Tudo indica pra que as irmãs Wachowski voltem ao cânone de seu Matrix – desta vez é a trilha sonora do filme sair em vinil – falo deste lançamento no meu blog no UOL.
Finalmente a DC lança um filme digno de sua reputação – escrevi sobre o ótimo Mulher Maravilha no meu blog no UOL.
Cheguei atrasado no bonde da Mulher Maravilha, sem o menor arrependimento. O filme de Patty Jenkins entra quase que instantaneamente para a minúscula categoria de filmes de super-herói que apresentam seus protagonistas de forma que agrade aos fãs dos quadrinhos bem como convença quem não faça a menor ideia quem são aqueles personagens. Nenhum dos sete filmes do Batman entra nessa categoria, o primeiro Thor e o Doutor Estranho quase chegam lá e apenas o primeiro Capitão América, o primeiro Homem de Ferro e o primeiro Super-Homem (o clássico, de Richard Donner, de 1978) desfrutavam deste pequeno Olimpo do entretenimento moderno. E agora a princesa Diana. Não é pouco: Mulher Maravilha é o melhor filme já feito com um personagem da DC.
A entrada da Mulher Maravilha como primeira representante feminina deste time é tão bem-vinda quanto sua aparição no deplorável Batman vs. Superman, também conhecido como o pior filme já feito. Sua apresentação é forte o suficiente para quebrar a atmosfera pesada e sombria de uma forma subitamente inesperada. Mulher Maravilha é um filme solar, diurno, mesmo quando caminha nas trincheiras da primeira guerra mundial. Jenkins foi esperta ao aproveitar que Zack Snyder não usou em seus filmes sobre o Super-Homem uma das principais qualidades do personagem – o lado positivo, pra cima, ingênuo e inspirador de um alienígena que acredita na raça humana. Assim, a diretora as esbanja sobre a sensacional Diana encarnada por Gal Gadot.
Gadot, por sua vez, é claramente um dos grandes trunfos do filme, um passe de mágica em forma de carisma que nos faz ter vergonha por esquecer de Lynda Carter, a Mulher Maravilha da televisão no final dos anos 70, durante toda a duração do filme – e além. Gadot nasceu para ser a Mulher Maravilha como Tony Stark é o personagem da vida de Robert Downey Jr. e Christopher Reeve é o eterno Super-Homem. Seu ar de ingenuidade para com a civilização e sua determinação nas cenas de ação carrega-nos para aquele estágio de suspensão de realidade em que você realmente acredita que aquelas cenas fantásticas estão acontecendo. E é claro que a beleza paralizante da atriz ajuda nesse papel.
Mas não é só ela. A direção de Patty Jenkins é a prova que realmente precisamos de mais diretoras mulheres no cinema. A abordagem das cenas de luta, a humanização na apresentação dos personagens secundários, a seriedade nas cenas mais intensas e desobjetificação do corpo da personagem principal dão um nó em vários clichês dos filmes de super-herói até então. O universo gráfico, barulhento e machista de super-heróis brigando entre si soa inteiramente monocórdico se comparado com este novo filme. Esse lado clichê, no entanto, não escapa nem ao filme de Patty Jenkins e seu terceiro e último ato é vergonhosamente o antônimo de tudo que o filme representava até ali.
Por dois terços, Mulher Maravilha é irretocável. A primeira parte do filme, que se passa na ilha mitológica de Themyscira, lar das amazonas a quem a personagem principal chama de família, consegue o estranho trunfo de colocar em movimento a versão visual mais aceita da mitologia grega, tratando a tela de cinema com retoques coloridos de pinturas renascentistas. Seu segundo ato, o grande momento do filme, apresenta-nos a um elenco de apoio de primeira (o Steve de Chris Pine, o Charlie de Ewen Bremner, o Sameer de Saïd Taghmaoui e o Chefe de Eugene Brave Rock, todos ótimos) enquanto mostra o mundo do início do século passado à protagonista, completa alheia à civilização fora de sua ilha mágica.
É aí que o filme transcende. Quando a recém-rebatizada Diana Prince passa a conhecer o que acontece no mundo fora do reino das amazonas, encontrando de frente o lado bom e o lado mau do ser humano, seu personagem ganha uma terceira dimensão rara nestes tipos de filme e levando o universo de personagens da DC no cinema para um rumo completamente diferente. Ao humanizar o tom do filme sem necessariamente humanizar uma heroína mitológica em mais de um sentido, Patty Jenkins abre uma janela que finalmente areja o tom claustrofóbico néon que paira sobre todos filmes da DC com a Warner (à exceção dos Batman de Christopher Nolan, apenas claustrofóbicos).
O fato de se passar no passado também ajuda nesse tom mais leve que Mulher Maravilha traz a este universo de personagens – e mesmo com o entendiante final cheio de explosões desnecessárias e cápsulas de poder, o filme não se perde no uso de geringonças tecnológicas que salvam a pátria ou de efeitos especiais. Estes são utilizados magistralmente na instantaneamente clássica cena em que a Mulher Maravilha se apresenta para o resto do mundo. Uma cena que sintetiza a importância do filme no cânone dos super-heróis, o carisma determinante de Gal Gadot e o pulso firme de sua diretora.
