Bianca Comparato com novatos desconhecidos (Michel Gomes, Vaneza Oliveira e Rodolfo Valente) foi dirigida pelo uruguaio César Charlone, ex-sócio de Fernando Meirelles e responsável pela fotografia de filmes como Cidade de Deus, O Jardineiro Fiel e Ensaio Sobre a Cegueira. Mas a premissa da série e sua narrativa foi desenvolvida e dirigida por seus criadores originais. “Sou um showrunner de uma ideia alheia”, brinca o diretor uruguaio, que envolveu-se com a produção do seriado anos depois que seu criador, Pedro Aguilera, o estreasse no YouTube (assista aos três primeiros episódios da versão original aqui). Charlone entrou mais como um coordenador e supervisor, ajudando Aguilera e os três diretores originais, Jotagá Crema, Daina Giannecchini e Dani Libardi, a encontrar o rumo que queriam para o seriado, cujos oito primeiros episódios chegam de uma só vez.

Falada em português, a série de ficção científica se passa em um futuro próximo em que o Brasil divide-se em duas castas: grande parte da população mora numa região referida como Continente e quando completam vinte anos de idade têm a oportunidade de passar para onde reside uma elite financeira num lugar conhecido como Mar Alto, que abriga os 3% da população que batiza o seriado. Acompanhamos, portanto, um grupo de jovens que passa justamente pelo processo de seleção, uma série de jogos, entrevistas e atividades que vão definir quem pode passar para o outro lado. É uma alegoria que funciona como uma crítica à ditadura econômica mundial – e um de seus principais critérios de seleção, a chamada “meritocracia”. “Este tema faz parte da nossa sociedade e a gente tem mais ferramentas pra falar sobre isso e pra entender isso agora. São boas pra série também”, explica Aguilera.

“Quando o Pedro (Aguilera, criador e roteirista de 3%) pensou nisso lá atrás, ele havia se inspirado no vestibular, embora ele não quisesse falar diretamente de vestibular”, continua Bianca. “A gente amadureceu muito essa ideia. Mantemos essa angústia juvenil, mas tem uma coisa mais política envolvida. Fala de uma sociedade onde, por mérito, você consegue as coisas e se você não for bom o suficiente acabou a vida pra você. Isso fala muito pra nossa sociedade, não só pra jovens. Se você for parar pra pensar, economicamente, não são nem 3% que detém a riqueza do Brasil – nem do mundo.”

“A ideia começou lá em 2009 e a inspiração vem de livros como Admirável Mundo Novo e 1984 – eu não conhecia Jogos Vorazes”, explica Pedro. Bianca já tinha assistido aos filmes: “Acho a Jennifer Lawrence ótima. Vi os filmes da série Divergente e fiquei muito feliz com a quantidade de ator bom fazendo esse tipo de filme.” Mas Charlone desconversa quando compara-se 3% com estes filmes recentes: “A gente não vai competir com um produto desses. A nossa riqueza é a brasilidade”, explica, sublinhando que quis refletir uma brasilidade diferente daquela que vendemos. “Gosto daquela coisa que, quando alguma coisa não funciona, vem alguém e dá uma porrada. Ou daquela sensação que sempre acontece em qualquer país do mundo quando você chega no aeroporto, mas quando chega no Brasil sempre tem alguém que fala ‘tinha que ser no Brasil…”‘, explica o diretor, às gargalhadas.

O diretor César Charlone

O diretor César Charlone

Essa brasilidade, marca visual das produções de Charlone, foi perseguida com um olho no futuro e outro no presente. “Gosto de dar muita ênfase em sotaques diferentes”, explica, enfatizando também que não quis entregar uma história de bandeja para o público. “O Brasil tem essa fissura dos produtores com a bilheteria, essa coisa com a comédia, que querer agradar o público”, continua o uruguaio, explicando que o tom pessimista da série o atraiu. “Isso abre um horizonte muito legal pra novas gerações contarem histórias”, continua.

