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Visitei a inacreditável exposição em homenagem aos 50 anos do Pink Floyd em Londres e contei o que vi lá no meu blog no UOL.

Réplicas de objetos de cena utilizados pelo grupo no final dos anos 70

Réplicas de objetos de cena utilizados pelo grupo no final dos anos 70

O mesmo museu que mergulhou na vida e obra de David Bowie na excelente exposição David Bowie Is em 2013 agora convida para uma viagem pela carreira de uma das bandas mais influentes da cultura contemporânea. A exposição Their Mortal Remains, organizada pelo museu londrino Victoria & Albert ao lado dos três remanescentes do grupo (David Gilmour, Nick Mason e Roger Waters), disseca 50 anos de carreira do Pink Floyd em várias dimensões, levando em consideração todo o impacto cultural – e não apenas musical – exercido pelo grupo desde seus primeiros anos. Em uma visita que durou algumas horas, fui transportado para um documentário cronológico sobre a história da banda em que os principais artefatos de sua existência eram exibidos um a um.

Um dos grandes trunfos de Their Mortal Remains é a forma como os fones de ouvido distribuídos à entrada ajudam na imersão na exposição. Como são aparelhos sensíveis aos movimentos, eles sintonizam músicas do grupo de acordo com a parte do museu em que você está, além de se conectarem automaticamente ao som de monitores de TV que exibem entrevistas com os integrantes do grupo e seus contemporâneos quando chegamos a poucos metros de distância. É um recurso incrível, que torna o didatismo da exposição ainda mais intenso.

A mostra começa com o tom psicodélico do início da carreira do grupo. A opção por contar a história a partir do momento em que a banda assume o nome que a tornou famosa elimina da história os anos de formação do grupo, quando, altamente influenciado pelo rhythm’n’blues norte-americano, teve encarnações com nomes como Sigma 6, The Meggadeaths, The Abdabs, The Screaming Abdabs, Leonard’s Lodgers, The Spectrum Five e Tea Set. Mas ao definir o ano de 1967 como ponto de partida, a exposição acerta ao mostrar o momento em que o grupo também começa a se preocupar com o impacto visual de suas apresentações. Liderado pelo ícone da psicodelia londrina, Syd Barrett, o Pink Floyd mostra-se extramusical desde seus primeiros registros fonográficos.

Outra opção curiosa da exposição é usar cabines telefônicas como marcos temporais. A cada início de década, surge uma cabine telefônica inglesa típica, com recortes de jornais da época e caracterizada com cores e desenhos do período que demarca.

Entrada da exposição The Pink Floyd Exhibition: Their Mortal Remains no Victoria and Albert Museum, em Londres

Entrada da exposição The Pink Floyd Exhibition: Their Mortal Remains no Victoria and Albert Museum, em Londres

Carta que Roger Waters escreveu para os pais logo na primeira ida do grupo para Londres, em 1967 (na foto, a van com uma listra branca que ele desenha na carta)

Carta que Roger Waters escreveu para os pais logo na primeira ida do grupo para Londres, em 1967 (na foto, a van com uma listra branca que ele desenha na carta)

A cada vitrine nos deparamos com itens pessoais de cada um dos integrantes do Pink Floyd, desde diários escritos à mão a cartas enviadas para os pais contando os primeiros dias como músicos profissionais, além de peças de roupas, equipamentos e instrumentos musicais. Na primeira fase da exposição, cada fase é definida em um disco e cada disco funciona como uma vitrine exibindo itens pessoais do grupo ao mesmo tempo em que contam suas histórias.

Vitrine com as influências musicais do grupo no inicio, Elvis Presley e velhos blueseiros norte-americanos

Vitrine com as influências musicais do grupo no inicio, Elvis Presley e velhos blueseiros norte-americanos

Vitrine relativa à primeira fase do grupo, com as guitarras personalizadas por Syd Barrett e os singles lançados antes do primeiro álbum

Vitrine relativa à primeira fase do grupo, com as guitarras personalizadas por Syd Barrett e os singles lançados antes do primeiro álbum

Um dos primeiros aparelhos a tornar o show do Pink Floyd fora do comum, este refletor permitia a projeção de slides sobre a banda, no meio da imagem, as lentes utilizadas para tirar a foto da banda na capa de seu primeiro disco

Um dos primeiros aparelhos a tornar o show do Pink Floyd fora do comum, este refletor permitia a projeção de slides sobre a banda, no meio da imagem, as lentes utilizadas para tirar a foto da banda na capa de seu primeiro disco

Apetrechos cênicos que o grupo começou a usar no palco – a flor espelhada entre 1973 e 1975 e os aviões do período de transição na virada dos anos 60 para os 70. A bicicleta é a que Syd tinha aos 9 anos de idade.

Apetrechos cênicos que o grupo começou a usar no palco – a flor espelhada entre 1973 e 1975 e os aviões do período de transição na virada dos anos 60 para os 70. A bicicleta é a que Syd tinha aos 9 anos de idade.

Um dos inúmeros teclados de Rick Wright

Um dos inúmeros teclados de Rick Wright

Pôsteres, equipamentos e roupas do grupo em sua fase psicodélica. Abaixo, o clássico Azimuth Co-ordinator, aparelho com o qual o grupo conseguia fazer efeitos utilizando o som quadrafônico de algumas casas de show

Pôsteres, equipamentos e roupas do grupo em sua fase psicodélica. Abaixo, o clássico Azimuth Co-ordinator, aparelho com o qual o grupo conseguia fazer efeitos utilizando o som quadrafônico de algumas casas de show

A clássica Stratocaster preta de David Gilmour e alguns pedais que ele utilizava no início

A clássica Stratocaster preta de David Gilmour e alguns pedais que ele utilizava no início

A guitarra pedal steel dupla que o grupo usava no início dos anos 70

A guitarra pedal steel dupla que o grupo usava no início dos anos 70

Mais uma vez a bicicleta laranja que Syd Barrett tinha aos 9 anos de idade, inspiração para a música "Bike", que encerra o primeiro disco da banda

Mais uma vez a bicicleta laranja que Syd Barrett tinha aos 9 anos de idade, inspiração para a música “Bike”, que encerra o primeiro disco da banda

Nesta primeira fase o que impressionam são os instrumentos modificados por Syd Barrett, bem como suas próprias pinturas, os teclados analógicos de Rick Wright, fotos alternativas de capas de discos e outras relíquias, como a bicicleta que Syd Barrett tinha aos nove anos de idade. A cada vitrine a exposição vai mostrando como o grupo superou a saída do líder, como a entrada de David Gilmour aos poucos foi mexendo no som da banda, abrindo espaço para viagens instrumentais que favoreciam a cozinha formada pelo baixista Roger Waters e o baterista Nick Mason.

Rascunhos do grupo de design Hypgnosis para a capa do clássico The Dark Side of the Moon

Rascunhos do grupo de design Hypgnosis para a capa do clássico The Dark Side of the Moon

Mais artefatos da era Dark Side – as moedas à esquerdas foram costuradas como um chocalho para a introdução da música "Money"

Mais artefatos da era Dark Side – as moedas à esquerdas foram costuradas como um chocalho para a introdução da música “Money”

A exposição muda de tom a partir do mítico Dark Side of the Moon, o disco de 1973 que eternizou a importância do grupo e os transformou em popstars de primeira grandeza. A parte da exposição dedicada ao disco inclui desde rascunhos da capa do disco a instrumentos pouco convencionais usados em sua gravação (como o chocalho de moedas tocado em “Money”) até um holograma em 3D com a capa do disco girando ao som de “The Great Gig in the Sky”. A parte seguinte à do disco mostra como o grupo se aventurava no estúdio e usa um recurso simples e genial para mostrar como o grupo produzia seus discos, a espalhar pequenas mesas de som onde é possível manipular os canais da música “Money” ouvindo os instrumentos separadamente.

Em uma das melhores partes interativas da exposição, o público pode ouvir as faixas separadas de todos os instrumentos na faixa "Money", isolando, à sua escolha, bateria, sax, vocais, duas guitarras, baixo e efeitos sonoros

Em uma das melhores partes interativas da exposição, o público pode ouvir as faixas separadas de todos os instrumentos na faixa “Money”, isolando, à sua escolha, bateria, sax, vocais, duas guitarras, baixo e efeitos sonoros

A partir daí há uma parte inteira da exposição dedicadas a equipamentos e instrumentos musicais, mostrando peças que foram partes importantes tanto na criação dos discos quanto na divulgação em turnês.