Além do terço final, Mulher Maravilha também peca por não ter um vilão convincente. Mesmo com o bem realizado jogo de cena feito com os personagens de Danny Huston e Elena Anaya, a revelação final não é tão surpreendente e faz o filme desandar feio em clichês hiperbólicos. A história em si (assinada também por Zack Snyder) também não é grande coisa, mas a forma como ela é conduzida faz que a motivação da protagonista assuma o papel do roteiro principal.
Tais defeitos, no entanto, não maculam o filme. O novo fôlego que Mulher Maravilha sopra sobre o infame estado que a Warner deixou o universo DC (depois das duas últimas bombas, Batman vs. Super-Homem e Esquadrão Suicida) é tudo que o estúdio poderia desejar. Mesmo derrapando na saída, Mulher Maravilha cogita a possibilidade que os próximos filmes da DC possam se recuperar do mico deste passado recente – sem tentar parecer com a Marvel, criando seu próprio universo de sensações e sentimentos que não seja um mero arremedo caricato da concorrência. Palmas para o filme.
Prepare-se para ficar de cara – pois postei no meu blog no UOL a versão sem pós-produção do vocal de Britney Spears em seu clássico “Toxic”, ouve só.
Controverso software que “conserta” falhas nos vocais dos artistas pop, o Auto-Tune é o equivalente sonoro do Photoshop, retocando digitalmente qualidades (ou defeitos) da versão analógica original. Mas ao mesmo tempo em que é alvo de críticas por pasteurizar e padronizar timbres nas músicas mais ouvidas do mundo (embora já venha sendo utilizado como efeito estético, suas qualidades artificiais deliberadamente assumidas), ele também criou gerações de artistas que cresceram com a desconfiança do público em relação a seus talentos naturais justamente por conta deste excesso de recursos sintéticos.
E uma das artistas que melhores se enquadram neste parâmetro é a grande popstar da década passada, Britney Spears. Mas eis que uma versão de seu já clássico hit “Toxic” aparece online sem os retoques do Auto-Tune. E o resultado surpreende:
Esse outro vídeo ajuda a comparar os vocais processados no estúdio pelo software em questão aos vocais puros dos mesmos artistas em versões ao vivo. Na ordem, Ariana Grande, Demi Lovato, Justin Bieber, Taylor Swift, Katy Perry, Meghan Trainor, Rihanna, Selena Gomez, Lady Gaga, Adele, Miley Cyrus, Nicki Minaj e Shawn Mendes.
O que achou?
Lançado há quarenta anos, Exodus, de Bob Marley, foi fruto de um atentado e o primeiro disco político do reggae – escrevi sobre ele no meu blog no UOL.
“As pessoas que estão tentando piorar este mundo não tiram um dia de folga. Como é que eu vou tirar?”, respondeu Bob Marley quando o perguntaram como ele havia feito um show dois dias depois de sofrer um atentado que quase lhe tirou a vida – bem como de sua mulher, Rita Marley, e de seu empresário, Don Taylor. Bob Marley foi alvejado quando ensaiava com sua banda, os Wailers, em seu endereço jamaicano, no número 56 da rua Hope da cidade de Kingston, no dia 3 de dezembro de 1976, dois dias antes do festival Smile Jamaica, onde era a atração principal.
O festival, organizado pelo primeiro-ministro jamaicano Michael Manley, era uma tentativa de responder à guerra entre facções rivais que tirava vidas por toda antiga colônia britânica. Bob Marley, como o primeiro-ministro, era dos poucos jamaicanos proeminentes que preferia não tomar partido de nenhum lado e concordou em puxar um evento para tentar levantar a bandeira da paz entre seus conterrâneos. Quando vários homens armados invadiram o ensaio, Bob foi atingido logo abaixo do coração e no braço, sua mulher e vocalista de apoio Rita teve a cabeça atingida por outra bala e seu empresário Don levou cinco tiros no abdômen. Milagrosamente, todos sobreviveram ao atentado sem nenhuma sequela – tirando o projétil alojado no braço esquerdo de Marley, que subiu no palco do Smile Jamaica mesmo naquelas condições. O evento, conhecido até hoje como “Woodstock jamaicano”, reuniu 80 mil pessoas.
O atentado não marcou Marley apenas em termos de saúde. Foi o início de um processo de transformação artística, que o fez mudar de país e de atitude. Voou para Londres e passou os próximos seis meses no número 34 da rua Ridgmount Gardens, no bairro de Candem. Lá começou a entrar em contato com o ainda incipiente movimento punk londrino e começou a gestar seu disco mais político, a obra-prima Exodus, lançada exatamente há 40 anos, no dia 3 de junho de 1977.
