Encerrando a cobertura que fiz do Rock in Rio para o UOL, segue a lista dos cinco melhores shows do segundo finde do festival, que postei lá meu blog no portal.
Passei os dois últimos fins de semana andando feito um camelo pelo Rock in Rio, submetido a uma maratona de shows uns épicos, outros insuportáveis e mesmo que a exaustão final ainda se abata, é possível lembrar dos grandes momentos do festival. Havia publicado a lista com os cinco melhores shows do fim de semana anterior neste link, abaixo refiro-me aos cinco melhores do fim de semana passado.

1) The Who
O melhor show de todo o festival e uma apresentação que já entrou para a história tanto do festival quanto dos grandes shows internacionais no Brasil. Pagando uma dívida de meio século sem nunca ter vindo ao país, os remanescentes do grupo original – seu vocalista Roger Daltrey e o guitarrista Pete Townshend – mostraram-se em plena forma mesmo com mais de setenta anos de idade.

2) BaianaSystem
O melhor show do Brasil atualmente não se conformou com o espaço reduzido do Palco Sunset e misturou o climão de carnaval de rua ao de festas jamaicanas e show de punk rock, inflamando o público como poucas apresentações durante todo o festival. A presença da MC angolana Titica, flerte que o grupo já acalentava há anos e que o Rock in Rio conseguiu proporcionar, apenas temperou a massa sonora com uma pimenta estética forte, bem ao gosto da conexão Salvador-Luanda.

3) Tears for Fears
Ninguém poderia prever o arrebatamento emocional causado pela dupla formada por Roland Orzabal e Curt Smith, mesmo com a quantidade de hits no repertório. Uma apresentação precisa, cujo timbre cristalino dos vocalistas ajudou o público a lembrar porque eles foram uma das principais bandas pop dos anos 80, fazendo aquilo que os Pet Shop Boys deveriam ter feito no fim de semana anterior.

4) Ceelo Green
Que vocalista, que showman, que carisma! Metade da dupla Gnarls Barkley, Ceelo conquistou o público apenas com sua presença, chacoalhando seu corpo compacto enquanto alcançava vocais agudos que arrebatavam as canções para um nível acima. Com uma banda da pesada, ainda recepcionou a brasileira Iza em dois duetos (entre eles uma canção de Michael Jackson) e a vocalista quase roubou a cena, encantando a todos com sua presença magnética. O melhor ficou para o fim, quando o saxofonista da banda roubou o holofote para tocar a melodia do hit carioca “Deu Onda” pouco antes de cair numa versão arrasa-quarteirão para “September”, do grupo Earth Wind & Fire.

5) Alice Cooper
A idade só faz bem para Alice Cooper e longe de acelerar sua decadência artística, a transforma em trunfo: o vocal mais grave, o rosto mais cheio de rugas e a presença mais ranzinza no palco só ajudam a aumentar a personalidade insana do pai do rock de horror. Os elementos cênicos certamente são metade do show e toda a banda que o acompanha (incluindo aí a sensacional guitarrista Nita Strauss e uma palhinha bem-vinda do aerosmith Joe Perry) também não faz feio, mas todo o show está concentrado no contato visual e vocal do público com Cooper, que rege expectativas e refrãos como um maestro do inferno. Que figura!
Comentei no meu blog no UOL sobre o anúncio que David Lynch fez da versão física da terceira temporada de Twin Peaks, que finalmente passa a ser chamada oficialmente desta forma (e não só Twin Peaks: The Return).
Citando a Log Lady em um tweet, David Lynch anunciou o lançamento da nova temporada de Twin Peaks em DVD e Blu-ray para o final deste ano:
Dear Twitter Friends,
The stars turn and a time presents itself.
December 5, 2017.
Blu-ray and DVD! pic.twitter.com/aTbiKTZSC6— David Lynch (@DAVID_LYNCH) September 14, 2017
“Caros amigos do Twitter
As estrelas mudam e o tempo apresenta-se
5 de dezembro de 2017
Blu-ray e DVD!”
Não há mais novidades sobre o conteúdo dos discos, a não ser a capa que Lynch revelou neste mesmo tweet, que traz o agente Cooper (Kyle MacLachlan, que ator!) dividido em suas duas personalidades na temporada.
Interessante notar que a versão física da série não é mais referida como Twin Peaks: The Return e sim como a terceira temporada da série – o que aumentou a especulação sobre a possibilidade vaga de uma quarta temporada.
Outra notícia paralela é que a Criterion, um dos selos de DVD mais importantes do mundo, anunciou o lançamento em Blu-Ray do filme Fire Walk With Me, lançado no Brasil com o título de Os Últimos Dias de Laura Palmer. O filme foi lançado após o cancelamento da série original e retrata a vida da adolescente antes de seu assassinato, que dá origem à história da série. À época vaiado e considerado por críticos como um dos piores filmes já feitos, Fire Walk With Me ganhou moral com o passar dos anos e hoje é considerado uma das principais obras da filmografia de David Lynch, além de ser central para entender os acontecimentos da terceira temporada da série. Além do filme original, a nova edição traz a série de curtas batizada The Missing Pieces e lançada na primeira versão em DVD do filme, desta vez organizada em ordem pelo próprio David Lynch, entrevistas feitas em 2014 pelo próprio diretor com os atores Sheryl Lee (Laura Palmer), Ray Wise (seu pai) e Grace Zabriskie (sua mãe), trechos da entrevista que o diretor deu ao escritor Chris Rodley para seu livro Lynch on Lynch, de 1997, além da nova masterização de áudio ter sido supervisionada por Lynch. Mais informações no site do selo.
Sem querer, o Rock in Rio retrata uma transformação crucial em dois dos grandes gêneros da música pop – escrevi lá no meu blog no UOL.
O primeiro fim de semana do Rock in Rio 2017 foi dedicado à música pop e é engraçado perceber como esses tempos estranhos ajudam a inverter os polos. Se o pop antes era dócil e confortável, ele vem assumindo um papel subversivo e desafiador que antes cabia ao rock. O rock era a contestação, a negação, o confronto, o embate. O pop era composto por girl groups e boy bands, cantores galãs e musas intactas sorrindo enquanto cantavam a tradição, a família e a propriedade. O rock era a perversão, o underground, o desvario, o circo pegando fogo, o caos. O pop aceitava tudo com “sins” e o rock negava tudo com seus “nãos”. E agora começa o fim de semana do rock, que tornou-se um gênero conservador.
Mas parte da música pop que desfilou no primeiro fim de semana do Rock in Rio dizia “não”. Estava nas letras politizadas de Rael e de Elza Soares, na participação de uma líder indígena brasileira no show de Alicia Keys, no beijo redentor entre Johnny Hooker, Liniker e nos discursos de Roberto Frejat, Samuel Rosa e Evandro Mesquita em seus shows no festival, na presença intrusa da esnobada Anitta através da participação de Pabllo Vitar, nos “fora, Temer” instantâneos e até no constrangedor protesto puxado por Ivete Sangalo e Gisele Bundchen ao som de “Imagine” de John Lennon. Claro que havia um pop que diria “sim” até para uma pedra (Maroon 5, Fergie, 5 Seconds of Summer, Shawn Mendes, Walk the Moon), mas pelas beiradas outros mostraram que o pop deste século lida com outra abordagem.
A música pop vem deixando sua doçura e delicadeza em segundo plano para funcionar a seus compositores e intérpretes como trampolins de personalidade, criando plataformas que podem vender diferentes facetas de um mesmo artista como se fossem souvenirs de museus. A década mágica desta transformação foram os anos 80 e tanto ícones gigantescos como Prince e Madonna quanto heróis anônimos dos primeiros anos da música eletrônica para dançar e do hip hop inverteram a regra do jogo. De repente a música pop começava a ficar mais desafiadora e cheia de si, dando auto-estima e petulância a artistas que pediam licença para entrar. E assim o pop começou a funcionar como uma forma de desafiar o status quo, mirando em temas e discussões que antes eram típicas da mentalidade do rock. Abraçando direitos civis, questões de gênero e sexualidade, minorias e o meio ambiente, este novo pop estabelece os próprios valores, em vez de adequar-se aos existentes.