Um dos primeiros sintetizadores, instrumentos que o Pink Floyd abraçava logo que eram lançados, utilizando-os em suas aventuras sonoras

Um dos primeiros sintetizadores, instrumentos que o Pink Floyd abraçava logo que eram lançados, utilizando-os em suas aventuras sonoras

Várias guitarras utilizadas por David Gilmour – e um baixo de Roger Waters – a partir dos anos 70

Várias guitarras utilizadas por David Gilmour – e um baixo de Roger Waters – a partir dos anos 70

A clássica bateria de Nick Mason nos anos 70

A clássica bateria de Nick Mason nos anos 70

Mais instrumentos de Gilmour, entre eles um bandolim elétrico

Mais instrumentos de Gilmour, entre eles um bandolim elétrico

A exposição retorna ao ritmo dos discos a partir de Wish You Were Here, de 1975, e também vai mostrando como o Pink Floyd foi crescendo para se tornar um dos maiores nomes do showbusiness. O uso de telão e de infláveis no show, novidades inventadas pela banda, aliam-se aos temas cada vez mais polêmicos e controversos do grupo, culminando com o épico egotrip The Wall, de 1979. Neste período o grupo alcance uma escala que o torna um dos maiores nomes da história do pop moderno até hoje.

A parte da exposição dedicada ao disco Wish You Were Here

A parte da exposição dedicada ao disco Wish You Were Here

Contato com as fotos utilizadas na capa do disco Wish You Were Here

Contato com as fotos utilizadas na capa do disco Wish You Were Here

Caderno com as letras da banda, "Have a Cigar", entre elas

Caderno com as letras da banda, “Have a Cigar”, entre elas

Polaróide da visita de Syd Barrett ao estúdio da banda, em 1975. Gordo, careca e com as sobrancelhas raspadas, ele estava irreconhecível.

Polaróide da visita de Syd Barrett ao estúdio da banda, em 1975. Gordo, careca e com as sobrancelhas raspadas, ele estava irreconhecível.

Réplica da camiseta do grupo usada por Johnny Rotten, dos Sex Pistols, com a frase "I Hate" ("eu odeio") escrita sobreo nome da banda.

Réplica da camiseta do grupo usada por Johnny Rotten, dos Sex Pistols, com a frase “I Hate” (“eu odeio”) escrita sobreo nome da banda.

O recorte original das letras de revistas e jornais que serviram de base para a capa do primeiro disco dos Sex Pistols

O recorte original das letras de revistas e jornais que serviram de base para a capa do primeiro disco dos Sex Pistols

A animação de Ian Emes que passava no telão do grupo quando tocava a música "Time"

A animação de Ian Emes que passava no telão do grupo quando tocava a música “Time”

Réplica da capa do disco Animals e o professor inflável de The Wall

Réplica da capa do disco Animals e o professor inflável de The Wall

Teclado e guitarra usados pelo grupo no final dos anos 70

Teclado e guitarra usados pelo grupo no final dos anos 70

Mais infláveis da fase The Wall, no final dos anos 70

Mais infláveis da fase The Wall, no final dos anos 70

Máscaras usadas pelo grupo na turnê do disco The Wall

Máscaras usadas pelo grupo na turnê do disco The Wall

A punição física ainda era utilizada como método pedagógico na Inglaterra depois da Segunda Guerra Mundial e esta bengala foi responsável por surras em Roger Waters e Syd Barrett, ainda crianças, o que fez o primeiro a escrever uma ode contra o sistema educacional inglês no disco The Wall

A punição física ainda era utilizada como método pedagógico na Inglaterra depois da Segunda Guerra Mundial e esta bengala foi responsável por surras em Roger Waters e Syd Barrett, ainda crianças, o que fez o primeiro a escrever uma ode contra o sistema educacional inglês no disco The Wall

Mais uma vez, o professor inflável original

Mais uma vez, o professor inflável original

Réplica do quarto de hotel Tropicana, utilizado como cenário no trecho do show em que o grupo cita a letra que batiza a exposição, "Nobody Home"

Réplica do quarto de hotel Tropicana, utilizado como cenário no trecho do show em que o grupo cita a letra que batiza a exposição, “Nobody Home”

Farda fascista que Roger Waters utilizava durante a turnê do disco The Wall. Esta versão é a do show que ele fez em Berlim após a queda do muro.

Farda fascista que Roger Waters utilizava durante a turnê do disco The Wall. Esta versão é a do show que ele fez em Berlim após a queda do muro.

Embora Roger Waters tenha desfeito o grupo no início dos anos 80 e David Gilmour, ao lado de Mason e Wright, tenham conseguido seguir com o nome do grupo, a discografia a partir dos anos 80 segue sendo detalhada mas, naturalmente, sem a importância das fases anteriores. A exposição termina com o disco The Endless River, de 2014, feito com sobras de gravações do disco The Division Bell, lançado duas décadas antes. E embora o fim seja melancólico – principalmente ao nos depararmos com a enorme loja de souvenirs do grupo e do museu -, a exposição é um sonho para todo fã do grupo. Ela fica em cartaz em Londres até o início de outubro (mais informações no site do museu) e seus organizadores tem a intenção de fazer que ela viaje pelo mundo. Vamos torcer para, que como a de David Bowie, ela também venha para o Brasil.

Catálogo da turnê mundial do Pink Floyd no final dos anos 80

Catálogo da turnê mundial do Pink Floyd no final dos anos 80

Réplica da fantasia utilizada na capa do disco ao vivo Delicate Sound of Thunder

Réplica da fantasia utilizada na capa do disco ao vivo Delicate Sound of Thunder

Contato com as fotos que iriam para a capa do disco A Momentary Lapse of Reason

Contato com as fotos que iriam para a capa do disco A Momentary Lapse of Reason

As máscaras de ferro utilizadas na capa do disco The Division Bell

As máscaras de ferro utilizadas na capa do disco The Division Bell

“Was He Slow?”

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Que filmaço que é Baby Driver! Escrevi sobre ele pro meu blog no UOL.

Antes de mais nada, Baby Driver – ou Em Ritmo de Fuga, como prefere a versão em português para o primeiro filme norte-americano do inglês Edgar Wright que estreia esta semana no Brasil – não é um musical per se. Mas também não é um mero filme de perseguições de carro, thriller policial ou sobre assaltos a banco. O trailer engana – se não o assistiu, não faça isso para não perder metade da surpresa. Porque Baby Driver também é comédia romântica, tem elementos de terror psicológico e de filmes de ação, é paródia, sátira e homenagem, além de lidar com conflitos sobre amadurecimento e cuspir referências e citações como se fosse um filme de Quentin Tarantino. E, como dizia-se antigamente, é cool até dizer chega.

Tudo isso sustenta-se, no entanto, sobre a música. Mais que a trilha sonora das fugas enlouquecidas do personagem calado vivido por Ansel Elgort, ela é o eixo da história principal e dá ritmo e sentido a todo o filme. Só que ao contrário dos antigos musicais, ela não surge dos lábios dos protagonistas enquanto um diálogo torna-se uma canção. Ela está entre os fones de ouvido do personagem principal, que tem, em sua coleção de iPods, playlists offline para todas ocasiões.

E não há um gênero que prevaleça – ouvimos não só hits obscuros da soul music como pérolas do rock clássico, passando por músicas sampleadas em hinos do rap, rock de garagem, dance music, indie rock, jazz, glam rock, folk contemplativo e funks da pesada. E a coleção de artistas que passeia pelos ouvidos do público vai do Queen a Barry White, Beck e Martha & the Vandellas, T-Rex (“trex”, hehe) e Quincy Jones, Run the Jewels e Beach Boys, Ennio Morricone e Dave Brubeck Quartet, Blur e Focus, The Damned e Simon & Garfunkel – cada um deles lembrados por músicas que fogem de seus hits inevitáveis.