A conexão de Bob Marley com o punk começou quando ele ouviu a versão que o Clash fez para o hoje clássico hino reggae de Junior Murvin, “Police and Thieves”. “Políciais e bandidos nas rua, assustando a nação com suas armas e munições”, cantavam tanto seu conterrâneo quanto a banda inglesa, o que lhe fez perceber que as referências comuns a ambas cenas iam além de estéticas ou artísticas: viviam num mundo confuso e tenso, o que levou Bob Marley a mudar radicalmente as letras de suas músicas. Uma de suas primeiras novas composições – “Punk Reggae Party”, que havia saído no lado B do single de “Jamming”, citava nominalmente o levante musical tanto no título quanto na letra, mencionando até algumas bandas: “New wave, new craze/The Jam, The Damned, The Clash/Wailers still be there/Dr Feelgood too”. Era o início da transformação do reggae em gênero político, cujas cores passaram a ter fortes significados sociais.
Essa é a principal contribuição de Bob Marley ao gênero que o tornou astro. Não foi ele quem inventou o reggae (este foi o produtor Leslie Kong, de quem Bob se aproximou logo que entendeu que aquela novidade sonora iria mudar os rumos da ilha onde nasceu e de sua própria carreira) bem como não foi seu primeiro popstar internacional (este foi Jimmy Cliff, impulsionado pelo sucesso da trilha sonora do filme The Harder They Come), mas Marley sintetizou uma série de outras qualidades que ajudaram a estética jamaicana dominar o mundo. Foi ele quem popularizou o rastafaranismo através do gênero (vertente religiosa que ligou para sempre o reggae aos dreadlocks e à maconha) e quem suavizou a produção originalmente crua daquela musicalidade para as massas (com a contribuição sagaz do produtor Chris Blackwell, da gravadora Island, que havia antevisto o gênero como o próximo rock’n’roll e tratando musicalmente Bob Marley como um astro de rock, tanto em termos de marketing quanto de gravação). Mas ao mudar a temática do gênero de contos do faroeste jamaicano para uma visão política holística e global, Bob Marley mudou a cara do gênero, sua própria importância como artista e a cultura popular do final do século passado.
Exodus – “o movimento do povo de Jah”, como cantava a faixa-título do disco – é um álbum tão perfeito que parece uma coletânea. Começa em silêncio absoluto e vai crescendo muito devagar, o que leva o ouvinte a aumentar o volume antes de ser contagiado pelo balanço sincopado da primeira faixa, “Natural Mystic” – “Há uma mística natural soprando no ar / Se você ouvir com atenção vai perceber”, cantava suavemente o mestre. O disco continuava como a urgente – embora sem nenhuma pressa – “So Much Things to Say”, passava pela tensa “Guiltiness”, tornava-se ainda mais pesado com “The Heathen” até terminar o lado A com os quase oito minutos de sua esplendorosa faixa-título. A carga política do disco, no entanto, era suavizada por um lado B dedicado apenas ao amor, que começava em “Jamming”, continuava em “Waiting in Vain”, seguia por “Turn Your Lights Down Low”, “Three Little Birds” para terminar com a antológica “One Love”, que emendava com uma versão de Bob Marley para “People Get Ready”, de Curtis Mayfield.
Foi uma sacada de gênio, ao dividir o álbum entre política e amor, Bob Marley deixava claro que sua política era a do amor e que uma coisa era indistinguível da outra, mesmo separando-as cada uma em um dos lados do disco. Uma visão que nasceu motivada por um atentado à sua vida, consolidada na capital do antigo império que havia colonizado a ilha em que havia nascido e envernizada com as cores do novíssimo movimento punk. Exodus é a obra-prima de Bob Marley – seu melhor e mais importante disco – e, em 1999, foi eleito pela revista Time como o melhor disco do século passado. Vamos acender as velas para parabenizar este disco por quatro décadas de eternidade musical – e saudar Bob Marley como um dos artistas mais importantes de nossa era. Tuff Gong, indeed.
Há cinquenta anos, os Beatles mudavam a cultura pop com seu magnífico Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band – escrevi sobre o disco clássico no meu blog no UOL.
Se houve um marco que determinou os rumos da cultura que vivemos hoje, este foi o disco que os Beatles lançaram há exatamente meio século, no dia primeiro de junho de 1967. Ao desvendar Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band para o resto do mundo, a banda do norte da Inglaterra que transformou-se no maior fenômeno das massas dos anos 60 reescreveu a história da civilização contemporânea a partir de um simples disco. O impacto do disco mais emblemático da história dos Beatles e da história da música gravada pode ser sentido até hoje e reverberará ainda por muitos anos.
Sua onipresença e unanimidade é tão recorrente que é fácil reduzi-lo como um trabalho menor ou superestimado. Mas nenhuma obra de arte na história da humanidade provocou tantas transformações e causou tanto furor e discussões quanto o oitavo disco da carreira dos Beatles. Vários outros acontecimentos históricos provocaram desdobramentos tão ou mais radicais do que este que é o álbum mais clássico da música moderna, mas nesta categoria entram eventos violentos, drásticos e complexos, como invenções tecnológicas, conceitos teóricos, guerras, conquistas esportivas, epidemias, tragédias e catástrofes naturais. Outras obras de arte tiveram um impacto tão duradouro ou revolucionário quanto este disco, mas nunca de forma tão simultânea e global. Até hoje, cinquenta anos depois de seu lançamento, gerações inteiras, contemporâneas dos Beatles ou não, lembram da revelação provocada pelo disco.