É o extremo oposto do que vem acontecendo com o rock – e o rock que acontece neste segundo fim de semana do Rock in Rio vem sendo representado pelos headliners Aerosmith, Bon Jovi, Guns’N Roses e Red Hot Chili Peppers. Nomes que já foram sinônimos de confusão e desordem mas que hoje fazem tudo nos conformes, seguindo as regras do showbusiness. São executivos de suas próprias empresas que não querem saber de perder dinheiro. Deixaram todo o senso de periculosidade e de provocação no passado, alimentando uma caricatura de rockstar que pertence ao século passado. É sintomático que sejam nomes que também se estabeleceram nos anos 80, quando o último suspiro de contestação vindo do rock veio das cenas surgidas a partir do punk. Por isso que a inclusão de nomes como Titãs, Tears for Fears, Capital Inicial, Offspring e até Incubus, Fall Out Boy e Jota Quest não desequilibra. O pobre Who é quem mais soa deslocado nesse contexto.
Não que o rock não possa ser contestador atualmente – e o palco Sunset prepara encontros que mexem com essa veia. Nação Zumbi e BaianaSystem podem ser consideradas as principais bandas de rock do Brasil hoje, embora o elemento nordestino faça muitos torcerem o nariz para essa categoria (o que é apenas preconceito, sabemos) – o primeiro grupo toca ao lado de Ney Matogrosso e o segundo da rapper angolana Titica. Um improvável encontro entre Alice Cooper e Arthur Brown pode render mais do que promete e os shows do Kills e do Sepultura têm sua petulância, em diferentes níveis.
Mas no palco Mundo o que se vê é uma seleção conservadora. Grupos que forjaram suas reputações a partir da repetição de fórmulas e clichês que lhes distanciaram do ímpeto inicial de suas carreiras. Tanto Aerosmith quanto Red Hot Chili Peppers são os melhores disso: artistas cuja primeira fase da discografia foi dedicada à vida louca de rockstar, se reinventaram numa segunda fase como uma caricatura do que eram, bandas voltadas para tiozões que se consideram roqueiros. Enquanto o pop se tornou subversivo, o rock se tornou reacionário e conservador.
Como parte da minha cobertura do Rock in Rio para o UOL, escrevi como Grandmaster Flash, Elza e Rael e Pabllo Vitar ajudaram a segunda noite do festival a ter algum gosto próprio.
Valendo! O Rock in Rio 2017 ainda não engrenou, mas o sábado do primeiro fim de semana do festival marcou o início de fato do festival. Desde a lotação total da nova Cidade do Rock a shows mais consistentes e recebidos de forma mais empolgada pelo público, o segundo dia aconteceu como se o anterior fosse uma espécie de rascunho do que o festival poderia ser. Embora ainda desequilibrado, o evento pareceu ver sua redoma de condomínio fechado trincando aos poucos a partir de protestos políticos, participações especiais e hits arrasa-quarteirão.
Nesta última categoria, poucos superaram o Skank, que abriu a programação do palco Mundo enfileirando uma sequência de músicas conhecidas que levou a multidão a um êxtase em crescendo. Aproveitando-se do astral mais família que o da noite anterior (havia muito mais times de pais e filhos curtindo juntos do que na sexta), o grupo mineiro apresentou um resumo bem comercial de suas quase três décadas em atividade e também aproveitou a onda de “Fora, Temer” que aos poucos assola o festival para que o vocalista Samuel Rosa fizesse um discurso indignado contra a classe política brasileira.
Crítica parecida aconteceu em outro bom show do outro palco do festival, quando a Blitz acompanhada de Alice Caymmi e Davi Moraes puxou “Aluga-se”, no primeiro momento “toca Raul” do festival, quando o hit de Raul Seixas surgiu como uma profecia macabra em relação ao atual momento de entrega dos recursos do país ao estrangeiro. Pouco antes da Blitz, o velho buda da bossa nova João Donato havia sido saudado pelo belo canto hipnótico de quatro sereias vocais: Lucy Alves, Emanuelle Araújo, Tiê e Mariana Aydar.
Outro grande momento daquele palco secundário, com uma escalação bem mais interessante do que a do palco principal, foi encontro entre Rael e Elza Soares. Sem a participação da eterna musa, o MC paulistano já havia consagrado ao encontrar a melhor lotação daquele espaço preenchida por uma massa que cantava todos seus sucessos. De forte inclinação romântica, o rapper não se furtou a comentários sobre política em suas letras e os gritos de “Fora, Temer” que aos poucos pipocavam pelo festival encontraram ainda mais eco quando Elza adentrou ao palco impassível em seu trono. Ovacionada pelo público que se aglomerava ainda mais, ela começou sua participação com a sua “A Carne” (“a carne mais barata do mercado é a carne negra”), que Rael emendou citando todos os versos de Mano Brown em “Negro Drama”, hino dos Racionais MCs. O rapper não se intimidou com a presença da veterana e a acompanhou de igual para igual. Elza encerrou sua participação cantando a faixa-título de seu aclamado álbum mais recente, Mulher do Fim do Mundo, que encerrava, raivosa, exigindo: “Até o fim eu vou cantar, me deixem cantar até o fim, eu quero cantar até o fim”. Parceiro de Rael, Emicida foi o convidado do rapper norte-americano Miguel, mas o bom show foi visto por um público bem mais reduzido, já seduzido pelas atrações sem graça do palco Mundo.
Depois do show do Skank, o adolescente Shawn Mendes subiu com seu violão andando nas pegadas do folk pop consagrado por Ed Sheeran. Mas é só vontade: por melhores que sejam as intenções do guri, sua apresentação só convence aos fãs bem mais jovens, embora a multidão que lotava cada vez mais a área principal do festival tivesse lhe dado um voto de confiança.
O mesmo aconteceu com Fergie, que fez um show todas as músicas que poderia cogitar: de músicas menos conhecidas de sua minúscula carreira solo a hits arrasa-quarteirão do grupo que lhe fez fama, o Black Eyed Peas. Mas quando lembrarmos deste show no futuro, o nome de Fergie, se for lembrado, vai ser como escada para Pabllo Vitar, que depois de arrebatar o público numa aparição num estande de patrocinador no dia anterior, voltava com todo o carisma no principal holofote da noite. Quando as frequências dos subgraves da introdução de “Sua Cara” ecoaram no Rock in Rio, o público parecia desacreditar que estava vivendo um sonho. O principal hit da diva drag foi gravado ao lado do grupo norte-americano Major Lazer e da cada vez mais onipresente Anitta, o que fez que a voz da atual rainha do pop brasileiro pudesse encontrar o público do festival. Sem dúvida foi o grande momento daquele palco – e o último sabor de política da noite (principalmente se imaginarmos uma leitura metafórica de uma drag brasileira cantando que vai “rebolar bem na sua cara” no palco principal de um festival que prefere ater-se a atrações internacionais meia boca do que a brasileiros de melhor estirpe).
O Maroon 5 voltou a se apresentar naquele mesmo palco, dessa vez tocando para pessoas que haviam pago para assisti-los, não como estepe de Lady Gaga. Assim, o show ligeiramente melhor que o do dia anterior, o que não quer dizer que tenha sido bom. Melhor sair de fininho em direção à tenda eletrônica, que receberia o principal nome da noite – o DJ Grandmaster Flash. Pai da parte instrumental do hip hop, só o fato de Flash ter inventado a forma moderna de discotecagem, com duas vitrolas e um mixer, tão perene que segue influente três décadas depois, já valeria sua presença em qualquer evento relacionado com música.
E o fato de ser um veterano das pistas faz com que ele domine o público sem a menor dificuldade, submetendo os sobreviventes do final da segunda noite – alguns milhares, bem menos que o público do palco principal – a uma maratona de sucessos tatuados em nosso subconsciente: “Under Pressure” do Queen com David Bowie, “Billie Jean” de Michael Jackson, “Play the Funky Music” do Wild Cherry, “California Love” de Tupac Shakur, “Stayin’ Alive” dos Bee Gees, entre outros clássicos, um superposto sobre o outro, enquanto Flash pedia para o público carioca gritar ou erguer as mãos. Um final sensacional para mais um dia de atrações irregulares, mas que conseguiram tirar o festival da mesmice do dia anterior. O domingo, que finalmente terá gringos de peso (Nile Rodgers, Alicia Keys e Justin Timberlake, especificamente), pode fazer o festival ter seu primeiro grande dia.