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Sobre esse fio condutor Edgar Wright constrói um filme que é ao mesmo tempo épico e modesto, espalhafatoso e delicado, violento e apaixonado. Ele põe todos os personagens do filme sincronizados com essa irresistível trilha sonora. Da mesma forma que ninguém canta de verdade durante o filme, quase ninguém dança – quase toda a coreografia é feita por carros e armas, pelo movimento das ruas e das perseguições de tirar o fôlego conduzidas por um motorista impassível, que nunca tira seus óculos escuros. Um caubói moderno, um Han Solo terráqueo que aparece inclusive na primeira cena com o traje parecido com o do mercenário coreliano.

Pelo decorrer de Baby Driver, nos encontramos com atores do calibre de John Hamm, Jamie Foxx, Kevin Spacey e Jon Bernthal, duas atrizes novatas perfeitas – a sagaz Eiza González (descoberta por Robert Rodriguez na versão em seriado para Um Drink no Inferno) e a encantadora Lily James (do Cinderela de 2015), além de pontas de nomes do mundo da música, como a cantora Sky Ferreira, o baixista dos Red Hot Chili Peppers, Flea, Paul Williams (o desconhecido compositor de hits como “We’ve Only Just Begun”, “Rainy Days and Mondays” e “Rainbow Connection”), Big Boi do Outkast, Killer Mike do Run the Jewels e Jon Spencer, do grupo Jon Spencer Blues Explosion cuja “Bellbottoms” dá o tom inicial do filme numa sequência sensacional.

Logo em seguida, “Harlem Shuffle”, que a maioria das pessoas conhece pela versão que os Rolling Stones gravaram em seu Dirty Work, surge em sua versão original, que hoje é mais reconhecida pelo sample que o House of Pain usou no início de seu hit “Jump Around”, acompanha o protagonista passeando a pé pelas ruas enquanto a música se materializa em gestos, pixações e vitrines.

É um musical feito para uma geração que cresceu com fones no ouvido, melhorando situações triviais do dia-a-dia com a trilha sonora correta, escolhida exatamente para aquele momento. É o extremo oposto de La-La-Land, que recria uma época em que as pessoas queriam cantar para expressar felicidade ou tristeza. Baby Driver abandona qualquer referência clássica para se metamorfosear em um musical pós-moderno, que faz carros dançar enquanto riscam os pneus nos asfalto e metralhadoras cuspir junto com a bateria e a percussão. É o musical que o século 21 estava esperando.

Como o incensado segundo filme de Damien Chazelle, o sexto filme de Edgar Wright enche-se de citações e referências, mas vivas e reconhecíveis, não feitas apenas para fanáticos por Hollywood clássica ou por gente com mais de meio século de vida. Wright é pop maiúsculo e Baby Driver encaixa-se perfeitamente em sua filmografia, fazendo par tanto com o seriado cult Spaced, a trilogia que fez com Simon Pegg e Nick Frost (Todo Mundo Quase Morto de 2004, Chumbo Grosso de 2007 e Heróis de Ressaca de 2013) e o videogame em carne e osso de Scott Pilgrim Contra o Mundo. E por mais que sua história tenha começo, meio e fim, o que importa é a viagem e a trilha sonora – tudo muito alto astral. Aumenta o som!

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O que é causa e o que é consequência nas mortes de Ian Curtis a Chester Bennington – escrevi sobre esse assunto no meu blog no UOL.

Instigado pelo punk rock dos Sex Pistols, Ian Curtis foi um dos poucos habitantes de Manchester que assistiram ao mítico show que a banda inglesa fez em sua cidade. Entre os poucos que estavam no público estavam nomes que depois foram bandas como The Fall e The Smiths, além da gravadora Factory. Formou uma das primeiras bandas que instigaram o punk para ir além da agressividade e liderando o Joy Division inaugurou uma nova categoria e um novo jeito de se fazer rock. Gravou dois discos com esta banda e às vésperas da primeira turnê nos Estados Unidos, depois de lançar o disco Closer que tornaria a banda um sucesso, enforcou-se na cozinha de casa, ao som do disco The Idiot, de Iggy Pop.

Kurt Cobain era um nerd norte-americano fascinado pelo indie rock dos anos 80 e pelo hard rock dos anos 70. Formou uma banda que fundiriam as duas vertentes, a princípio antagônicas, e liderando o Nirvana mudaria a cara da indústria fonográfica no início dos anos 90 ao subverter os parâmetros do mainstream e do underground. Preso entre o sucesso e o antissucesso, pagou caro ao viver este paradoxo ao sucumbir à depressão e às drogas pesadas, que finalmente o levaram a meter uma bala na cabeça na casa em que morava em Seattle.

Ian Curtis morreu antes de fazer sucesso. Kurt Cobain morreu depois. Ambos tiraram suas próprias vidas e, a partir de suas mortes, era possível detectar que algo não estava bem com eles.

É fácil chegar a esta conclusão após gestos drásticos de suicidas famosos. Mesmo casos anteriores – como Graham Bond e Richard Manuel – e posteriores – como as recentes mortes de Chris Cornell e Chester Bennington -, causam a sensação de que a música foi o catalisador de sentimentos pessimistas e depressivos que culminaram com a própria morte. Quando, na verdade, foi o contrário.

Foram estes sentimentos que os levaram para a música. Foi a vontade de exprimir sensações que não eram facilmente traduzidas em palavras que os colocou em frente a uma banda, os transformou em astros do rock que conseguiam traduzir estas angústias em letra, música e eletricidade. Não foi o rock que tirou suas vidas ao levá-los para o mundo do sexo, drogas e rock’n’roll ou para o mundo do showbusiness, da indústria e da fama. O gesto final de suas biografias foi a última tentativa de sucumbir sensações que sempre os acompanharam, mesmo antes de montarem suas bandas.

Suas carreiras musicais eram tentativas de superar dores que sempre estiveram presentes. Não foi a tristeza, a angústia e a depressão que simplesmente tiraram suas vidas – foram elas que os transformou em autores, músicos e astros do rock. O luto dos fãs não é apenas a tristeza da perda de um ídolo, mas o reconhecimento de que aquilo que eles sempre falaram em suas músicas era de verdade.

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Seguindo a série de edições especiais da vida de David Bowie, é a vez de mergulhar entre os anos 1977 e 1982 do mestre morto no ano passado – escrevi sobre a caixa A New Career in a New Town no meu blog no UOL.

Mais uma caixa de discos vem dissecar outra fase de David Bowie. Depois de destrinchar a primeira fase de sua carreira na memorável caixa David Bowie Five Years (1969-1973), lançada em 2015, e de se aprofundar na fase de transição do artista no meio dos anos 70 na ótima David Bowie Who Can I Be Now? (1974-1976), de 2016, o mergulho no arquivo do artista que morreu no início do ano passado traz a tona a caixa A New Career in a New Town (1977-1982), que reúne as gravações da época em que Bowie mudou-se para Berlim, na Alemanha, até o disco que é considerado sua última obra-prima da fase clássica, Scary Monsters (And Super Creeps), de 1980.

São onze CDs (ou treze vinis) que reúnem reedições dos principais discos que ele lançou na época, como Low, “Heroes” (e o EP de mesmo nome, lançado em seguida com versões da música em alemão e francês), Lodger (em duas edições, sendo a mais recente com nova mixagem feita pelo produtor Tony Visconti), o duplo ao vivo Stage (também em duas edições), Scary Monsters e a coletânea Re:Call 3, reunindo músicas que só saíram em compacto neste período (incluindo a íntegra do EP Baal, com a trilha sonora que Bowie fez para a peça de Bertolt Brecht de mesmo nome. O título da caixa é o nome da última faixa do lado A de Low, que completou 40 anos no início de 2017.

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Entre as novidades da caixa (que ainda traz um livro de capa dura com 128 páginas) está uma versão mais longa, com quase dois minutos a mais para “Beauty And The Beast”, do disco “Heroes”, de 1977, que foi lançada originalmente num disco promocional lançado nos EUA.

rockbrasil2017

O UOL celebrou o dia do rock e me pediram pra elencar dez bandas de rock para calar a boca de quem diz que não existe mais rock feito no Brasil lá no meu blog.