E não apenas de sua audição. Sgt. Pepper’s provocava o crítico, o especialista, o fã e o ouvinte para além do conjunto de suas treze canções. A transformação ia para além do próprio repertório e ia para o conceito artístico, a produção sonora, a embalagem gráfica, a apresentação visual. Diferentes desdobramentos – da evolução da cultura de massas do século vinte ao amadurecimento da ainda infante indústria fonográfica, passando pela consolidação do modernismo e ascensão da cultura pop ocidental – convergiam naquele único disco hoje mitológico.
Mas o mais impressionante é que não havia modelo de negócios, estratégia de marketing, conceitos intelectuais ou manifestos artísticos – tudo foi feito por quatro rapazes entre seus vinte e trinta anos que, fartos de serem tratados como produto de consumo, abandonaram a própria natureza do mercado em que estavam inseridos e a motivação básica que os uniu durante toda uma década (tocar música ao vivo) para conseguirem se reinventar artística e comercialmente. A transformação acontecia basicamente pelo fato de quatro filhos da classe operária de um antigo império colonizador em decadência começarem a agir como uma única mente, um único corpo. Talvez o melhor retrato desta nova fase do grupo foi o fato de que, depois de tirarem férias uns dos outros após anos se vendo diariamente de forma incessante, os quatro se reencontraram com a mesma transformação estética – todos estavam trajando bigodes que nunca haviam cogitado sem nem sequer terem combinado nada entre si.
Por um semestre, no início de 1967, eles embarcaram em uma viagem que começou de forma nostálgica e logo descambou para a alegoria. John Lennon e Paul McCartney, a força-motriz e principais compositores da banda, voltaram para sua cidade-natal em forma de canção e, cada um deles, escreveu uma música que lhes trazia de volta às suas respectivas infâncias – John voltava ao orfanato próximo da casa de sua tia Mimi, onde passou parte de sua infância, e Paul ao terminal de ônibus por onde transitava diariamente quando ia para a escola. Strawberry Field (sem o “s”) e Penny Lane eram lugares mundanos e sem charme, que foram transformados em monumentos às respectivas juventudes dos dois, que logo entrariam para a história como a dupla de compositores mais antológica da cultura popular recente. “Strawberry Fields Forever” e “Penny Lane” fariam parte do novo disco de seu grupo, mas foram escolhidas para, no início daquele ano, serem lançadas como um compacto para mostrar o que os Beatles estavam aprontando no estúdio de Abbey Road. Um prefácio sensacional para uma obra-prima.
Não era pouca coisa. O single de duplo lado A parecia a continuação natural dos experimentos musicais e sonoros que o grupo vinha conduzindo a partir dos dois discos anteriores – Rubber Soul e Revolver, de 1965 e 1966, respectivamente -, mas agora parecia haver uma mesma temática, uma amarra conceitual. Ao mirar em sua Liverpool no ponto de partida do novo disco, os Beatles entenderam que era preciso transcender o formato LP – uma novidade mesmo ainda naqueles primeiros anos da música pop, um conceito que não tinha nem meio século de idade em 1967 – e transformar o álbum em um gesto artístico autoral.
A ideia original veio de Paul, a partir de um trocadilho infame durante um voo sobre o Atlântico. Viu o saleiro e pimenteiro dispostos próximos ao prato de comida e, brincando com as palavras, transformou “salt and pepper” (sal e pimenta) em um personagem fictício – Sargent Pepper -, maestro de uma banda inventada de um clube imaginário, o Clube dos Corações Solitários. A brincadeira evoluiu para um conceito ousado para a época, que aquele não era um disco dos Beatles e sim daquela banda enigmática. E foi vestindo roupas alheias – depois metamorfoseadas em fardas de uma fanfarra psicodélica – que os Beatles pularam num abismo de experimentações.
Logo estariam experimentando colagens sonoras e líricas, instrumentos alheios à música pop tradicional, drogas alucinógenas, temas distantes da alegria pueril dos primeiros dias, jogos de palavras, incursões geográficas, temporais e poéticas. Fugiam para o extremo oposto da beatlemania que havia lhes popularizado em todo o planeta, recriando o próprio universo de forma épica e, sem perceber, forçando o amadurecimento de toda sua geração e dando pistas para as gerações seguintes. Não fundaram a psicodelia, mas trouxeram-na para a pauta do dia, fundindo-a com seus recentes interesses por música erudita, alta cultura, pós-modernismo, música indiana, técnicas de gravação. Sob a batuta do produtor/professor George Martin, acompanhados de seus fiéis escudeiros George Harrison e Ringo Starr e a bordo de um estúdio que permitia apenas a gravação de míseros quatro canais simultâneos, John e Paul viraram a cultura do avesso, trazendo para fora todos seus ímpetos e instintos primários, mas envernizados pela curiosidade, pelo senso de exploração e de aventura e pelo salto no desconhecido.