Há quatro décadas, o grupo liderado por David Byrne inventava o pós-punk em seu disco de estreia, 77 – escrevi sobre esse disco no meu blog no UOL.
Enquanto o punk inglês ainda borbulhava no underground londrino prestes a estourar a cultura do faça-você-mesmo para todo o planeta, a versão nova-iorquina que inspirara o novo levante musical inglês fechava sutilmente seu primeiro ciclo. Nascida no meio da década de 70, a cena que cresceu ao redor do antigo bar de motoqueiros CBGB’s traçava uma genealogia que tinha suas raízes tanto nas bandas de garagem dos anos 60 quanto na contracorrente musical puxada pelo Velvet Underground dez anos antes e continuada com o surgimento de bandas como os Stooges de Iggy Pop, o MC5 (estas duas bandas da região de Detroit) e os Modern Lovers de Jonathan Richman.
O lugar descoberto pelo Television de Tom Verlaine serviu como palco para bandas desgarradas em Nova York que não gostavam de hard rock, heavy metal, folk rock ou rock progressivo, algumas das principais tendências musicais da época. Nomes como o Patti Smith Group, os Ramones, os Dictators e os Stilettoes (que mais tarde mudariam seu nome para Blondie) buscavam outras fronteiras musicais e misturavam riffs pontiagudos de guitarra, baixos duros e vocais com o dedo na cara do ouvinte com poesia, quadrinhos, pop bubblegum, música de vanguarda, surf music, política, literatura e a arte com A maiúsculo. Aos poucos estabeleciam-se como uma nova cena que aos poucos era reconhecida pelo apelido de “punk” (“podre” ou “sujo”, em inglês), nome de uma revista caseira feita por alguns dos frequentadores do CBGB’s. Tudo era feito por conta própria, embora as gravadoras – que ainda não eram majors como se tornariam na década seguinte – ainda tivessem um vínculo com o que acontecia fora do showbusiness e, aos poucos, cada uma dessas bandas foi lançando seus discos de estreia, a partir de 1975.
A última banda desta safra a conseguir lançar seu primeiro disco era um trio de universitários de Rhode Island que havia se mudado para Nova York depois de tentar fazer música em sua pequena cidade-natal. David Byrne e Chris Frantz, alunos da Rhode Island School of Design, tinham um grupo chamado The Artistics e a namorada de Chris, Tina Weymouth, fazia as vezes de roadie da banda. Os três desistiram da banda e mudaram-se para Nova York, quando Chris convenceu Tina a tocar baixo. Como um trio, fizeram seu primeiro show abrindo para os Ramones ainda em 1975. O novo nome havia sido tirado de um termo técnico usado no meio televisivo para designar programas que eram “só conteúdo, sem ação”. Os Talking Heads – cabeças falantes, como programas de debates ou de entrevistas – poderiam ter começado sua carreira ainda naquele ano, como um trio, quando foram sondados pela gravadora CBS. Gravaram uma série de demos que depois se tornariam um dos principais registros pirata da história da banda, mas que foram declinadas pela gravadora.
No ano seguinte começaram uma relação com a gravadora Sire, que assinou contrato com a banda e bancou seu primeiro disco. Jerry Harrison, ex-integrante dos Modern Lovers, aproximou-se do grupo e assumiu o papel de tecladista da banda. Com esta nova formação gravaram seu primeiro disco, batizado apenas de Talking Heads: 77, lançado exatamente há quarenta anos, no dia 16 de setembro de 2017. O fato de terem sido a última banda da cena punk nova-iorquina a lançar seu próprio disco teve um efeito direto na sonoridade do grupo. À medida em que o impacto sônico das bandas anteriores começava a ser assimilado pela crítica e pelo pequeno público boêmio em Nova York, os Heads foram lapidando seu som, deixando-o mais minimalista e ainda mais direto, ao mesmo tempo em que em vez de atacar o sistema preferiam descrevê-lo, ridicularizá-lo, criticá-lo. Os Talking Heads foram a primeira banda pós-punk do mundo.
Talking Heads: 77 é a essência deste novo som, que iria encontrar pares em outros norte-americanos novatos, como os grupos Devo e Pere Ubu, e, principalmente, na cena inglesa que ressurgiria depois da morte de Sid Vicious e do fim dos Sex Pistols, que incluía nomes como Joy Division, Smiths, U2, Public Image Ltd., Gang of Four, Cure, Killing Joke, Siouxsie & the Banshees, Echo & the Bunnymen, Bauhaus, Slits, entre inúmeros outros. A sonoridade seca e crua dos instrumentos, sua frequência mecânica, sua inclinação política e crítica sem necessariamente ser agressiva, seu vocal quase falado e um groove quadrado. O disco também é o molde para o pentateuco dos Talking Heads, os cinco primeiros lançamento de sua discografia (77, More Songs About Buildings and Food, Fear of Music, Remain in Light e Speaking in Tongues), que forjaram sua sonoridade e reputação.
Visualmente a banda também distanciava-se ao máximo do punk. Ao entender a fauna visual que começava a surgir ao redor do CBGB’s, Byrne e sua banda passaram a se comportar de forma cada vez careta e convencional. Vestiam-se como se estivessem indo para entrevistas de emprego e faziam questão de enfatizar um aspecto entre o ingênuo e o jovial, que contrastava diretamente com as letras de Byrne, ácidas críticas à sociedade moderna em forma de orações à rotina das grandes cidades. Faixas como “New Feeling”, “Don’t Worry About the Government”, “Pulled Up”, “First Week/ Last Week… Carefree” e, claro, o hit “Psycho Killer” colocavam a banda a uma certa distância do punk original, antes mesmo deste ganhar sua faceta ainda mais popular, via Inglaterra. Outras faixas, como “Happy Day”, “Tentative Decisions”, “Who Is It? e “No Compassion” com seus riffs dedilhados e groove sincopado já apontavam para as fronteiras musicais que o grupo descobriria nos anos seguintes, quando passou a desbravar primeiro o Caribe depois a África musical.
Mais do que isso, Talking Heads: 77 é o registro de uma banda em ponto de bala, no exato momento em que ela deveria ter gravado seu primeiro disco. Se seu álbum de estreia fosse lançado no 1975 cogitado pela CBS talvez o grupo tivesse incorporado características – que depois se tornariam clichês – do punk na primeira hora. Parido dois anos depois, o debut dos Talking Heads assiste sua apresentação mais centrada, mais decidida e convicta, o que fez que ela se tornasse uma das grandes bandas daquele período e crescesse sua moral na década seguinte. Moral que permanece intacta, principalmente pelo fato de que eles são uma das únicas bandas – num recorte que inclui nomes pesados como os Beatles, os Sex Pistols e o Velvet Underground – que nunca voltaram a tocar juntos, salvo uma ou outra ocasião. Poderiam voltar a fazer turnês e ganhar rios de dinheiro, mas preferem explorar novos rumos individualmente, uma sabedoria estética assumida ainda nos tempos do punk rock.
Escrevi no meu blog no UOL sobre como o Rock in Rio erra duas vezes ao esnobar Anitta, o maior fenômeno pop brasileiro de 2017.
A notícia do cancelamento do show de Lady Gaga no Rock in Rio, que começa nessa sexta-feira, literalmente na véspera foi o maior balde de água fria que o evento poderia receber. Para os fãs ela veio em dose dupla, que não só não iriam ver sua musa de perto como frustraram-se ao descobrir que o festival a havia trocado por uma nova apresentação do grupo californiano Maroon 5, que tocará no sábado. A distância estética entre as duas atrações é compatível com a dos brasileiros que abrem os shows no palco mundo do dia – foi como trocar um show da Ivete Sangalo por um show do Skank.