Mas a frieza distópica da versão original ganhou pluralidade e cores no novo seriado. “O tom original era muito sério, frio, policialesco”, lembra Aguilera, ao comentar as mudanças sofridas na série durante estes anos, que ainda “tem elementos muito parecidos, mas outros muito diferentes. Mas a angústia dos jovens, que é a essência, ainda tá lá.” “É uma série essencialmente brasileira”, completa Bianca. “Tem uma sujeira, cores, elementos rústicos. É futuro e é Brasil.”

Estive no set de gravação de 3% e além dessa brasilidade era possível notar a clara naturalidade nas atuações, sem afetações no texto ou diálogos que pudessem deixá-la caricata, claro reflexo da forma como Charlone gosta de deixar os atores, filmando-os livremente, quase em tom documental. Ele anima-se com o formato das séries, que diz ser “o grande acontecimento audiovisual deste século.” “Eu sou assíduo frequentador da Santa Ifigênia e sempre vejo o pessoal vendendo DVDs piratas de filmes… Agora vendem séries”, conta, mencionando Sopranos e Mad Men como referências básicas inclusive para o cinema atual. Pedro também tem suas séries favoritas – House of Cards, The Wire, Breaking Bad -, que podem não se refletir na temática de 3% mas que estão presentes na forma como ele gostaria de segurar o espectador.

Bianca cita outro seriado do Netflix como referência. “Black Mirror é uma experiência forte pra gente no 3%”, continua a atriz. “É um futuro que é palpável, não é, sei lá… como o filme Prometheus… Black Mirror tem isso, tem uma coisa que tá mais pra frente, mas as primeiras cenas você nem entende em que época se passa…” Ela concorda quando menciono que a ficção científica tem esse papel de metáfora para entender a realidade atual. “Um dos motivos de eu topar fazer a série foi esse. A série é um alerta. Se a gente não parar, a gente vai chegar nisso. É uma catástrofe econômica. E não é só sobre o Brasil, é sobre um modelo econômico mundial, os poucos que têm, os muitos que não têm.”

bandwagonesque

Escrevi sobre o clássico power pop do Teenage Fanclub, que está completando um quarto de século lá no meu blog no UOL.

Já faz tempo que 1991 vem sendo celebrado como um ano mágico para a música pop, ao enfileirar discos que não apenas estabeleceram novas carreiras como mudaram o cenário musical da última década do século passado. Uma sequência de obras que tornam aquele ano tão emblemático quanto outros clássicos, como 1967, 1969, 1972 ou 1977. Eu mesmo já escrevi aqui sobre os 25 anos de BloodSugarSexMagik, Screamadelica, Nevermind e Loveless – sem contar outros discos cruciais como o Blue Lines do Massive Attack, o Adventures Beyond the Ultraworld do Orb, Out of Time do R.E.M., The Low End Theory do A Tribe Called Quest e a tríade de transição dos três maiores grupos do rock brasileiro dos anos 80 (V do Legião Urbana, Os Grãos do Paralamas do Sucesso e Tudo Ao Mesmo Tempo Agora dos Titãs), além dos sucessos comerciais do Metallica (o disco preto), Guns N’Roses (os dois volumes de Use Your Illusion) e Pearl Jam (Ten) e dos discos de estreia dos Smashing Pumpkins (Gish) e Blur (Leisure). O conjunto destes álbuns mostra um cenário pop fragmentado, multifacetado e completamente díspare comparado ao de anos anteriores, mas um disco lançado naquele mesmo ano lembrava que a base de tudo aquilo, a fundação daquele universo que agora expandia-se para o thrash, o indie, o grunge, a ambient house, o trip hop, o rock alternativo, era a canção. Este disco chama-se Bandwagonesque e é o terceiro disco da banda escocesa Teenage Fanclub, que há exatos 25 anos ganhava o mundo ao ser lançado pela gravadora norte-americana Geffen.