A capa, hoje icônica, parecia traduzir todas as inquietações que o grupo sentia: era uma colagem ideológica de personalidades díspares – Oscar Wilde e Ghandi, Aleister Crowley e Shirley Temple, Mae West e Lawrece da Arábia, Bob Dylan e Karl Marx – que perfilavam-se a duas versões dos Beatles – uma retirada do museu de cera de Madame Tussauds (que parecia sinalizar que aqueles Beatles, em preto e branco, haviam ficado no passado) e outra multicolorida, sorridente e desafiadora. Aquela colagem visual conduzida por um dos grandes nomes da recente pop art, o inglês Peter Blake, traduzia tanto a ousadia comercial quanto a aventura estética encapsulada naquele disco, reforçada pelo fato de ser o primeiro álbum da história a vir com as letras impressas.
A quantidade de trunfos de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club é imensurável. Sem ele, a cultura perderia o impacto global e os Beatles não seriam uma das principais forças artísticas do mundo até hoje. Seu cinquentenário vem apenas reforçar sua importância, tanto em termos criativos quanto mercadológicos. Nenhuma outra obra de arte foi tão influente e transgressora em tão pouco tempo – nem antes, nem depois.
É possível assistir à nova temporada sem nunca ter visto nenhum episódio da série de David Lynch? Falei sobre isso no meu blog no UOL.
David Lynch ressuscitou Twin Peaks sem apelar para a nostalgia. Claro que o universo de pessoas estranhas e entidades sobrenaturais da série que inaugurou a atual era de ouro da TV recorre a nomes e lugares reconhecíveis pela maioria dos fãs da série, mas a quantidade de desdobramentos, locações e novas situações apresentados em seus quatro primeiros episódios é suficiente para deixar até os maníacos pelo seriado original completamente perdidos. E isso não é ruim – em se tratando de David Lynch, na verdade, é exatamente o que esperamos dele. É, inclusive, é uma boa notícia para quem quer entrar na fauna exótica criada por um dos maiores artistas norte-americanos sem ter se aventurado pelas duas primeiras temporadas do seriado, exibidas entre 1990 e 1991.
Respondendo à pergunta do título: sim, dá para assistir à nova temporada sem conhecer nada do seriado. Mas isso não quer dizer que você entenda o que está acontecendo. Na real, essa é a premissa básica de qualquer obra do cineasta (tirando o mal-resolvido Duna, de 1984, único filme que escapa de seu universo transcendental, incompreensível devido ao embate entre a obra original, as expectativas do estúdio e a visão que Lynch tinha sobre o tema). Os dois primeiros episódios, que já estão disponíveis para serem vistos no Brasil pelo Netflix, reintroduzem personagens clássicos e queridos aos fãs da série da mesma forma como eles foram apresentados há um quarto de século: não há uma explicação básica sobre suas histórias anteriores muito menos sobre suas motivações. O terceiro e o quarto episódios, liberados pelo canal norte-americano Showtime, aprofundam-se ainda mais na complexidade do tema.
Como no início dos anos 90, vamos aprendendo as histórias dos habitantes da minúscula cidade que batiza a série à medida em que a nova temporada vai sendo reapresentada. Claro que para quem já os conhece, há um certo conforto em reencontrar velhos conhecidos como Tommy “Hawk” Hill, Andy Brennan, Lucy Moran, Bobby Briggs, James Hurley, Gordon Cole, Albert Rosenfield, Denise Bryson, Leland Palmer, o Gigante e, claro, o Agente Dale Cooper, entre outros, e ver como todos estão vinte e cinco anos depois que eles foram vistos pela última vez. Mas esse gostinho de nostalgia é minúsculo comparado com a quantidade de cenas surreais e estranhas e personagens distintos que Lynch nos apresenta em 2017.
A partir daqui vou mencionar alguns detalhes que podem tirar a graça de quem quer assistir às surpresas da terceira temporada. Se você quiser manter-se intacto (recomendo esta sensação), vire os olhos e clique em outro lugar para não ler o que vem abaixo destes gifs animados.
Sim, o agente Cooper ainda está preso em uma realidade paralela, aparentemente alheio a todas as transformações que aconteceram no mundo nos últimos vinte e cinco anos. Mas o black lodge, o sinistro quarto de cortinas vermelhas em que foi aprisionado, aparece em preto e branco e aos poucos vemos como o personagem vivido por Kyle MacLachlan escapa dali, desdobrando-se em três personagens diferentes (embora idênticos): o correto Cooper, ainda estático após décadas sem contato com a civilização; o sinistro Bob Cooper (ou Dark Cooper ou simplesmente seu doppelgänger, como a série prefere referir-se a ele), que seria a encarnação do espírito maligno Bob no próprio agente, como vimos no último episódio da segunda temporada; e um tal Dougie Jones, que parece ter surgido do nada. Estes três seres se envolvem em cenas que incluem o espaço sideral, o Gigante com suas dicas enigmáticas, a passagem por um isqueiro de carro, assassinatos brutais, sons estranhos, uma fumaça que sai de uma tomada, uma mulher sem olhos, um cassino premiado, um acidente de carro, vômitos caprichadamente nojentos, uma árvore em forma de neurônio, um porta-malas com uma perna de cachorro e a aparição de Laura Palmer. “Helloooo!”, entusiasma-se um deles repetidas vezes em uma dessas situações.