Ao mesmo tempo surgiu-se o questionamento sobre Anitta. Principal artista pop brasileira de 2017, Anitta encaixaria-se perfeitamente no recorte estético do público de Lady Gaga e compensaria de alguma forma a ausência da diva dance nova-iorquina. Mas fora toda a questão contratual, logística e financeira, além da correria em acertar agendas, a substituição de Lady Gaga por Anitta nunca aconteceria, mesmo que a brasileira não fosse a principal atração do dia (outra questão que o Rock in Rio precisa superar – assumir um headliner brasileiro ou pelo menos um dia inteiro dedicado à nossa música). Porque o Rock in Rio esnoba Anitta.
E isso é um erro.
Ok, já amadurecemos e saímos daquela fase que deveria ter sido ultrapassada ainda nos anos 90, quando as pessoas reclamavam que “Rock in Rio não tem rock” ao vociferar contra shows de Prince, George Michael, Britney Spears e Justin Timberlake. Desde o início o festival usa o nome do gênero como um atrativo que remete mais à “atitude” do que propriamente à música. A primeira edição, em 1985, teve shows de George Benson, Al Jarreau, Ivan Lins e James Taylor e a presença de brasileiros como Elba Ramalho, Moraes Moreira e Alceu Valença ampliavam os horizontes do festival para longe. E um de seus principais carros-chefe sempre foi a música pop.
E nenhum artista brasileiro é mais pop do que Anitta em 2017. Ela ultrapassou barreiras e mudou completamente a forma como se divulga um trabalho e se molda uma personalidade global, completamente afinada com as transformações do mercado da música digital. Começou o ano emplacando duas colaborações distintas – a primeira (“Loka”) com a dupla Simone & Simaria e a segunda (“Você Partiu Meu Coração”) com Nego do Borel e Wesley Safadão – e em menos de um mês, entre maio e junho, emplacou três hits um atrás do outro: “Switch”, com a rapper australiana Iggy Azalea; “Paradinha”, em espanhol; e “Sua Cara”, ao lado do grupo norte-americano Major Lazer e da drag brasileira Pabllo Vittar. No início deste mês ela lançou seu primeiro single em inglês, “Will I See You”, ao lado do produtor norte-americano Poo Bear.
O único brasileiro a ir tão longe no pop mundial foi Tom Jobim, ao transformar sua “Garota de Ipanema” em um dos maiores hits da história. Mas fora ele e outros luminares da bossa nova (João Gilberto, Marcos Valle, Sérgio Mendes), Anitta já ultrapassou outras histórias de brasileiros que fizeram sucesso no exterior, como o grupo punk Cólera, o Sepultura ou o Cansei de Ser Sexy. E a impressão é que ela está só começando…
Por isso o Rock in Rio erra ao não escalá-la para a edição deste ano. É um descompasso com a realidade da música brasileira, principalmente quando o próprio festival lança uma perspectiva global sobre si. Um show de Anitta no Rock in Rio seria uma vitrine enorme tanto para a artista quanto para o festival, algo parecido com o que poderia ter sido o show de Sandy e Júnior no Rock in Rio de 2001 (mas que ficou parecendo um musical da Globo com pouco orçamento).
A própria Anitta acha que é preconceito, não apenas com ela, mas com o funk, a cena musical de onde ela veio. Por mais que soe internacional nestes últimos singles, sua matriz é a do funk do Rio de Janeiro e ela não só não renega como ostenta, orgulhosa: “Se eu uso as artimanhas do funk pra fazer o meu show mais divertido, não tem como eu dizer que eu não sou do funk. Eu sou, assumo e tenho o maior orgulho, mas acredito sim que eu tô fazendo outros ritmos, não só o funk”, disse em entrevista à Veja São Paulo, concluindo: “Não gosta, não contrata”.
O empresário Roberto Medina, criador do Rock in Rio, foi confrontado com a situação e saiu-se de forma movediça ao ser confrontado com o tema em entrevista ao jornal Folha de São Paulo: “Não tenho afinidade com a música dela, não achei que encaixava, mas ela está indo para um caminho pop que a aproxima mais do Rock in Rio, como a própria Ivete (Sangalo) entrou nesse caminho. Não tenho nada contra, estou conversando com ela. Almocei com ela outro dia e fiquei impressionado. Ela é uma empresária, tem uma visão de marketing.” Mas não sem antes escorregar na saída: “Estou trabalhando uma ideia de fabricar uma favela dentro do próximo festival. Colorida, mais bonita, mais romântica, para ter a música da favela, fazer uma seleção (de artistas) nelas, empolgar o pessoal de lá. Trazer os botequins também”, não sem antes arrematar que “a música da favela está sendo consumida pela elite”.
O ato falho parece indicar que o problema em relação à música de Anitta não é apenas musical – e sim social. Favela colorida e romântica? Isso é um autoengano. Ao isolar seu pop de shopping center num parque temático musical nos confins do Rio de Janeiro, o Rock in Rio finge que a verdadeira música pop brasileira (que inclui não apenas o funk, mas o sertanejo e inúmeros outros gêneros e subgêneros populares) não existe pelo simples fato de não estar dentro de seu condomínio fechado. Essa separação é parente do preconceito que tenta vilanizar um gênero musical com decretos de lei, algo que já vimos acontecer no Brasil há cem anos com ninguém menos que o samba, que hoje é o grande gênero musical popular do país. Sempre que alguém fala que “isso não é música” (seja samba, rock, rap, reggae, funk) pode ter certeza que, sim, é música e, não, o problema não é a música – e sim quem canta e quem dança.
Radiohead, o grupo mais importante do mundo hoje, se une ao trilheiro dos filmes de Christopher Nolan, Hans Zimmer, para fazer a trilha sonora de um especial da BBC – comento sobre isso no meu blog no UOL.
“Bloom”, uma das músicas mais densas do penúltimo disco do grupo inglês Radiohead, King of Limbs, está sendo regravada para o programa Blue Planet II, da emissora britânica BBC, ao lado do alemão Hans Zimmer, um dos principais compositores de trilhas sonoras atualmente. O grupo e o compositor recriam a música ao lado da BBC Concert Orchestra nos estúdios londrinos AIR e a nova versão, rebatizada de “(Ocean) Bloom” será revelada ao público no dia 27 deste mês. É a primeira vez que ambos trabalham juntos.
O vocalista do Radiohead, Thom Yorke, explicou, em comunicado oficial, que a faixa original do Radiohead foi inspirada na primeira versão da série Blue Planet, lançada em 2001, que retrata a vida animal in natura.: “Por isso é ótimo poder fechar o ciclo com a música e imaginá-la para esta incrível e marcante sequência. Hans é um compositor prodigioso que passeia por vários gêneros musicais, então foi libertador para nós trabalharmos com alguém tão talentoso e ver como ele teceu juntos o som da série e a canção”.
“‘Bloom’ parece ter sido escrita antes de seu tempo uma vez que ela reflete lindamente as formas de vida e paisagens marinhas impressionantes, às quais os espectadores são apresentados em Blue Planet II”, completou o compositor alemão, autor de trilhas dos filmes de Christopher Nolan (como a trilogia Batman, Inception e o recente Dunkirk). “Trabalhar com Thom, Jonny e os rapazes tem sido uma diversão maravilhosa e tem me dado uma visão interessante do mundo musical deles”, concluiu.
A série deve ser exibida no Brasil no ano que vem pelo canal Discovery e a versão original de “Bloom” vem abaixo:
Após o controverso final de Twin Peaks, fãs começam a ligar os pontos e achar camadas e camadas de significados ocultos – citei algumas dessas teorias no meu blog no UOL.
A saga de Twin Peaks foi encerrada no fim de semana passado num episódio duplo que pegou a todos de surpresa. O filme de dezoito horas imaginado por David Lynch e Mark Frost chegou ao final deixando fãs impressionados e divididos, ao cogitar um final ainda mais surpreendente do que todo o impacto da temporada, que já tinha garantido seu espaço como o grande feito cultural deste ano. Com a conclusão apresentada nos episódios 17 e 18, a série avança ainda mais em sua ousadia narrativa ao convidar o público para montar o quebra-cabeças a partir das peças oferecidas durante toda a temporada. E em menos de uma semana, inúmeras teorias surgiram explicando como o encerramento enigmático tinha finalmente resolvido toda a trama sobre a morte de Laura Palmer. A partir daqui o texto vem cheio de spoilers, por isso vire os olhos para outro lado se não quiser saber de algo sobre o final da temporada.