É muito comum acharmos que invenções que nos precederam sempre estiveram ali. Como para a minha geração parece estranho pensar em um mundo sem televisão e para uma geração mais nova parece estranho imaginar como seria o mundo sem internet, muitos sequer cogitam a possibilidade de um mundo sem canções. Pois aconteceu – e não faz muito tempo. Apesar da música ser uma das primeiras expressões culturais do ser humano – ainda na idade da pedra -, a canção – esta estrutura musical que compreende introdução, estrofe, refrão, estrofe, refrão, eventual solo instrumental, estrofe, refrão e conclusão – é uma invenção da virada do século dezenove para o vinte, como a fotografia, o disco, o cinema, o carro e o avião.

Sempre entoamos melodias, cantarolamos frases e repetimos refrões, mas foi a noção de linha de montagem do século passado que forjou esse formato que hoje tomamos como eterno. Antes da possibilidade de gravar-se música, não havia uma limitação de tempo que determinasse os poucos minutos que resumem uma canção. Bardos medievais puxavam épicos que não pareciam não ter fim, saraus domésticos atravessavam a noite emendando letras e músicas umas às outras, concertos e óperas podiam durar horas, o canto de pergunta e resposta das plantações agrícolas duravam o tempo da jornada de trabalho. Foi preciso uma inovação tecnológica – o fonógrafo – para que se estabelecesse que a breve duração delimitada por uma restrição técnica poderia ser o início de um novo formato. A canção surgiu como uma necessidade mercadológica para alavancar um novo mercado: se a música erudita não cabia nos primeiros suportes para a música, era preciso inventar um novo padrão. A canção é fruto do encontro do teatro de revista com a música popular e surge no início do século vinte como uma versão musical do conto ou da crônica.

À medida em que o século passava vimos a ascensão de verdadeiros ourives do formato. É uma lista imensa e traduz o espírito de época de todo o século: de Irving Berlin à dupla Morrissey e Marr, passando por Bob Dylan, Noel Rosa, Buddy Holly, Bob Marley, Luiz Gonzaga, Lou Reed, Carole King, Caetano Veloso, Lennon e McCartney, David Bowie, Burt Bacharach, Chico Buarque, Serge Gainsbourg, Gilberto Gil, Nick Drake, Page e Plant, Chuck Berry, Brian Wilson, Rita Lee, os irmãos Gershwin – e a lista continua. A maioria da produção musical do século passado foi construída firme sobre o formato canção, mesmo que gêneros mais instrumentais (como jazz e a música eletrônica) ou mais agressivos (como o heavy metal, o punk e o hip hop) tenham abertos novas possibilidades para além deste formato, criando a base para a música deste século.

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Embora conhecido como uma banda essencialmente cancioneira, o Teenage Fanclub não começou como tal. Seu primeiro disco, A Catholic Education, de 1990, era um disco mais pesado, improvisado e ruidoso do que qualquer outro trabalho da banda, mais próximo à sonoridade caótica do início dos anos 90, à exceção da faixa de abertura, o hino “Everything Flows”. O segundo disco, The King, foi lançado às pressas para cumprir o contrato com a gravadora norte-americana Matador e liberá-los para assinar com a Geffen, que à época queria estabelecer-se como o lar do rock daquela nova década, assinando com o Nirvana, o Sonic Youth, os Stone Roses e os Guns N’Roses. Seu terceiro disco, Bandwagonesque, virava o jogo e mostrava uma nova cara para a banda, em que a canção era o vernáculo principal.

As grandes influências neste sentido são a base do pop britânico (os Beatles) e seus pares californianos (Beach Boys e Byrds), mas principalmente o influente e obscuro grupo norte-americano Big Star, fundado por Alex Chilton e Chris Bell no início dos anos 70, e pelos solos de guitarra lacrimosos do canadense Neil Young. O quarteto formado por Norman Blake e Raymond McGinley (vocais e guitarras), Gerard Love (vocais e baixo) e Brendan O’Hare (bateria) dedicava as dozes músicas à lapidação de canções pop perfeitas, envoltas em doses homeopáticas de microfonia e ironia (como a que levava batizar a própria banda de Fã Clube Adolescente ou a colocar um saco de dinheiro na capa de um disco cheio de canções de amor).