Confuso? Isso não é nada. Some isso a um portal interdimensional mantido em segurança máxima, um corpo cuja identidade é um segredo militar encontrado ao lado da cabeça de uma bibliotecária, números que surgem como pistas aleatórias, a fatídica rosa azul, um diretor de escola que é preso por um assassinato em outra cidadezinha fictícia do interior dos EUA, cenas em uma Nova York que parece uma fonte de luz, coelhos de chocolate, agentes do FBI que pareciam ter desaparecido, ancestralidade indígena, a última aparição da Log Lady, uma espécie de deus sumério que desaparece em uma cela de uma cadeia (apenas para vermos sua cabeça flutuando rumo ao nada), dúvidas sobre o passado, o presente e o futuro, pessoas que encolhem, relógios que marcam horas-chave, muito sexo, muita violência, muitas contradições e canções que hipnotizam.
Esqueça a busca por significado – esse é o desafio que Lynch nos propõe. Ele prefere criar cenas mágicas e surreais que não precisam ser explicadas apenas pela beleza estética delas e sons que ecoam no fundo da cabeça (o diretor também assina o design do áudio da série, o que torna obrigatório assisti-la em um equipamento provido de boas caixas de som – ou, pelo menos de fone de ouvido). Os quatro primeiros episódios de Twin Peaks vão além do mero entendimento e propõem ao público a degustação de uma viagem audiovisual que independe de significado. Estamos assistindo a um museu de novidades, algumas reconhecíveis, outras completamente absurdas.
Talvez a melhor metáfora para a série seja o tal portal interdimensional, que faz um sujeito observar uma caixa de vidro em um sofá arquetipicamente desenhado para parecer uma clássica sala de estar em frente a uma TV. É como se Lynch dissesse que sua série fosse o tal portal interdimensional e para não nos descuidarmos do que assistimos, mesmo que não pareça nada, para não sermos devorados, assustados ou engolidos pelo inusitado, pelo súbito, pelo improvável.
Há vinte e cinco anos Lynch redefiniu a forma como assistimos televisão – e todas as grandes séries desde então (Sopranos, Mad Men, Arquivo X, Breaking Bad, Buffy – A Caça-Vampiros, Walking Dead, Lost, The Killing, 24 Horas, West Wing e The Wire) foram diretamente influenciadas por suas cenas surreais, suas viradas de roteiro inusitadas, seus personagens tortos e cenários absurdos. Se ele novamente revolucionar a televisão a partir desta nova fase de Twin Peaks, pode ficar tranquilo que os próximos vinte e cinco anos na TV serão muito, mas muito estranhos. A pergunta principal não é mais “quem matou Laura Palmer?” e sim “que diabos é isso que estou assistindo?” Aceite o desconhecido.
E não se assuste se David Bowie – o próprio – surgir em algum momento nos próximos episódios. A deixa foi dada.
Enquanto a segunda temporada da série nostálgica do Netflix Stranger Things não começa, seu protagonista Finn Wolfhard vive a vida de rockstar, tocando cover de New Order e tocando com Mac DeMarco – separei alguns destes momentos no meu blog no UOL.
O ator Finn Wolfhard, que faz o jovem Mike Wheeler na série de terror adolescente Stranger Things, sucesso no ano passado, está tendo um semestre agitado. Além de marcar presença no remake do filme It, inspirado no livro de Stephen King, e na adaptação para o cinema de Carmen Sandiego, o ator ainda consegue arrumar tempo para exercitar seus dotes de rockstar. Foi o que aconteceu no domingo passado, quando ele participou do show do herói indie da vez, o ótimo Mac DeMarco, na cidade de Atlanta, nos EUA, e mostrou que não é apenas um aluno da escola do rock, como dá pra ver nesses dois vídeos postados no Instagram da atriz Natalia Dyer, a Nancy de Stranger Things:
Isso sem contar a participação que a própria banda do ator fez no festival nostálgico Strange 80s, tocando uma versão para “Age of Consent”, do New Order, no início deste mês.
O garoto tem futuro.
Escrevi sobre a importância do mestre que acaba de nos deixar lá no meu blog no UOL.
Todo mundo se lembra de “Eu Sou Boy”, talvez o grande hit new wave brasileiro, sem dúvida o grande hit da new wave paulista. Uma geração lembra de vê-lo apresentando bandas novas que não tocavam no rádio ao vivo em diferentes programas da TV Cultura, outra lembra de vê-lo apresentando clipes de bandas que não tocavam no rádio na MTV. Poucos o conheceram como um dos primeiros punks do Brasil, que reuniu os codinomes de dois dos DJs que discotecavam antes dos shows do Clash para eternizar uma persona que, meio nerd, meio rocker, carregava a cultura da música em seu próprio nome. Mas quem o conheceu sabe o quanto Kid Vinil, que morreu nesta sexta-feira, foi memorável – e crucial para alimentar gerações de fãs de música numa época em que era difícil descobrir qualquer outro tipo de música que não tocasse no rádio.