Ao contrário do que muitos poderiam prever, o penúltimo episódio da temporada trouxe várias explicações e conclusões para o seriado. Que Naido era, na verdade, Diane num disfarce. Que Judy era, na verdade, uma entidade maligna – e Gordon sempre soube disso. O tão esperado confronto entre o agente Cooper e Mr. C não aconteceu, deixando para Lucy a tarefa de liquidar com o doppelganger de nosso protagonista, numa cena tão inusitada quanto ágil. E, claro, a luva mágica do novato Freddie foi a arma usada para acabar com Bob, o espírito do mal responsável pelo sofrimento e morte da outra protagonista da série, Laura Palmer.
O mais impressionante do episódio, no entanto, foi o encontro entre estes dois personagens principais, separados inevitavelmente por suas condições básicas: o agente Cooper nunca poderia encontrar Laura Palmer pessoalmente pois ele só soube de sua existência – como nós – devido ao fato de ela ter sido morta. Mas eis que a mágica de Twin Peaks transforma o personagem de David Bowie (o agente Philip Jeffreys, agora encarnado em uma espécie de chaleira) em uma espécie de máquina do tempo e leva Cooper para 1989, fazendo com que o agente do FBI encontre a adolescente perturbada minutos antes de seu assassinato, puxando-a pela mão e lhe trazendo de volta para “casa”.
Em mais uma das várias referências que David Lynch faz ao Mágico de Oz, um de seus filmes favoritos, Cooper a retira de sua realidade mundana – espertamente revisitada em preto e branco, a estética escolhida por Lynch para representar o passado no já clássico episódio 8 desta temporada – e a cena se colore, dando uma profundidade à situação que mostra a gravidade dos acontecimentos. Como o próprio Jeffreys havia mencionado ao mostrar o número 8 para Cooper e como todo fã de ficção científica sabe, não dá para mudar o passado sem que necessariamente se afete o futuro. “O passado dita o futuro”, explica Cooper em um dos últimos momentos do penúltimo episódio, na frase que o batiza.
Ao salvar Laura Palmer, Cooper deleta seu cadáver de sua realidade, mudando todo o curso da história. Sem o assassinato de Laura, o próprio Cooper não precisa ir para Twin Peaks, o que torna sua despedida de todos os personagens logo após a destruição de Bob ainda mais dramática. Ele sabia que ao fazer o que estava fazendo necessariamente mudaria seu passado e assim ele esqueceria que um dia teria conhecido todas aquelas pessoas.
Num gesto simples e mágico, o agente do FBI simplesmente apaga todas as temporadas de Twin Peaks da existência – tanto as duas primeiras exibidas há um quarto de século quanto a que estava terminando. A única realidade daquele universo que existiria seria a do filme Os Últimos Dias de Laura Palmer (Fire Walk With Me, que Lynch dirigiu após o cancelamento da série original), que mostra o ponto de vista da garota que seria assassinada. Cooper parece finalmente ter derrotado Judy, que descobrimos naquele mesmo episódio ser uma entidade mais poderosa que Bob, e assim as peças exibidas durante a temporada – a caixa de vidro do primeiro episódio, o monstro que “vomita” o ovo de Bob no oitavo e a possessão de Sarah Palmer, explicada lentamente em outros três capítulos – vão formando o quebra-cabeças. A constatação final acontece com a cena em que a mãe de Laura, Sarah, sai de seu quarto em direção à sala depois de passar alguns segundos gemendo de forma horripilante. Ela entra no cômodo, pega o retrato da filha sorridente, um dos principais ícones representativos da série, atira no chão e passa a agredi-la com garrafadas. É ali que descobrimos que Sarah estava possessa por Judy, que não aceitava que Cooper tivesse mudado o curso da história. O fato da cena em si não evoluir – a imagem fica indo e voltando repetidas vezes, o vidro da garrafa e do porta-retrato sendo estilhaçado e voltando a se recompor num loop que pode ser eterno – mostra que aquele era o final da série e daquela realidade. Sem o assassinato de Laura Palmer, aquela realidade não existiria. Mas Judy estaria disposta a perder tudo de uma forma tão simples?
E é aí que entra o último episódio. O décimo oitavo episódio. O episódio que certamente mais dividiu os fãs de Twin Peaks e que mais encantou os fãs de David Lynch – mais até que o oitavo. E é aí que começam as teorias imaginadas por fãs da série em todo o mundo, cogitando possibilidades para explicar o que acontece a partir do momento em que Cooper salva Laura.
A principal delas – e que ganha mais adeptos e mais pistas para justificar sua existência – é a de que Cooper e Diane foram para uma outra realidade para aprisionar Judy nela. Sendo uma força tão maligna, ela só seria contida com a destruição de todo o universo em que ela habitava. E é isso que Diane e Cooper fazem ao mudarem de realidade segundo as pistas dadas pelo Gigante logo no início da temporada – depois de quatrocentas e trinta milhas, eles cruzam de uma realidade para outra e se transformam em Richard e Linda. A incômoda cena de sexo entre os dois faz parte deste ritual de mudança de realidade e quando Cooper – ou Richard? – se descobre sozinho em um quarto de um outro motel, ele sabe exatamente o que fazer. Descobre o paradeiro de Laura Palmer nesta nova realidade – Carrie Page é seu novo nome – depois de passar por um café chamado Judy’s e a leva de volta para Twin Peaks. Ao confrontá-la com seu antigo endereço e não tirar nenhum tipo de reação, na última cena, o agente do FBI parece hesitante, como se perdesse o equilíbrio e o rumo de tudo que estava fazendo. Pergunta então a questão que ecoará para sempre nas cabeças dos fãs da série: “Que ano é esse?”
Logo em seguida, ouvimos a voz da mãe de Laura chamar seu nome exatamente como no primeiro episódio da série, o que faz que ela reconheça e lembre-se de tudo, dando o grito que também já é um clássico para a série. Vemos então a casa dos Palmer, que fica sem energia e a luz acaba, deixando a tela em preto por uns bons segundos (como outro final controverso de outra série clássica, que não vou mencionar o nome aqui para não estragar a diversão de quem não sabe do que estou falando). Segundo esta mesma teoria que menciona a possibilidade de aprisionar Judy em uma realidade alternativa para depois destruí-la, as luzes se apagando na casa dos Palmer são a prova que Judy foi derrotada e que aquela nova realidade parou de existir. Laura e Cooper voltariam então para o Black Lodge não mais como pessoas e sim como entidades – e a cena final, dos créditos, é quando Laura explica para Cooper o plano (que é do dele mesmo, de Gordon Cole, Major Briggs e Philip Jeffreys – com a ajuda do Gigante) para deter Judy – um plano kamikaze em que os dois se sacrificariam para conter aquela presença maligna.
De carona nesta mesma teoria, outra cogita a possibilidade dos dois últimos episódios serem espelhos um do outro, sendo feitos para serem assistidos simultaneamente. A principal pista para essa sincronização seria a imagem do rosto de Cooper superposta sobre quase toda a cena após a batalha final do episódio 17, quando ele diz com a voz distorcida que “vivemos dentro de um sonho”. A sincronia inclusive justificaria o ritmo de cada episódio – enquanto o 17 (que seria o final pensado por Mark Frost) é cheio de situações, de reviravoltas e de explicações, o 18 (que seria o final pensado por David Lynch) é lento, sem diálogos e quase sem texto, com pouca ação e muita dúvida no ar. É claro que esse tipo de sincronia é sempre suscetível à aceitação do espectador – e talvez aí esteja o recado dado aos espectadores da série. É claro que alguém já sincronizou os dois episódios e os colocou juntos como um só online (“duas aves com uma só pedra” então não significaria apenas o fim de Bob e Judy com uma só tacada como os dois episódios sendo vistos como um só):
Uma outra teoria ainda diz que a realidade paralela visitada por Cooper e Diane no episódio 18 é, na verdade, a nossa realidade (confirmado por uma série de detalhes – desde a população da cidade de Odessa ao fato de que a dona da casa dos Palmer ser vivida pela própria moradora da casa atualmente). Isso conversaria com o sonho de Gordon Cole com Monica Belucci, em que ele (vivido pelo próprio David Lynch) é confrontado com a pergunta sobre quem é o sonhador do sonho em que vivemos, pouco antes de ele olhar para trás e quebrar a quarta parede, olhando para o espectador!