A incrível sequência de canções começa com a descrição de uma garota que “usa jeans onde quer que vá” e que disse “que vai comprar uns discos do Status Quo” numa música cujo refrão canta apaixonadamente que “não quis te machucar” – em uma música chamada “The Concept” que parece resumir o que aquele disco pretendia. Pelo resto de Bandwagonesque, somos apresentados à canções compostas principalmente – e em separado – por Norman e Gerard – a radiante “What You Do to Me”, a fugaz “Star Sign”, a apaixonada “Metal Baby”, a setentista “Pet Rock”, a acústica “Guiding Star”. Mas há também momentos melancólicos do disco, alguns deles assinados pelos outros músicos da banda, como “I Don’t Know” é de Raymond e “Sidewinder” (que Brendan compôs com Gerard), além de, claro, da chorosa “Alcoholiday”, de Norman, outro grande momento do disco. Bandwagonesque termina com a instrumental quase irônica “Is This Music?”, em que solos e riffs de guitarra soam como se estivessem tocando num rádio-despertador que interrompe o sono no fim da madrugada.

Coberto de riffs memoráveis e refrões pegajosos, Bandwagonesque levou a banda a um patamar de sucesso nunca imaginado por eles, chegando a ganhar o título de “disco do ano” de acordo com a revista norte-americana Spin, uma das principais vozes do pop da época (deixando Nevermind, Screamadelica e Out of Time fora do páreo). Mas aquele sucesso não era para o Teenage Fanclub. O disco seguinte, o azarão Thirteen, mudou o tom de sua abordagem em relações a canções e matou a possibilidade de continuar fazendo sucesso nos EUA. De volta ao Reino Unido, lançaram dois outros discos perfeitos (Grand Prix e Songs from Nothern England) no auge do britpop, atingindo a estatura que gostariam que a banda tivesse.

Sem pretensões mercadológicas, planos de negócios, shows em estádios ou discos de diamante, o Teenage Fanclub conseguiu sintetizar a essência da canção pop em um disco ousado por sua despretensão e marcante por sua simplicidade. Doce e direto, Bandwagonesque sobrevive não apenas como um registro do início do fim da era da canção ou como souvenir nostálgico daquele período, mas como um disco de música pop deveria soar, por definição. Essencialmente humano.

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Vencedores do Grammy Latino 2016 evidenciam a ótima fase que atravessamos atualmente – escrevi sobre isso no meu blog no UOL.

Céu, Elza Soares, Djavan, Almir Sater & Renato Teixeira, Martinho da Vila, Paula Fernandes, Scalene e Ian Ramil, Anderson Freire e Hamilton de Holanda. O time de vencedores brasileiros do Grammy Latino 2016 é uma ótima amostra do quão vasto, popular e sofisticado é o atual panteão da música popular brasileira. Mas as pessoas insistem em reclamar que a música brasileira deste século não chega aos pés de sua fase de ouro, sem especificar direito o que era isso – as cantoras do rádio? A bossa nova? A emepebê? O rockbrasileirodosanosoitenta? Lamentam a ausência de um passado que muitas vezes não viveram para ignorar a riqueza do presente que os cerca. Preferem repetir um refrão insuportável de um hit repetido mil vezes para constatar a má fase atual em vez de sair da superfície e fuçar ao redor – e isso hoje em dia é tão mais fácil! Mas a preguiça é regra (essa eu até entendo – e aí o problema não é o ouvinte), o pessimismo é religião e reclamar é o esporte favorito do brasileiro desde muito antes do Facebook.

Mas perceba apenas nesta curta lista de nomes selecionados por um júri formado por gente da indústria fonográfica há universos inteiros do atual cenário brasileiro. Céu é a abre-alas de toda a geração que inclui uma safra inteira de artistas que não descende da bossa nova (nem musicalmente, nem por parentesco ou apadrinhamento), não compõe ao violão e é tão pop (e rock e reggae e samba) quanto emepebê. A diva Elza vive o auge de sua carreira décadas depois de sua consagração gravando o primeiro disco de inéditas de sua vida cercada por uma nova geração de músicos paulistanos tão inquieta quanto prolífica – só vimos a ponta deste iceberg chamado Mulher do Fim do Mundo, um disco que ainda tem muito chão pela frente.