Uma reclamação constante que ganha força no infame “dia do rock” é que não há mais rock bom sendo feito no Brasil. Normalmente esta reclamação vem de gente que se acostumou a acompanhar as novidades pelo rádio, um meio que, infelizmente, preferiu optar pela redundância comercial do que pela curiosidade artística. E o próprio rock preferiu se distanciar. Se escondendo em rótulos e nichos, várias bandas conseguem se estabelecer longe das massas, criando carreiras e discografias sólidas em anos de trabalho. Algumas até flertam com o mercado pop mas acabam sendo ofuscada pela ostentação intensa de artistas de forte apelo popular. Mas, sim, há muita banda boa fazendo rock atualmente. Separei dez das que considero mais representativas na atual cena do Brasil, mas quem quiser citar mais nomes, por favor, use a área de comentários para isso (e não para seguir reclamando de que não há nada de novo, sem nem se dar ao trabalho de ouvir as bandas).

Autoramas
autoramas

A decana banda liderada por Gabriel Thomaz – que hoje conta com a esposa Érica Martins (ex-Penélope) na formação – já pode ser considerada um clássico do atual rock brasileiro. Contemporânea do grupo Los Hermanos, o hoje quarteto começou como um trio e rebola entre o rock mais dançante e sujo dos anos 60 e a new wave e o punk rock dos anos 70, com letras em português e refrões grudentos. Seu disco mais recente, O Futuro dos Autoramas, prova que é possível ser pesado e fazer dançar sem deixar de soar rock.

The Baggios

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A dupla sergipana – que agora é um trio – lançou um dos discos mais pesados do ano passado, o excelente Brutown, e aos poucos também se estabelece como uma das bandas que mais circulam pelo circuito independente do país. Rock bruto e cru com letras em português para não deixar ninguém parado.

Boogarins

boogarins

A principal banda da nova cena psicodélica brasileira, o grupo goiano Boogarins foi responsável por dar origem a toda uma nova safra de bandas que bebem tanto no rock lisérgico dos anos 60 quanto no indie rock deste século. Vocais sussurrados, guitarras derretidas e uma cozinha precisa cravam a precisão do grupo, que acaba de lançar o ousado Lá Vem a Morte, flertando com a eletrônica e a pós-produção. Seu disco anterior, o já clássico Manual Guia Livre de Dissolução dos Sonhos, é um dos principais trabalhos de rock brasileiro deste século.

Cidadão Instigado

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Liderada pelo guitar hero Fernando Catatau, a banda cearense Cidadão Instigado já se estabeleceu como uma banda contemporânea de rock clássico e completa, neste ano, duas décadas de atividade. Com os pés no rock dos anos 70 e a cabeça entre praias ensolaradas e a o concreto quente, o grupo é conhecido por viagens instrumentais pesadas que orbitam entre o rock psicodélico, o rock progressivo e o art rock, com um sotaque definitivamente brasileiro. Seu disco mais recente, o manifesto Fortaleza, também é seu disco mais pesado.

E a Terra Nunca Me Pareceu Tão Distante

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Quarteto paulistano de pós-rock, o grupo E a Terra Nunca Me Pareceu Tão Distante explora paisagens sonoras com timbres pesados e levada ambient, criando pinturas instrumentais de texturas pesadas e forte carga emotiva. Estão lentamente compondo e gravado seu disco de estreia, e seu lançamento mais recente (o single com as músicas “Medo de Morrer” e “Medo de Tentar”) captura sua intensidade melancólica.

Far from Alaska

farfromalaska

Reconhecidos inclusive no exterior, a banda potiguar Far from Alaska é um dos principais nomes do nu metal brasileiro e acaba de gravar seu segundo disco, Unlikely, que será lançado ainda neste semestre. O single de “Cobra”, igualmente pesado e melódico, é uma ótima amostra do que podemos esperar deste novo disco.

Maglore

maglore

Banda baiana liderada pelo compositor Teago Oliveira está prestes a lançar seu quarto disco e o culto ao redor de suas canções e apresentações segue crescendo. Com fortes cores melódicas, o grupo segue a trilha abandonada pelos Los Hermanos no terceiro disco, sem perder a força elétrica dos riffs e solos de guitarra. O terceiro disco da banda, chamado apenas de III, é uma ótima porta de entrada para o trabalho do grupo.

Rakta

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Banda paulistana de formação feminina, o Rakta é minha banda brasileira de rock favorita atualmente. Sem guitarra, concentram o ruído entre as linhas de baixo de Carla Boregas e os teclados de Paula Rebellato, que também tocam percussão no meio do show, transformando a apresentação em um ritual de bruxaria elétrica. As influências vão da no wave ao krautrock, passando pela psicodelia e pelo pós-punk – e seu terceiro disco, batizado apenas de III, é uma obra-prima.

O Terno

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Trio liderado por Tim Bernardes (filho do Mulheres Negras Maurício Pereira), O Terno é uma usina de som e seus shows são catárticos. Entre o rock épico, a psicodelia e a música brasileira, eles bebem tanto em bandas clássicas dos anos 60 quanto em ícones dos anos 80 e malditos da MPB, fazendo um amálgamo sonoro intenso, elétrico e com letras que apelam para a metalinguagem. Seu disco mais recente, Melhor do Que Parece, é mais melancólico que as apresentações do grupo – por isso escolho o segundo disco, batizado apenas com o nome da banda.

Ventre

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Outro grupo que segue levantando a bandeira do rock melódico que já foi dos Los Hermanos, o trio carioca Ventre é conhecido por suas apresentações intensas e por entortar soluções pop de forma inusitada, além da presença carismática da baterista Larissa Conforto, gigante em seu instrumento. Seu disco de estreia, homônimo, já é um dos grandes discos de rock brasileiro desta década.

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David Lynch está tentando nos mostrar alguma coisa no meio de algo aparentemente abstrato e sem sentido neste episódio 8 da nova temporada de Twin Peaks – escrevi sobre isso no meu blog no UOL.

Se você está acompanhando a terceira temporada de Twin Peaks e já chegou ao oitavo episódio, deve estar em algum ponto entre três diferentes reações: ou está maravilhado com o feito de David Lynch e como ele pode reverberar não apenas na história da série, mas na obra do diretor e na história da arte desse século (onde estou) ou está revoltado com o fato da história principal ter sido abandonada para entrar em elocubrações sobre acontecimentos remotos que parecem não ter nenhum vínculo com a história ou está coçando a cabeça até agora perguntando o que diabos aconteceu e como é que a série vai continuar daqui pra frente. Se você não chegou neste episódio, hora de virar os olhos e correr para fechar a aba do navegador, porque lá vem um monte de spoiler sobre a série até agora para refletir sobre o que realmente aconteceu nesse mítico oitavo episódio e quais as próximas fronteiras a serem exploradas por David Lynch.

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A boa notícia é que o episódio passado não foi completamente descolado da estranha realidade envolvendo o assassinato de Laura Palmer e da cidadezinha no noroeste americano onde seu corpo foi encontrado envolto em plástico. Got a Light?, o oitavo episódio da terceira temporada do seriado, funcionou como uma espécie de história de origem de uma tensão que agora parece ser a principal motivação por trás de tudo que assistimos sobre a série até aqui. A introdução do capítulo, com o inesperado assassinato da versão maligna do agente Cooper (vivido, claro, por Kyle MacLachlan), um estranho ritual sobrenatural que parece extrair a essência do espírito Bob de dentro do agente e aparição da atração musical do episódio, o Nine Inch Nails, logo no começo, parecia antecipar mais uma hora de sustos e estranhamentos típicos da nova temporada da série. Mas de repente algo completamente inusitado aconteceu.

Arte. Arte em estado bruto, pura arte. Vendida como um episódio de um seriado.