Mas quem é o sonhador? Esta versão diz que somos nós mesmos, que sonhamos com Twin Peaks: o episódio 17 seria o final de sonho, com tudo do jeito que a gente imaginava (o final do confronto entre Freddie e Bob parece um desenho do Scooby-Doo) e o episódio 18 seria o pesadelo, enigmático, hermético, sem respostas. Outra versão diz que o sonhador é Laura, que teria sonhado todas as três temporadas da série, acordando com a voz de sua mãe no primeiro e no último episódio. Outra versão diz que o sonhador é Cooper, preso até hoje no Black Lodge e imaginando como seria voltar e colocar as coisas em ordem (daí a cena final seria Laura Palmer sussurrando ao seu ouvido que “é tudo um sonho”).
Há ainda os que leram a terceira temporada da série como a despedida cinematográfica de Lynch, aproximando seu maior momento de popularidade com sua filmografia, nada popular. Assim, o discurso final de Cooper poderia ser entendido como o adeus de Lynch a todos seus fãs, tanto os de seus filmes como o de Twin Peaks.
Inúmeras outras versões circulam online (a maioria delas enraizada no subdiretório da rede social Reddit dedicado ao tema), cada uma delas pegando pontas soltas e pistas aleatórias que surgiram nos dezoito episódios da temporada, nas duas primeiras temporadas e no filme Fire Walk With Me. Da mesma forma tantos outros brigam sobre a quantidade de histórias deixadas em aberto, especificamente a de Audrey, bem como o fato de que a temporada não avança muito na história e acrescenta uma série de personagens que são irrelevantes para o desfecho final. Mas alguém consegue imaginar Twin Peaks: O Retorno sem os irmãos Mitchum? Sem os diálogos berrados de Cole? Sem Dougie Jones? Sem Janey-E? Sem Chad e Red? Sem Hutch e Chantall? Sem o ataque na caixa de vidro, a senhorita Dido, as discussões de Audrey com Charlie, a tulpa de Diane, os diálogos sem pé nem cabeça e os shows do Roadhouse? Sem a trama envolvendo as investigações sobrenaturais de Bill Hastings? Sem os Woodsmen, a bomba atômica, o andar de cima da loja de conveniência ou o besouro-sapo?
Nem tudo na vida é explicado. Muitas de nossas dúvidas existenciais são sanadas simplesmente pelo fato de serem esquecidas. Pessoas vêm e vão em nossas vidas e é a sensação que sentimos ao atravessá-las é o que realmente importa. Uma das teorias mais legais sobre o final de Twin Peaks diz respeito ao nome original de Judy, que pode ser entendido como “jiāo dài”. O termo (交代 em mandarim) quer dizer “explicar”, “conceder”, “ilustrar”. Ao cogitar a possibilidade de que a explicação seja uma “força extremamente negativa”, Lynch e Frost optam pelo mistério como o sentido da vida, deixando-o no ar para que o nome de sua maior obra atravesse o tempo, em vez de ser consumida rapidamente numa simples reviravolta definitiva. Um final em aberto, raro no mercado de entretenimento atual, mas não raro nas melhores produções de TV recente (The Wire, Sopranos, as primeiras temporadas de True Detective e Westworld e Lost), uma lista que parece ser encabeçada por esta última temporada de Twin Peaks, a melhor série deste século.
Os dois últimos episódios de Twin Peaks encerram a série da forma mais surpreendente e inusitada possível – falei sobre isso no meu blog no UOL.
Que viagem. Que sonho. Que pesadelo. Os dois episódios que encerraram a terceira temporada de Twin Peaks mantiveram o nível que David Lynch e Mark Frost estabeleceram durante toda a narrativa deste ano. Tão assustador quanto brilhante, foram dois capítulos que trouxeram o que muitos fãs esperavam e que ao mesmo tempo tirou o chão de todo mundo que achava que tinha alguma ideia para onde a série estava rumando. Se você não assistiu aos dois episódios, hora de virar os olhos para cima, porque lá baixo virão os spoilers.
O season finale foi dividido didaticamente em duas partes. Na primeira, o episódio 17 batizado de “O passado dita o futuro”, inúmeras respostas vieram à tona, em um episódio cheio de revelações e surpresas como o anterior, feito para os fãs aplaudir entusiasmados a reencontros, reviravoltas e vitórias. Descobrimos quem é Judy (“uma força extremamente negativa”, explica Gordon Cole) e quem é Naido (Diane, vejam só), personagens secundários como Chad e Freddie tiveram seus momentos, Mr. C e Bob parecem ter encontrado seus destinos finais. Reencontramos o Gigante e o major Briggs no cinema que ainda não sabemos se é o white lodge. Vemos a grande cena redentora do fim de Bob, uma luta que só pode ser assistida – pois ao ser descrita revela-se ridícula.
Ao mesmo tempo, o agente Cooper e a equipe do FBI finalmente chegam a Twin Peaks – em grande estilo – e Cooper pode visitar o andar de cima da loja de conveniência, onde ele pode se reencontrar com Philip Jeffreys, que lhe permitiu assistir a eventos que aconteceram antes do início da primeira temporada. Uma estranha sensação, no entanto, atravessa todo esse decorrer dos fatos quando David Lynch superpõe um close extremo do rosto preocupado do agente Cooper sobre as cenas que acontecem na delegacia. É mais uma referência que Lynch faz ao final de 2001 (o rosto do astronauta encarando o espectador de frente enquanto assistimos a uma transformação completa da realidade. Será que Cooper é o sonhador? Um observador externo da própria vida? Parece um estranho presságio do que irá acontecer em seguida.
De volta a 1989, Cooper assiste ao encontro dos jovens Laura e James poucas horas antes do assassinato da primeira em uma cena em preto e branco, conseguindo resgatar Laura de seu destino final ao puxar-lhe pela mão através da floresta – e a cena passa a ganhar cores. “Onde vamos?”, pergunta Laura a Cooper, que responde que eles estão indo para casa. Esse gesto faz o cadáver de Laura envolto em plástico desaparecer da história e voltamos para o início da primeira temporada, quando o personagem Pete Martell (vivido pelo falecido Jack Nance) avisa à esposa que irá sair para pescar – e, ao contrário do que sabemos, ele não acha mais o corpo de Laura. Pouco antes do fim do episódio, a estranhos gemidos na casa dos Palmer pouco antes de vermos uma raivosa versão de Sarah, a mãe de Laura, sucumbir à loucura e a atacar violentamente o retrato da filha com uma garrafa, aos berros.
Na floresta, Cooper conduz Laura pela mão no escuro até ouvir o estranho ruído que saía do gramofone do Gigante na primeira cena da temporada e perceber que ela sumiu, não sem antes ouvir o mesmo grito assustador que ela deu ao desaparecer do black lodge no início do primeiro episódio. A cena da floresta se desfaz com a imagem do Roadhouse, onde encontramos Julee Cruise vinte e cinco anos mais velha cantando a mesma “The World Spins” que ela cantou no episódio 14 da primeira safra de episódios da série, quando o Gigante anunciava que estava acontecendo de novo. Assim termina o décimo sétimo episódio e confortavelmente satisfeitos com as revelações e as respostas que soubemos, nos preparamos para a última hora do seriado, onde provavelmente veríamos as últimas respostas surgir.
https://www.youtube.com/watch?v=8bAIjzeymyU&feature=emb_title
Mas em vez disso, o episódio chamado “Qual Seu Nome?” zera todas as expectativas. O único momento confortável é o reencontro de um novo Dougie Jones com sua família em Las Vegas, a única conclusão apresentada em todo o episódio. Logo em seguida, Mike entra mais uma vez em cena para perguntar se estamos vivendo o passado ou o futuro, antes do galho seco que atende por Braço perguntar sobre a história da garotinha que vive na alameda de baixo. Mais uma vez Laura reaparece no black lodge apenas para sussurrar algo assustador no ouvido de Cooper e desaparecer aos gritos mais uma vez. Cooper reencontra o pai de Laura, Leland, que fala para ele procurar por sua filha e ele sai das cortinas vermelhas direto para a floresta, onde encontra Diane.