Para a geração que nasceu com a internet à mão, aplicativos de streaming, torrents de discografias, megastores, lojas especializadas e música digital, os tempos pré-digitais eram uma espécie de Idade Média cultural, especificamente no Brasil. Os poucos sortudos que conseguiam sair do país traziam na bagagem de volta discos que nunca foram vistos na América do Sul, testemunhos de shows de artistas que nunca tocariam – nem tocaram – sequer no rádio brasileiro. Uma época em que música estrangeira era vista como alienante, imperialista e descartável que atrasou a evolução musical brasileira deixando a programação musical do país na mão de poucas gravadoras, rádios e emissoras de TV.
Kid Vinil furava este bloqueio. Era um Napster humano, trazendo notícias do front da cultura pop para um país isolado culturalmente do resto do mundo. Radialista, DJ, jornalista, crítico musical, apresentador, curador, programador musical – o velho Antônio Carlos Senefonte sempre buscava uma brecha para mostrar novidades que ele sempre trazia em primeira mão. Se não eram discos, eram as canções, se não eram as canções, eram as histórias, se não eram as histórias, as ideias. Ele é um dos personagens centrais na história do punk brasileiro e também uma das forças por trás do novíssimo rock que surgiu por aqui durante os anos 80 – quando não era apenas agente, mas protagonista. Liderando o grupo Magazine, ele furou o bloqueio do rádio para falar da vida estressante em São Paulo com os hits “Eu Sou Boy” e “Tic-Tic Nervoso”, além de ter uma música (escrita por Caetano Veloso!) na abertura de uma novela da Globo.
Passados os anos 80, ele entrou nos anos 90 disposto a desbravar a fronteira do rock alternativo e aos poucos cruzava o Brasil para espalhar novidades. Espertamente usava programas de rádio e de TV para mostrar que era possível viver de música longe dos rádios e das TVs, mostrando como funcionavam as coisas na Europa e nos Estados Unidos e traçando paralelos com a novíssima cena indie no Brasil. Na década seguinte foi diretor de lançamentos internacionais da gravadora Trama e seguiu traçando pontes entre a gravadora brasileira e tradicionais selos alternativos estrangeiros.
O conheci pessoalmente quando ele apresentava o programa Lado B, da MTV, logo após a fase clássica do programa, liderada por Fabio Massari. Kid – escudado do guitarrista do Pin Ups, então diretor na MTV Brasil, José Antonio Algodoal – mudou o foco do programa para dar mais atenção às bandas brasileiras que comiam pelas beiradas. Já o conhecia sem conhecê-lo – sua personalidade midiática era uma versão idêntica à sua identidade pessoal. Uma enciclopédia musical, um poço de saber, mas, principalmente, um coração incrível, uma dessas raras pessoas que conectam-se facilmente com todos.
Kid nunca era a alma da festa nem o centro das atenções, preferia ficar no canto, puxando papo para conversar sobre discos, artistas e, claro, sobre a vida. Isso só mudava quando ia para o palco e se esbaldava ao brincar com essa possibilidade que, no fundo, sabíamos que era real: ele era o protagonista de uma história subterrânea que só brincava com os holofotes para sentir o gostinho de estar lá. Como ficou eternizado no título de uma de suas bandas e em sua própria biografia, ele era um herói do Brasil. De um Brasil moderno, plural e musical, que fugia dos centro para valorizar uma cultural essencialmente marginal. Deixa um legado e uma saudade tão grandes quanto sua coleção de discos.
A última música que Chris Cornell tocou antes de morrer citava o clássico de despedida do Led Zeppelin – publiquei o vídeo lá no meu blog no UOL.
Não bastasse ter morrido enforcado exatamente no mesmo dia em que outro suicida do rock tirou sua vida (Ian Curtis, do Joy Division, se enforcou em 18 de maio de 1980), a surpreendente notícia morte de Chris Cornell, vocalista do Soundgarden, veio acompanhada de outra infeliz coincidência, quando ele incluiu trechos da letra do épico “In My Time of Dying”, do Led Zeppelin (cujo título pode ser traduzido como “Na Hora em Que Eu Morrer”) no meio da canção “Slaves and Bulldozers”, última canção que tocou com sua banda, no Fox Theatre, em Detroit, poucas horas antes de se matar. Assista ao vídeo filmado por alguém no público:
O trecho da letra do Led Zeppelin é mencionado a partir dos seis minutos e meio do vídeo – mas isso não queria dizer que ele teria anunciado sua morte, pois Cornell já havia citado “In My Time of Dying”, um clássico do rock pesado, em outras versões desta mesma música.
Outro fã gravou a íntegra do show e é desconcertante ver como Cornell estava bem no palco – nada indicava que aquela seria sua última apresentação ou que ele se mataria em algumas horas.
Eis o setlist deste último show:
“Ugly Truth”
“Hunted Down”
“Spoonman”
“Outshined”
“The Day I Tried to Live”
“My Wave”
“Burden in My Hand”
“Jesus Christ Pose”
“Rusty Cage”
“Slaves & Bulldozers”
Mano Brown lança seu primeiro disco solo transformando uma casa de shows num epicentro da música negra brasileira – escrevi sobre o show no meu blog no UOL.