A série volta no tempo e, em preto e branco, assiste à explosão da primeira bomba atômica da história. Uma lenta e deslumbrante imagem fotografada com uma luz tão gloriosa quanto a primeira vez que Lynch filma Nova York no primeiro episódio da nova temporada. Sob as tensas cordas de “Lamento pelas Vítimas de Hiroshima”, do compositor polonês Krysztof Penderecki, Lynch aproxima-se cada vez mais do centro da explosão em forma de cogumelo até que a câmera perca-se na luz da explosão.

https://www.youtube.com/watch?v=4IKUeIEdRMY&feature=emb_title

E assistimos a uma vídeo-instalação em que Lynch nos força a mergulhar em uma espécie de descanso de tela de computador com defeito, a luz fragmentada em uma nuvem de pontos que se espalham pela tela, manchas disformes que misturam tons de cores de uma forma nunca vista em uma transmissão televisiva. Um mergulho ao coração de uma explosão que ao mesmo tempo é um big bang, o início de algo completamente novo. Estamos dentro do átomo, vendo-o sendo espatifado por dentro, assistindo às estruturas sendo dissolvidas de dentro para fora. O que Lynch parece insinuar é que a diferença entre a explosão atômica e o começo do universo é só uma questão de escala. Mas esteticamente são momentos idênticos. São artes plásticas em movimento – ou como o próprio Lynch frisa, plásticas não: elétricas. As sucessões de borrões que se intercalam por minutos desafiam a paciência do espectador como qualquer cena de qualquer filme do diretor, só que sem cenários, atores, diálogos. Ele segue testando nosso limite de submissão fazendo algo que nunca foi feito em uma mídia com esse alcance. É inevitável comparações com o 2001 de Kubrick e o Árvore da Vida de Malick, filmes que tentaram traduzir esse momento em luz e som.

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Ainda sem cores, assistimos a uma sequência de caráter completamente onírico, mostrando um ser de feições indefinidas (mas que lembra o ser que entrou pelo portal em Nova York, no primeiro episódio) vomitando uma gosma amorfa cheia de ovos e casulos. Um deles captura o próprio Bob, entidade maligna responsável pelo assassinato de Laura Palmer. A imagem do ator Frank Silva (morto em 1995) no meio daquela gosma parece apontar que aquele é o seu momento de origem. Algo aconteceu no tecido de nossa realidade com a explosão da primeira bomba atômica que libertou toda aquela maldade.

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Bob, no universo de Twin Peaks, não tem uma definição precisa: não sabemos se ele é uma espécie de demônio que instiga o lado ruim dos humanos, escravizando-os em sua dor e sofrimento, ou se ele é a própria maldade inerente a todos nós, desperta por motivos improváveis. Mas o que este novo episódio parece indicar é que Bob é um tipo específico de ruindade que nasceu com a explosão da primeira bomba atômica. Talvez uma metáfora para mostrar como a humanidade se desumanizou ao cogitar a possibilidade de pulverizar cidades inteiras. Como diria o físico J. Robert Oppenheimer, um dos responsáveis pela criação da bomba, ao observar o estrago de sua invenção, citando o Bhagavad Gita indiano: “Agora eu me torno a morte, o destruidor de mundos.”

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Desafiando qualquer resquício de lógica, o episódio continua com imagens de uma loja de conveniência em um posto de gasolina com diferentes tons de luz e sombra, numa imagem em movimento que remete à estética clássica norte-americana mas de um ponto de vista sombrio, obscuro. Ao mesmo tempo em que foca e desfoca o estabelcimento comercial, o vemos sendo cercado e populado por pessoas indistinguíveis, que entram e saem da loja com a mesma velocidade abrupta de cortes e movimentos de edição que a sequência distribui. São vários minutos desta sequência também em preto e branco que parece não ter pé nem cabeça, mas está atrelada umbilicalmente à mitologia da série.

De repente o seriado nos leva para uma fortaleza blindada no meio do oceano roxo que conhecemos no terceiro episódio e num longo travelling a câmera nos leva para uma sala de estar em seu interior onde uma mulher peculiar está sentada escutando música, até que um alarme dispara. Surge então o mesmo gigante que deu as dicas para o Agente Cooper no início da temporada – ele desliga o alarme e assiste à cena da explosão nuclear e da criação de Bob por uma tela.

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Os dois – que ficamos sabendo pelos créditos no final do episódio que se chamam, respectivamente, Señorita Dido e sete pontos de interrogação – isso mesmo, “???????” – trocam olhares e demonstram preocupação com o que acabaram de assistir. É quando o gigante começa a levitar e, no ar, sua cabeça passa a expelir uma luz dourada. Esta luz se concentra em uma bola de energia que, entregue à Señorita Dido, releva o rosto de Laura Palmer. Dido beija a esfera e a lança em um estranho aparelho de tubos dourados – por outra tela, vemos que a esfera está indo em direção ao nosso planeta, especificamente rumo aos Estados Unidos.

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Corta para 1956 e assistimos a um ovo sendo chocado na areia. A cena também é filmada em preto e branco e mostra o nascimento de um ser que parece um anfíbio e um inseto ao mesmo tempo, com patas de sapo e asas de mariposa. O estranho animal desaparece no horizonte quando assistimos a um garoto adolescente conduzir sua colega de escola de volta para a casa. É uma sequência captura a atmosfera estética da cultura norte-americana clássica do pós-guerra. Sua essência está na inocente cena em que o jovem casal dá o primeiro beijo, carregada de uma candura que desapareceu de nosso planeta. A partir dessa cena acompanhamos um estranho sujeito de pele oleosa e pintada de preto que se dirige às pessoas de forma agressiva ao perguntar, com um cigarro apagado na boca, o nome do episódio (“tem fogo?”). Primeiro ele interroga a um casal dentro de um carro, que sai em fuga assustado.

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Depois ele segue em direção a um emissora de rádio, se dirige à recepcionista com a mesma pergunta, antes de espatifar seu crânio apenas com uma das mãos. Entra no estúdio onde está o apresentador da rádio e o imobiiza da mesma forma. Mas antes de matá-lo, tira o disco que está tocando, empunha o microfone e, com o cigarro ainda pendurado na boca, repete:

“Isso é a água
E isso é o poço.
Beba tudo e desça.
Os cavalos são os brancos dos olhos
E a escuridão por dentro.”

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Esse verso é repetido de forma agressiva por repetidas vezes e alcança os ouvintes do rádio, colocando-os um a um para dormir, hipnotizados – inclusive a garota que deu o beijo há poucos minutos. Ela cai na cama deitada de lado e, enquanto ouve aquela estranha oração, recebe a visita da estranha rã-cigarra que vimos sair de seu ovo nos instantes anteriores. De olhos fechados, ela abre a boca apenas para que o bicho bizarro entre inteiro dentro dela. O episódio termina com a cena da menina dormindo, nos deixando pasmos com o que acabamos de assistir.

E não estou falando apenas de um animal mitológico entrando na boca de uma adolescente dormindo.

Todo o oitavo episódio da terceira temporada de Twin Peaks é de ficar boquiaberto. Primeiro por sua beleza estética e aula de cinema – Lynch esmerilha toda sua técnica como o mestre que é, mas sem precisar ater-se a cenas tradicionais, com personagens, diálogos e cenários. Tais cenas evocam diferentes genealogias artísticas que são caras ao cineasta, como o surrealismo, o hiperrealismo, o cinema comercial dos anos 50, pintores como Edward Hopper e Francis Bacon, cineastas como Luís Buñuel, Charles Laughton e Kenneth Anger. Toda a sequência que acontece após a aparição do Nine Inch Nails – quando o episódio passa das cores ao preto e branco – poderia ser um média metragem de horror e ficção científica do pós-guerra, quando os filmes não precisavam explicar o motivo central de suas existências, apenas enfileirando cenas fantásticas e surreais para delírio de uma plateia pasma. E casualmente costura diferentes referências de suas obras – a rodovia vira uma estrada vicinal fazendo referência à Estrada Perdida logo no início do episódio, o teatro onde o gigante assiste à explosão nuclear é o mesmo Club Silencio do Cidade dos Sonhos e todo o episódio é a obra mais próxima que o cineasta já fez de seu primeiro filme, o bizarro Eraserhead.

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Mas por trás daquelas imagens aparentemente dispersas, há o cerne de toda a história de Twin Peaks, que juntas pontas de diferentes histórias da mesma forma que o sétimo episódio havia feito na semana anterior. Se antes havíamos visto a versão má do agente Cooper reencontrar a mítica personagem Diane apenas para depois negociar sua fuga da prisão, vimos o reaparecimento das páginas desaparecidas do diário de Laura Palmer e assistimos ao letárgico Dougie viver seu momento mais próximo da versão boa do agente Cooper, neste episódio mais recente tivemos conexões sendo finalmente ativadas – mas num plano metafísico. E a chave para estes momentos são estes estranhos personagens que haviam aparecido duas vezes na nova temporada causando um desconforto sobrenatural até mesmo para os níveis de Twin Peaks – e que no oitavo episódio finalmente ganham nome (na cena dos créditos finais, cada vez mais funcional para a narrativa da série). Os Woodsmen – os homens da floresta.