Pelo resto do capítulo, assistimos Cooper e a renascida Diane – de cabelos vermelhos e unhas pintadas de preto e branco, como o black lodge – atravessar de carro uma zona sem volta, 430 milhas de distância de Twin Peaks (“Quatro. Três. Zero” era uma das dicas que o Gigante deu no início da temporada). O próprio carro que Cooper dirige é um carro antigo e a cena parece saída de um filme de Hitchcock, de tão correta. Eles cruzam a tal zona e o dia vira noite. Logo depois, param num hotel de beira de estrada onde vão se hospedar, não sem antes Diane ver a si mesma à distância. No quarto, eles transam ao som da mesma “My Prayer” que tocava no rádio quando os Woodsman atacaram o Novo México no episódio 8, numa cena de sexo com ares macabros. No dia seguinte, Cooper acorda sozinho no quarto de hotel apenas para encontrar uma carta de uma certa Linda endereçada a um certo Richard. Os mesmos personagens citados pelo Gigante no início da temporada.
A essa altura, todos os espectadores já estão coçando a cabeça sem saber para onde o seriado vai. Sozinho, Cooper sai do hotel e o hotel é um outro hotel. Entra no carro e seu carro é outro carro. Sem reconhecer onde está, para em um café na beira de estrada chamado Judy’s e depois de ver três caubóis importunarem uma garçonete, ele dá um jeito nos três, põe suas armas no óleo de batatas fritas, se identifica como agente do FBI e pede para a garçonete o endereço da outra funcionária do local, que não está lá. “O que diabos acabou de acontecer?”, pergunta-se um dos caubóis ao se levantar do chão.
E nós perguntamos o mesmo. Cooper vai para o endereço e encontra-se com Laura Palmer, envelhecida. Mas ela não é Laura Palmer e sim Carrie Page, não sabe quem é Laura Palmer, seus pais não se chamam Leland e Sarah e há um cadáver em sua casa. Quando Cooper pergunta se ela não quer ir para Twin Peaks, em Washington (que ela acha que é a capital norte-americana), ela topa no mesmo instante. Os dois vão de carro para a cidade fictícia do noroeste dos EUA, chegam à casa em que Laura Palmer morava e nenhum Palmer mora lá. Perturbado como todos os espectadores, Cooper vai em direção ao carro, até que para e se pergunta:
– Que ano é esse?
Carrie olha fixamente para a casa e ouve o nome “Laura” ser chamado à distância. Ela começa a tremer e dá o mesmo grito característico de seu desaparecimento. Cooper assusta-se. As luzes da casa se apagam. A tela se apaga. Fica tudo preto, apenas com o som do grito de Laura se espalhando no ar. Meio minuto de tela escura e nos encontramos novamente com o rosto assustado do agente Cooper no black lodge, ouvindo algo sussurrado por Laura. Uma imagem estática – e assim sobem os créditos finais.
O que aconteceu? Em que ano estamos? A história de Laura desapareceu? Isso muda alguma coisa? Quem gritou “Laura”? E o que aconteceu com Diane? E a história de Audrey? E Tina, e Billy, e Charlie, e Linda? Bob morreu? Fomos para uma realidade paralela?
Depois de um episódio didático e feito para os fãs (o terceiro de uma série), Lynch e Frost terminam seu seriado apagando a luz, deixando o mistério no ar e, talvez, suas pistas espalhadas pela temporada. Um final imprevisível, violento, assustador, surreal e brilhante, como toda a história de Twin Peaks.
Se é que é um final.
Escrevi lá no meu blog no UOL como, mesmo antes do final da nova temporada de Twin Peaks, a série de David Lynch e Mark Frost se consagrou como um ícone cultural de 2017.
Mesmo antes de serem exibidas na virada deste domingo para a segunda-feira, as duas últimas partes de Twin Peaks: O Retorno, a terceira temporada do seriado idealizado e produzido por David Lynch e Mark Frost, já fazem deste último episódio um marco histórico. É o fim de uma aventura radical de pop experimental que os dois conseguiram que fosse bancada por uma emissora de TV, desafiando todos os clichês de sua volta (incluindo sua base de fãs mais ferrenha) para contar uma história que não parece fazer sentido e tentando reunir e explicar todas as dúvidas abertas (abrindo outras tantas). Como a vida, parecem sublinhar seus autores.
O fato é que a volta de Twin Peaks mostrou que a dupla forjada há mais de 25 anos pode executar o final de uma história interrompida pela metade com uma maestria ímpar na história da arte e do entretenimento moderno. Enquanto Mark Frost costurava pontas soltas no roteiro nas duas primeiras temporadas e no filme Os Últimos Dias de Laura Palmer e abria outras possibilidades ao criar novos personagens, locações e situações, David Lynch expandia seu subconsciente criando imagens e cenas inacreditáveis, bizarras e antológicas. Entre o normal e o surreal, a dupla repete o feito que há um quarto de século moldou a televisão como a conhecemos hoje atualizando uma série de paradigmas cutucados décadas atrás: a regência de expectativas, a condução do zeitgeist, um retrato atual dos EUA, conceitos como paranoia, conspiração e sobrenatural, a estética para a cultura de seu tempo e as fronteiras entre o cinema, a televisão e outras formas de experimentação audiovisual.
David Lynch e Mark Frost cobraram caro dos fãs que queriam apenas o revival. Todos esperavam o momento em que o agente Cooper voltasse a tomar seu café com suas assertivas improváveis mas sensatas sobre o que deveria ser feito. Em vez disso, assistimos a Kyle MacLachlan desdobrar seu personagem mais clássico em personalidades múltiplas, prendendo-se a dois extremos em atuações magníficas: uma versão maligna e sobrehumana batizada de Mr. C e uma versão infantilizada e tenra chamada de Dougie Jones. O pulso entre essas duas personalidades deu o tom sobre toda a série e fez os fãs de ocasião abandonarem o seriado enquanto os espectadores restantes teimavam em se perguntar, entre maravilhados e surpresos, o que diabos estava acontecendo.
E, como disse o gigante ao agente Cooper na segunda temporada, está acontecendo de novo. Twin Peaks está prestes a encerrar sua viagem de forma épica e gloriosa, correndo o risco de responder à maioria de suas questões e revolucionando mais uma vez a televisão para, quem sabe, dar brecha para uma quarta temporada. A partir daqui o texto contém spoilers para quem não assistiu até o décimo sexto episódio da terceira safra da série, disponível no Netflix brasileiro.
“Passado ou futuro?”, nos pergunta Mike, a entidade de um braço só que foi instrumental em retirar o agente Cooper de seu exílio sobrenatural nos últimos 25 anos no segundo episódio deste ano. Talvez essa seja a principal chave para toda a terceira temporada – estamos assistindo a cenas que aconteceram em ordem diferente das que elas aparecem na tela. A ordem cronológica dos acontecimentos está embaralhada para quem assiste à série capítulo por capítulo, reforçando a ideia de seus criadores de que estamos assistindo a um filme de dezoito horas – e não a uma novela explicada em uma narrativa linear.