Carlos Dafé, Seu Jorge, Ed Motta, Max de Castro, Hyldon – um verdadeiro panteão da música negra brasileira desfilou no palco de Mano Brown em sua primeira apresentação solo, na sexta passada, no Citibank Hall. E eles não eram os únicos a circular pelo palco – o maior nome do rap nacional veio cercado de uma banda com mais de dez músicos, sem contar dançarinos. E, no centro de tudo, ele sorria.
Brown não conseguia disfarçar – nem tinha por quê. Ele estava ali vivendo seu sonho de infância, uma versão pós-moderna para os espetáculos do Earth Wind & Fire, uma versão maiúsculas dos antigos bailes black nas periferias e no centro de São Paulo. Uma banda da pesada, com naipe de metais, backing vocals, dois guitarristas, tecladista, baterista, baixista DJ e percussionista, puxando um funk clássico, que ia groove orgânico dos anos 70 ao suíngue sintético dos anos 80, aquele clima entre o início da disco music e sua implosão que Brown sublinha ao chamar seu disco solo de Boogie Naipe. É uma noite dedicada à dança, ao flerte, à alegria e ao prazer, bem longe da cara amarrada e do clima denso que Brown criou dentro dos Racionais MCs.
Os shows de abertura – de Rincon Sapiência e Rael – não trouxeram todo o público para o local, deixando transitável a pista da casa de shows. Mas bastou começar a espera pelo show principal que logo o lugar começou a ficar lotado – nunca vi tanta gente na enorme casa de shows da zona sul de São Paulo. As cortinas se abriram pouco mais de uma hora após o horário anunciado (meia-noite), o que foi praticamente pontual levando em conta os atrasos intermináveis característicos dos shows dos Racionais.
Cortinas abertas, luzes passeando entre os músicos e o público e uma lotação de pessoas no palco também semelhante à multidão no palco dos shows dos Racionais. Mas ali não era a entourage dos rappers e sim uma big band que descia a lenha para o público se esbaldar. À frente da banda, o rapper e cantor Lino Crizz, principal parceiro de Brown nesta nova fase, funcionava como o maestro da banda: vestido na estica, cabelo e vocais impecáveis, Crizz funcionava como a liga entre a banda e o dono da festa, sob o néon colorido que reproduzia de forma gigantesca a capa gráfica do álbum.
Brown sorria, rimava e cantava. É nítida sua vontade de deixar a persona criada com o grupo de rap num segundo plano, mostrando que mais do que um rapper implacável, ele também pode cantar – e bem. Seguindo à risca a mesma ordem de músicas do disco, ele chamava aos palcos praticamente todos os convidados que tocaram nas faixas de Boogie Naipe.
E, ao vivo, Boogie Naipe é um claro bailão, com direito a locutor anunciando atrações (interpretado por Wilson Simoninha), solos de instrumentos, números de dança e climas diferentes de música – da introspecção à festa, do romantismo à exaltação, nunca optando pelo confronto. É um momento de celebração que Brown sublinha para o mesmo público dos Racionais que a vida não é só desgraça, só tragédia, só problemas. É preciso saber se divertir.
E assim ele vai chamando os convidados um a um, seguindo a ordem do disco, até que em dado momento, ele os reúne todos ao redor de uma mesa de boteco, tomando uísque e falando sobre a vida. O alívio de Brown ao ver que, depois de muito tempo de expectativa, deu tudo certo é transparente. Depois que Lino Crizz e Ed Motta dividiram o vocal no improviso de “This Masquerade” de Leon Russell, depois que Seu Jorge reapareceu tocando uma flauta transversal e Max de Castro e Duani desfilavam suas guitarras lado a lado, ele sentou-se num banquinho e desabafou: “Uma hora dessas o script já foi pro saco”, riu. Não tinha problema. Não tinha marra. Essa era a grande marca da noite – era o show de Brown, não do Brown dos Racionais.
E embora o público pedisse músicas do grupo de rap, Brown não fugiu do script. Terminou o show tirando o gorro que usou toda a noite numa pequena barbearia cenográfica instalada à esquerda do palco e se era para cantar músicas que não fossem de seu disco solo, preferiu “I Want You”, de Marvin Gaye. A extensão do show poderia ser reduzida pois em dados momento o excesso de virtuosismo dos músicos, o excesso de improviso dos convidados e as coreografias no palco se tornavam repetitivas – mas isso também é característica tanto dos bailes black quanto dos shows de funk dos anos 70 e das apresentações da discoteca no fim daquela década.
O principal era o claro momento de celebração da cultura negra brasileira, que sublinhava uma verdade importante: Mano Brown é o polo magnético e unânime de diferentes gêneros e gerações desta cultura. Talvez apenas Jorge Ben e alguns nomes da velha guarda do samba provoquem tanta comoção e reverência. E como foi bom ver que Brown soube conduzir esta energia sem fechar a cara, sorrindo.






