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São eles quem aparecem logo que o personagem Ray Monroe (vivido por George Griffith) mata a versão má do agente Cooper de surpresa e começam a causar a lenta náusea audiovisual do início do episódio. São oito personagens cujas imagens se sobrepõem num efeito especial barato, seus corpos translúcidos dançando ao redor do cadáver de Cooper para o horror de seu assassino. Três deles caem sobre o corpo e passam a mexer em suas entranhas, sujando-o ainda mais de sangue, principalmente no rosto. O tempo e o espaço parecem se diluírem naquele momento e nós ficamos tão horrorizados com aquela cena quanto o próprio Ray. Até que os Woodsmen extraem um objeto redondo de dentro do corpo de Cooper – e nele conseguimos ver o rosto de Bob.

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São os Woodsmen que também entram e saem da loja de conveniência na sequência menos narrativa de todo o episódio. Mas o que parece completamente aleatório e arbitrário tem explicação específica no filme Os Últimos Dias de Laura Palmer (Laura Palmer: Fire Walk With Me) que David Lynch dirigiu logo após o cancelamento da série original em 1991. Completamente diferente do tom da série, Fire Walk With Me explora o lado mais sobrenatural e violento de Twin Peaks e foi rechaçado em seu lançamento por fãs e críticos – foi vaiado em Cannes e mais de uma vez referido como o pior filme já feito.

No entanto, é dele que saem as primeiras referências à loja de conveniência e aos Woodsmen na série. Especificamente quando nos encontramos com o agente Philip Jeffreys, vivido por David Bowie. Desaparecido após investigar um crime parecido com o assassinato de Laura Palmer, Jeffreys volta a aparecer nas dependências do FBI exatamente como o agente Cooper havia previsto em um sonho. Ele surge vestindo a mesma roupa com que foi visto pela última vez quando desapareceu dois anos antes na Argentina e fala que esteve no “andar acima da loja de conveniência”. Quando ele descreve esta cena para Cooper, para o agente Albert Rosenfeld (vivido por Miguel Ferrer), para Gordon Cole (o agente do FBI interpretado pelo próprio David Lynch), a cena desfoca para este ambiente estranho em que o Homem do Outro Lugar (também conhecido como o anão que fala de trás pra frente) e o espírito de Bob estão sentados frente a frente em uma mesa.

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https://www.youtube.com/watch?v=aMszCiYdtts&feature=emb_title

As duas cenas – da volta de Jeffreys e da reunião no andar de cima da loja – são mais longa na versão original do filme, que David Lynch publicou depois na série de cenas Missing Pieces, anos depois do original. Primeiro, a da volta do personagem de David Bowie:

Depois, a do andar de cima da loja de conveniência:

Ao seu redor, pessoas que são creditadas como sendo os Woodsmen daquele filme. Eles nada fazem, apenas assistem ao diálogo entre Bob e o anão, que menciona a conexão entre dois mundos, o anel que Laura Palmer usava quando tinha morrido, a cor de uma mesa de fórmica e “garmanbozia” – o nome que estes espíritos dão à dor e ao sofrimento humanos, que eles comem como se fosse um alimento (materializado na forma de creme de milho).

Garmonbozia

O andar acima da loja de conveniência é uma versão menos glamourizada do Black Lodge, o ambiente de cortinas vermelhas e chão em ziguezague que tornou-se uma das assinaturas visuais da série. Nota-se, no entanto, que a loja de conveniência que vimos no oitavo episódio da terceira temporada não tem um andar de cima. É como se a cena do oitavo episódio fosse uma alegoria para a própria criação do Black Lodge.

Do mesmo jeito que outras duas cenas foram alegorias para a criação de dois outros personagens: Bob surge vomitado pelo experimento, entidade maligna que, aparentemente, conseguiu entrar em nosso plano material a partir da explosão da primeira bomba atômica. A reação à sua criação leva à criação de Laura Palmer – ou ao menos de sua força espiritual, que é enviada para a terra como um antídoto à criação de Bob. É como se ela tivesse sido criada para ser sacrificada – uma espécie de isca para atrair o mal e expô-lo, uma versão feminina, vitimizada e sobrenatural de um Jesus Cristo de Twin Peaks.

E, finalmente, temos os Woodsmen no momento em que a estranha criatura consegue sair da casca de seu ovo em 1956. É como se eles tivessem sido acionados para dar força para este ser, de forma que ele conseguisse encontrar seu hospedeiro mais facilmente a partir do mantra recitado pela rádio por um dos Woodsman. Mas que bicho é esse? Que ovo é esse? Ele é a essência de Laura Palmer ou um dos milhares de ovos que foram vomitados junto com o ovo de Bob? E a menina que engole o sapo com asas? Ela tem a idade para ser a mãe de Laura Palmer, Sarah, mas porque a essência de Laura teria a forma de um bicho tão estranho?

Depois de todos acontecimentos épicos deste episódio, uma coisa fica clara: tudo que aconteceu em Twin Peaks no final dos anos 80 é o desdobramento de um embate muito maior, que começou no momento em que o ser humano detonou a primeira bomba atômica. É como se o experimento físico tivesse um desdobramento sobrenatural, provocando um impacto metafísico que pode ter aberto fissuras em nossa realidade, dando espaço para a entrada de um novo tipo de maldade, que não conhecíamos até então. Física enquanto satanismo, ocultimo que se mistura com ciência. O assassinato de Laura Palmer não é uma morte aleatória nem apenas mais uma das mortes provocadas por um espírito do mal – e sim o duelo final entre duas forças ocultas em nosso plano material.

Os Woodsmen parecem ser a chave deste processo, mas não temos a menor ideia de quem são essas pessoas, como elas foram criadas, como elas interagem com os seres humanos e a serviço de quem elas estão. E o Agente Cooper parece ter acordado livre da presença nefasta de Bob.

Mas são poucas pistas do que pode vir a acontecer nos próximos dez episódios. A principal delas é a de que o agente Philip Jeffreys – que sabemos, graças a Fire Walk With Me, que ele pode viajar no tempo e no espaço – pode estar por trás de tudo isso, o que pode provocar outro grande momento da série nos próximos episódios: a aparição de David Bowie depois de sua morte. A presença de Jeffreys vem sendo mais que insinuada desde que a série voltou e Lynch filmou a nova temporada durante o período em que Bowie anunciou seu último disco, alguns meses antes de sua morte. Se lembrarmos que Lynch já pode contar, nesta terceira temporada, com a presença além-túmulo de atores da série original que morreram durante a produção desta nova safra de episódios (como as aparições da Log Lady vivida por Catherine Coulson, que morreu em 2015, e do Will “Doc” Hayward vivido por Warren Frost, que morreu no início deste ano) e que o último disco de David Bowie foi sobre sua própria morte, não é de se estranhar que o popstar inglês tenha conseguido uma brecha na agenda do final de sua vida para retornar a um personagem tão emblemático mesmo após sua morte.

E isso é só um detalhe na história toda. Além das questões que vinham sendo sugeridas até o sétimo episódio, o oitavo muda novamente as regras do jogo de uma forma brusca. Depois deste episódio, David Lynch estabeleceu que quaisquer tentativas de tentar prever o que pode acontecer nos próximos capítulos pode ser frustrada num instante. No nono episódio, que chega ao Netflix brasileiro nesta segunda-feira, podemos voltar à narrativa original de Twin Peaks, ao Black Logde, ao plano sobrenatural do oceano roxo, às tentativas do agente Cooper de sair de Doogie – ou podemos ir para um lado completamente novo e improvável da história, que não nos havia sido revelado até então. De novo.

Mais uma vez, Lynch pede para que deixemos o sentido de lado e que apenas curtamos a viagem. É o que importa.

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Homem-Aranha: De Volta para Casa insiste em mostrar que faz parte do cânone da Marvel no cinema e não empolga – escrevi sobre o filme no meu blog no UOL.