Djavan entra como representante dos grandes nomes da emepebê – mesmo que tenha caído numa mesmice artística a ponto de gerar um clone que hoje é melhor do que o original. O encontro de Almir Sater e Renato Teixeira é de um gigantismo ímpar para a música de raiz brasileira, um acontecimento tão grandioso quanto Louis Armstrong e Ella Fitzgerald cantando Porgy & Bess para o jazz norte-americano. E a estatura de Martinho da Vila não se apequena ao lado destes, afinal é um dos medalhões do cânone do samba. Paula Fernandes também é a ponta de lança de um mercado ancestral, que desde o meio do século passado vem trabalhando para ser uma das principais forças comerciais do pop brasileiro – seu sucesso não é acaso, e sim fruto da obra do sertanejo, essa Nashville brasileira sem cidade-símbolo. O empate entre Scalene e Ian Rammil também crava duas facetas do rock produzido no Brasil – uma popular e emocional, outra específica e racional. Anderson Freire representa o enorme mercado de música religiosa, outra força pop cada vez mais musculosa, enquanto Hamilton de Holanda é o autor mais pop e dos mais ousados do imenso território que é a música instrumental brasileira.

A lista poderia incluir nomes como Anitta (a evolução global do funk carioca) e Emicida (ao mesmo tempo enfant terrible e poster boy do hip hop nacional), além de manjados ícones de nossa cultura, que, quando querem, mostram serviço (João, Gal, Gil, Ney, Caetano, Bethânia) e os que fazem sempre o mesmo há décadas (Roberto Carlos e Jorge Ben, notadamente). Além de literalmente centenas de outros artistas que mesmo não estando neste amplo panteão contribuem para a complexidade e vastidão do que chamamos de música brasileira – bandas de rock e regionais de choro, grupos de pagode e blocos de carnaval, trios de axé music e duplas sertanejas, MCs de funk e instrumentistas virtuosos. Artistas que pagam suas contas vivendo de sua arte e que disputam olhos e ouvidos de um público cada vez mais deslumbrado, blasé ou ignorante.

Culpe a internet, mas também culpe a si mesmo. A proliferação de possibilidades da rede, que permite a ascensão de cada vez mais novos artistas, é a mesma que nos cerca em uma câmara de eco que nos prende sempre àquilo que já conhecemos. E toda vez que você reclama de “Bumbum Granada” (sem perceber a conexão com Noriel Vilela), o algoritmo multiplicador de chorume das redes sociais traz a música que você reclama de volta e assim cada um de nós se fecha para o outro que existe logo ali, no churrasco do vizinho, no som do carro que passa à sua frente, saindo zumbido pelos fones de ouvido de alguém no metrô. Como aconteceu na política deste catastrófico 2016, estamos nos isolando uns dos outros de uma forma quase selvagem, nos fechando em tribos que mal cogitam a existência do outro como possível. Beirando a barbárie.

Mas se nossa vida política parece fadada a dois becos sem saída que se encontram num confronto violento, o mesmo não pode ser dito sobre nossa fruição estética. É possível reduzir a lacuna ideológica que separa diferentes brasis (e não apenas dois, como gostam de frisar) através da música, fazendo os diferentes lados compreenderem que estamos vivendo esta que pode ser a melhor fase da música brasileira. Ao mesmo tempo em que o conceito de disco se desfaz com o digital, vemos o nascer de gerações inteiras que não param de produzir e encantar diferentes públicos. Em alguns instantes fugazes estes públicos se contemplam e dançam junto, sem preconceito, como deve ser. Porque “Malandramente”, “Varanda Suspensa”, “Bang!” e “Playsom” podem funcionar perfeitamente na mesma pista. O segredo é fazer o público jogar a favor – e não contra.