Baixe sua expectativa. O novo filme do Homem Aranha – De Volta ao Lar – é um bom filme, mas não é nem o melhor filme de super-herói do ano, nem o melhor filme com um personagem da Marvel do ano (Logan e o segundo Guardiões das Galáxias seguem à frente). Mas ele peca justamente por sustentar-se nesses dois pilares, quando deveria ser algo a mais. Como o próprio personagem era. Ele está longe de ser o filme de John Hughes de Kevin Feige, uma alusão ao espírito juvenil que mistura nostalgia e cinismo de filmes como Curtindo a Vida Adoidado, O Clube dos Cinco ou Gatinhas e Gatões que parecia antecipar esta terceira vinda do herói. Mesmo citando literalmente Ferris Bueller em determinada cena, De Volta ao Lar não é um filme sobre adolescentes ou sobre a adolescência – o que é a essência do personagem Peter Parker.

Em vez disso, o filme prefere escorar-se no Universo Cinematográfico Marvel fazendo parecer que era aquilo que faltava às encarnações anteriores do Aranha. De Volta ao Lar, que é um filme da Sony como as versões anteriores do herói, mas que agora pode usufruir do universo da Marvel, é uma enorme propaganda dos outros filmes do estúdio concorrente, mostrando como o personagem se encaixa naquele novo universo. O vilão surge a partir dos acontecimentos do primeiro Vingadores. Os próprios Vingadores já entraram no inconsciente coletivo das pessoas. E aí aparece o Homem de Ferro. E olhamos pra cima, oh, a torre dos Vingadores. É o Capitão América naquele televisão? Constantemente somos lembrados que aquele filme está dentro do universo da Marvel e que tudo vai se interligando aos poucos, mas são referências tão artificiais que cansam.

Como a relação entre Tony Stark e Peter Parker. Nos quadrinhos, o Homem de Ferro e o Homem Aranha não são propriamente amigos – vivem soltando farpas um no outro quando têm de lutar juntos -, mas o vínculo estabelecido entre os heróis também é bastante forçado – e paternalista. É como se, sem a tecnologia Stark, o Homem Aranha nunca existisse. E embora seu novo uniforme renda boas piadas e situações, ele praticamente extingue o sentido aranha, um dos principais superpoderes de Peter Parker. Em dado momento, parece que a relação entre Stark e Parker é uma metáfora da relação entre a Marvel e a Sony, quando o estúdio bem sucedido entrega parte de seu arsenal para o estúdio que não consegue fazer seus filmes de herói irem tão bem: “Toma, eu deixo você brincar.”

Mas o que diferenciava o Homem Aranha dos heróis tradicionais, quando surgiu há cinquenta anos, é que ele tinha um cotidiano adolescente típico de seus leitores. E essa parecia a grande promessa do novo filme (principalmente porque seu título original – Homecoming – está ligado ao baile de formatura do segundo grau e não a nenhuma volta ao lar). Mas toda a adolescência de Peter Parker é coadjuvante ao fato de que ele quer ser um super-herói, quer lutar contra o crime e fazer o bem. Mais de um terço do filme é dedicado a falar sobre seus colegas de classe, do hilário Ned (Jacob Batalon) à paixonite Liz (Laura Harrier), passando pela ácida Michelle (Zendaya) e pelo mala Flash (Tony Revolori), mas o protagonista mal interage com o grupo, que funciona mais como um acessório para provar que ele tem uma turma na escola do que como uma turma de fato. Em outras palavras, ele nem funciona como um filme de adolescentes dos anos 80 nem como um filme adolescente deste século (Harry Potter, Jogos Vorazes, Divergente), em que os coadjuvantes ajudam a reforçar a personalidade do protagonista.

Não é culpa de Tom Holland. O ator que faz o Homem Aranha faz o seu melhor para parecer um adolescente maravilhado com a possibilidade de ser um herói. É realmente o melhor Homem Aranha do cinema. Mas talvez tenha uma ingenuidade e entusiasmo exagerados, que me lembrou um Mickey em carne e osso ou uma espécie moderna de Tintin, me fazendo sentir falta das piadas, até as ruins, do personagem original. É um personagem bem construído (e graças a deus não precisamos mais assistir à cena da picada da aranha), mas sem humor, sem malícia, sem picardia. Consigo imaginar ele abaixando a cabeça e falando “sim senhor” para um J.J. Jameson num filme futuro.

Mais uma vez: o filme não é ruim. Michael Keaton surpreende como o melhor vilão em um filme da Marvel desde o Loki de Tom Hiddleston, há várias pontas e participações especiais bem vindas (da incrível Tia May de Marisa Tomei às aparições inesperadas de Martin Starr, Hannibal Buress, Gwyneth Paltrow, Donald Glover, Bookem Woodbine ou Chris Evans) e as cenas de ação… funcionam. Elas não forçam a barra nem constrangem, mas não chegam a empolgar. São bem feitas, bem dirigidas e bem previsíveis.

Como todo o filme. Não há grandes surpresas e apenas alguns momentos inspiram sorrisos. De Volta pra Casa expõe os filmes de super-herói como uma enorme propaganda de si próprios e funciona como um prequel indesejado, um trailer longo (demais) para o próximo filme, que, aí sim, veremos o Homem Aranha completo – dizem. Mas vamos esperar até lá? É o que o estúdio espera.

Psicodelia visual

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O episódio mais recente de Twin Peaks levou a série para perto de Júpiter, como nos lembram esses mashups que eu publiquei no meu blog no UOL.

Ainda estamos sentindo os primeiros tremores do espasmo sensorial que foi o oitavo episódio da terceira temporada de Twin Peaks – enquanto alguns tentam decifrar os códigos deixados nas entrelinhas e outros buscam o sentido metafísico em relação ao resto do seriado, muitos deixam-se levar pelo simples aspecto lúdico da exposição ao imaginário sombrio e transcendental de David Lynch e os primeiros filhotes já começam a surgir em forma de paródias, remixes e memes. Um dos melhores até agora é esse incrível mashup entre a deslumbrante cena da primeira bomba atômica ao som de “Echoes”, do Pink Floyd, na versão que o grupo tocou ao vivo em um teatro de arena nas ruínas da cidade de Pompéia, na Itália. Preciso dizer que há spoilers da série para quem não viu o episódio? Tudo bem, está dito:

Não é a primeira vez que “Echoes” se mistura a uma cena imediatamente clássica, deslumbrante e psicodélica. Os fãs do Pink Floyd devem reconhecer essa superposição genial entre a música que ocupa todo o lado B do disco Meddle e o terceiro ato do épico existencial de Stanley Kubrick, 2001 – Uma Odisséia no Espaço.

E é claro que iriam fazer o caminho de volta, recriando a cena do episódio histórico de Twin Peaks com a trilha sonora do clássico da ficção científica de Kubrick, “Réquiem para Soprano, Mezzo-Soprano, Dois Corais Mistos e Orquestra”, do compositor húngaro György Ligeti:

Já foi comentado o grau de parenteso entre as duas cenas e a trilha sonora utilizada por Lynch em sua cena original, a tensa “Threnody to The Victims of Hiroshima” do compositor polonês Krzysztof Penderecki já havia sido usada pelo próprio Kubrick em outro de seus clássicos, o filme de horror psicológico O Iluminado, de 1980. É uma composição de tirar o fôlego:

Ainda estou digerindo o episódio e devo escrever sobre seu significado em relação ao resto da série em breve.

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Com um único episódio de Twin Peaks, David Lynch revoluciona mais uma vez a cultura contemporânea – escrevi sobre esse momento mágico do século 21, sem spoilers, no meu blog no UOL.

O oitavo episódio da terceira temporada de Twin Peaks, que já está disponível no Netflix brasileiro, é um marco tanto da história da arte quanto do entretenimento. David Lynch empurrou o público em uma hora exasperantemente bela em que até a noção de tempo e o fôlego se perdia com o passar das cenas. Se cenas dos episódios anteriores desta temporada, como a da caixa de vidro, a do espaço sideral e a do bar sendo varrido, deixaram todos impressionados com a maestria e a ousadia do diretor em reger nossa expectativa como se fôssemos cobaias em um laboratório, neste novo episódio Lynch mostrou que não está pra brincadeira mesmo. E que ele não é um mestre do cinema, o cinema é só sua ferramenta, seu veículo. David Lynch é um Mestre do Tempo.

Recomendo a qualquer um a atravessar esta hora de explosões e implosões psicológicas e físicas mesmo sem nunca ter assistido nenhum episódio. Mesmo sem ter a menor vontade de saber o que é Twin Peaks. A experiência de assistir ao capítulo chamado “Got a Light?” (“Tem fogo?”, numa tradução informal) é transcendental mesmo que você não entenda o contexto. E nem estou falando do contexto da série – e sim do contexto de um seriado de televisão em 2017. Imaginar que um executivo de uma emissora de TV tenha concordado em bancar este momento solene mexe com a nossa esperança sobre a possibilidade de nossa cultura sair da estagnação repetitiva que vivemos desde que a cultura pop atingiu escala industrial.

As cenas vão sendo apresentadas uma atrás da outra sem a menor cerimônia, sem a mínima preocupação de revelar algo (embora nos dê a nítida sensação de estarmos vendo várias revelações) ou de que alguém as entenda. Lynch entrou numa magistral espiral de luz e som que conquista pela beleza estética ao mesmo tempo em que provoca sentimentos desconfortáveis em diferentes escalas. Perguntas críticas à nova temporada da série (quando Cooper vai voltar a si? De onde veio Dougie? Quem é Richard Horne? Cadê Audrey? O que é aquela caixa? O que está acontecendo na cidade de Twin Peaks?) tornam-se minúsculas comparadas aos questionamentos erguidos nesta exuberante hora de surrealismo abstrato sombrio: Existem outras dimensões? Alguém está nos observando? De onde vem o Mal? Como abrimos a caixa de Pandora da humanidade? O que está acontecendo – em tudo?

O oitavo episódio aprofunda-se em questionamentos artísticos provocados pelo diretor em seus inúmeros filmes incompreensíveis, como Eraserhead, Cidade dos Sonhos, Estrada Perdida, Império dos Sonhos. Se Twin Peaks parecia conversar com a linguagem da TV tradicional, ela agora foi para além do mero entretenimento para as massas. Me refiro à Arte com A maiúsculo, aquela que inspira reflexões sobre nossa própria existência. Em uma hora de televisão – com direito a (microspoiler, vai) cinco minutos de Nine Inch Nails -, Lynch reinventa o medo, a expectativa, o mau agouro, a esperança, a violência, a agressividade, a noção de realidade.

Intercalando cenas coloridas com cenas em preto e branco, este episódio mais recente da série sozinho já é a hora de televisão mais ousada do entretenimento moderno. É uma pintura em movimento que confronta nossa própria noção de ser. Se na primeira vinda de Twin Peaks, Lynch mostrou que a televisão podia ser menos didática, mais complexa e não precisava propriamente agradar para atingir seu público, com “Got a Light?” o diretor norte-americano pode ter aberto um mundo de possibilidades para o entretenimento dos próximos anos – mostrando para os novos autores que, sim, eles podem fazer arte sem necessariamente pensar em público, em audiência e em números. Porque, no fim, é a arte que fica.

E agora ficamos duas semanas sem nenhum novo episódio. Até lá, o que pode acontecer? Que época para se viver!

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O principal articulador da conexão entre o reggae e o punk, o lendário documentarista Don Letts esteve em São Paulo participando do In-Edit Brasil e eu pude conversar com ele para o meu blog no UOL, veja lá.

“Eu não tinha a intenção de registrar, de documentar, de fazer história”, me explica Don Letts em entrevista por telefone logo que chegou ao Brasil. “Eu simplesmente saía filmando, tinha uma necessidade de fazer aquilo”. Aquele ímpeto que ainda motiva o cineasta o colocou no centro do punk rock inglês – e da edição 2017 do festival de documentários de música, o já consagrado In-Edit, que acontece neste e no próximo fim de semana.

“Você sabe que este ano completamos os quarenta anos do punk inglês e fiz esse documentário Two Sevens Clash – Dread Meets Punk Rockers (que está sendo exibido na programação do festival) para reforçar que estávamos vivendo aquela cena, mais do que simplesmente a registrando”, me explica o cineasta, que firmou-se como um dos principais narradores daquela cena transformadora pelo simples fato de ter acesso às ferramentas de registro. Ele me conta que o contato com uma câmera de vídeo, muito menos sofisticada que as poderosas câmeras digitais ou mesmo que os aplicativos de fotos de nossos celulares hoje em dia, foi o suficiente para que ele começasse a filmar tudo que acontecia ao seu redor.

Letts estabeleceu-se para o público em geral a partir de seu documentário The Punk Rock Movie, de 1978, em que consolidava sua amizade com a banda The Clash em um dos registros mais intensos do movimento faça-você-mesmo que abalou as estruturas do rock tradicional e da indústria fonográfica. Foi o punk que abriu o caminho para o mercado independente que hoje espalha-se por todo o planeta, principalmente pela ramificação da internet e que destruiu as fundações de um rock que estava aos poucos se transformando em uma caricatura de sua fagulha revolucionária nas décadas anteriores.

Mas Letts é um dos principais personagens da cena pop inglesa não apenas por seu papel como cineasta e diretor de clipes (dirigiu trabalhos de bandas como Psychedelic Furs, Pretenders, Elvis Costello, Eddy Grant, Black Grape e Gap Band, além do Clash) e documentários. Filho de jamaicanos, ele foi um dos primeiros ingleses a entender o caráter revolucionário da música que vinha da terra de seus pais e aos poucos tomava conta do planeta. E ele foi instrumental ao traçar a inusitada conexão entre o punk e o reggae.

“Deixa eu te contar minha história com Bob Marley. Quando o conheci, em 1975, ele achava toda essa história de rock e de punk rock uma bobagem, coisa de moleques, que não ia dar em nada. Mas eu expliquei a motivação daquelas bandas, que eles não eram ricos de classe média e tinham muito a ver com o que acontecia na Jamaica. Ele prestou atenção e passou a ver as coisas de outra forma”. Pouco depois o Clash gravou o hit jamaicano “Police and Thieves” como se fosse um punk rock e semanas depois Bob Marley lançava um single cujo lado B não apenas se chamava “Punky Reggae Party”, como listava nominalmente bandas como o Clash, o Jam, o Damned e até o Dr. Feelgood, reforçando que “no boring old farts” (nenhum velho chato) estaria lá. Menciono que os 40 anos do punk acontecem junto com os 40 anos de Exodus, o primeiro disco de Bob Marley amplamente político, e ele concorda “não foi por acaso, tudo estava conectado.”

O cineasta Don Letts durante um debate nesta sexta-feira na Galeria Olido (divulgação: In-Edit)

O cineasta Don Letts durante um debate nesta sexta-feira na Galeria Olido (divulgação: In-Edit)

Don Letts é a atração da mostra 40 Anos do Punk, que acontece dentro da nona edição do In-Edit Brasil, não apenas com a exibição de seus filmes mas com conversas com o diretor. Uma delas aconteceu na sexta-feira, na Galeria Olido, e a outra acontece neste sábado, às 18h, na Cinemateca. Nesta oportunidade, Letts conversa com o ex-VJ da MTV Gastão Moreira, ele mesmo autor de um documentário sobre o punk brasileiro, Botinada!, também exibido na mostra. Após o debate, às 19h, haverá a exibição do filme Two Sevens Clash de Don Letts, seguido de uma discotecagem do diretor, que também tem uma carreira musical: após o fim do Clash, foi um dos integrantes da banda Big Audio Dynamite, formada pelo ex-guitarrista do grupo inglês, Mick Jones.

Letts, no entanto, não é otimista em relação à onipresença de câmeras em nossa sociedade digital. Ele diz que as pessoas estão apenas preocupadas em registrar a si mesmas, sem dar contexto ou tentar ampliar sua área de atuação. “Acho importante lembrar que tudo que filmamos e colocamos na internet ocupa um espaço ‘na nuvem’. Então aconselho sempre a pensar se aquilo que você está publicando vale mesmo à pena ser publicado, estar ocupando aquele espaço”, ele me conta, antes de lembrar que há sim novos documentaristas que sabem valorizar o instrumento que têm em mãos. Mas reforça que é preciso ter foco.

A programação do In-Edit Brasil, que começou nesta quarta-feira e vai até o dia 25 de junho, pode ser vista no site oficial do evento.