Uma das primeiras cenas da nova temporada, quando Cooper se reencontra com o Gigante que vem servindo de guia para sua intuição desde sua primeira ida a Twin Peaks, dá a entender que estamos frente a uma série de dicas que deveriam ser decifradas nos capítulos seguintes: “Ouça os sons. Algumas coisas não podem ser ditas em voz alta. Lembre-se: Quatro, três, zero. Richard e Linda. Dois pássaros com uma pedra.” Cooper apenas responde que entende. Os fãs passaram horas tentando descobrir quem eram aqueles dois (Richard já apareceu e desapareceu, mas nada da Linda), caçando números entre horas e relação entre outros que apareciam ou eram ditos na tela, prestando atenção em sons que saíam das paredes e de tomadas elétricas e tentando adivinhar quais eram as duas aves mortas com uma só pedrada.
https://www.youtube.com/watch?v=-G-x_jfddis&feature=emb_title
Mas nada garante que essa cena seja a primeira cena da série. E a realização sobre essa possibilidade veio aparecendo à medida em que a cronologia passava a ser montada como um quebra-cabeças a partir de datas em fichas policiais, calendários de eventos fantásticos, mensagens de SMS e interrelação entre cenas distantes. Em vez de recomeçar Twin Peaks na pequena cidadezinha fictícia no estado norte-americano de Washington, Frost e Lynch preferiram espalhar sua história por todos os EUA: um portal interdimensional em uma caixa de vidro sob vigília mantida por um bilionário em Nova York, um cassino em Las Vegas, um assassinato em outra cidadezinha fictícia, Buckhorn, no estado de Dakota do Sul, uma bomba atômica que explodiu no Novo México, em autoestradas e ruas escuras que cruzam o país e até Paris, num sonho.
A própria Twin Peaks foi sendo revisitada esporadicamente, nos apresentando velhos personagens aos poucos, enquanto citava outros novos sem mostrar seus rostos. Enquanto uns reapareciam em novos formatos (o anão Homem do Outro Lado foi substituído por um galho de árvore com um pedaço de carne no topo, o agente Philip Jeffreys vivido por David Bowie reapareceu como uma chaleira gigante), outros levavam horas para aparecer – especificamente a Audrey vivida por Sherilyn Fenn -, uns vieram do além-túmulo (como o Dr. Will Hayward vivido por Warren Frost, a Log Lady vivida por Catherine Coulson, o agente Albert vivido por Miguel Ferrer, que morreram após suas participações na série), outros em flashbacks (como o próprio Bowie, o Bob de Frank Silva e o major Garland Briggs vivido por Don S. Davis) e ainda há os que não apareceram ainda, como o agente Chester Desmond (vivido pelo cantor Chris Isaak) e o xerife Truman (vivido pelo ator Michael Ontkean).
Este quebra-cabeças foi sendo montado à medida em que os agentes do FBI liderados por Gordon Cole (vivido pelo próprio David Lynch, em uma atuação soberba) foram descobrindo que as pistas do assassinato em Buckhorn e a reaparição do agente Cooper em uma prisão federal aos poucos os levava para Twin Peaks. Ao mesmo tempo, assistíamos à lenta – e dolorosa, para alguns fãs – recuperação da personalidade do Cooper original de dentro do corpo de Dougie Jones e sua conexão com os ótimos irmãos Mitchum (dois gângsters vividos por Jim Belushi e Robert Knepper) e à polícia de Twin Peaks descobrindo que fatos surpreendentes aconteceriam nos dias primeiro e dois de outubro.
Além do estranho dia-a-dia na própria Twin Peaks, incluindo aí as aparições no Roadhouse, que, ao que tudo indica, transformou-se em um lugar sobrenatural. A casa de shows, que foi cenário para apresentações de artistas nada fictícios como Au Revoir Simone, Sharon Van Etten, Nine Inch Nails, Moby (como figurante em uma banda), Chromatics, Eddie Vedder e Hudson Mohawke e de conversas sobre personagens que nunca apareceram na tela durante toda a temporada, subitamente virou uma espécie de alucinação da personagem Audrey no último segundo do episódio mais recente.
Há inúmeras questões em aberto: O que é o som que o Gigante pede para Cooper ouvir no gramofone? O que Laura Palmer disse no ouvido do agente Cooper? Onde está a verdadeira Diane? Quem é Tina? Onde está Audrey? Bob saiu do corpo do Agente Cooper? O que fez Hawk na entrada do Black Lodge? Por que Sarah Palmer assiste àqueles programas na TV? E que tantas referências são essas a histórias infantis? Mais alguém é uma tulpa? O que Lucy viu na visão de Andy? Quem é a viciada que mora perto da casa de Dougie? Que barulho é aquele no Grand Nothern? Quem é Billy? O que é aquele símbolo estranho? O que são os Woodsman? Quem é Linda? Quem é o marido de Beverly? Como Gordon viu Laura Palmer? Por que Albert fala cada vez menos? E aquela caixa na Argentina que recebe mensagens? Quem é Judy? O que Gordon ouve no limpador de janelas? E aquela menina zumbi? E aquele sapo com asas de besouro? E aqueles números nos postes? Por que o Gigante chama-se Bombeiro? Gordon Cole está percebendo vibrações de outras dimensões? Qual a diferença de um doppelganger de uma tulpa? Quem vai tomar um soco de Freddie? Como Laura Palmer desapareceu? Quem é Naido? “Quando você chegar lá você já vai ter chegado lá”? E a alma da criança voando? Quem é Charlie? E aquele truque que Red fez com a moeda? Há alguma relação entre a luta de boxe que Sarah assiste com o passado de Bushnell? O que vai acontecer com Chad? O que acontecerá com Janey-E e Sonny Jim? Quem ressuscitou o Bad Cooper? Como o Bad Cooper mexeu no sistema de eletricidade da cadeia? Quem é a Senhorita Dido? Sarah Palmer está possuida pela Mãe? Onde está Jerry? Quem será a última banda a tocar no Roadhouse? Quem é o sonhador?
https://www.youtube.com/watch?v=n35Zzum0h6Q&feature=emb_title
Enquanto isso, Lynch e Frost aproveitavam para fazer um retrato dos EUA em 2017 como poucos ousaram fazer – ainda mais nesta era Trump. Um bom exemplo é a cena em que o policial Bobby Briggs (Dana Ashbrook) vai à rua após o início de um tiroteio e choca-se ao perceber que era uma criança com uma arma na mão, vestindo roupas camufladas e com a mesma cara de tédio – e não de susto ou de aborrecimento, como deveríamos esperar – do pai. Atrás do carro que causou o incidente, uma senhora buzina e briga agressivamente para o carro da frente, apenas para assistirmos uma criança babando vômito erguer-se lenta como uma morta-viva no banco do carona. É uma cena aparentemente aleatória, mas denuncia uma sociedade doente em vários níveis. Outras cenas do tipo assistem aos irmãos Mitchum reclamando do estresse de uma vizinhança após outro tiroteio (uma homenagem quase literal a Quentin Tarantino, enquanto eles mesmos estão ironicamente com armas na mão), Janey-E (vivida magistralmente por Naomi Watts) passando um sabão em dois matadores de aluguel, Norma (vivida por Peggy Lipton) desistindo de ganhar “muito dinheiro” ao não transformar seu restaurante em uma franquia e aceitar seu grande amor – Twin Peaks vai diagnosticando os problemas norte-americanos como se contasse histórias curiosas sobre a decadência de uma sociedade.
Para quem não assiste à série, a impressão é que tudo é uma bagunça e que nada será respondido – mas o ponto é justamente o oposto. Eram muitas outras perguntas e parte delas foi sendo respondida à medida em que a série caminhava. Mais do que isso: depois de negar todas as referências à Twin Peaks original, seus criadores aos poucos foram entregando o ouro para os fãs mais persistentes, mostrando exatamente o que os fãs queriam assistir em um remake mas de forma menos óbvia e trivial. O episódio 16, exibido na semana passada, foi repleto destes momentos, culminando com o grandioso renascimento do Agente Cooper. Isso sem contar o revolucionário episódio 8, que parecia completamente alheio à história mas que funcionou como um mapa para entender o panorama geral da série.
Tudo indica que é isso que irá acontecer nos dois últimos episódios, que serão exibidos no fim deste domingo nos EUA e que em pouco tempo estará no Netflix brasileiro. Pouquíssimo se sabe sobre estes dois momentos e a principal dica é que cada um destes episódios tem um título (o 17 chama-se “O Passado Dita o Futuro” e o 18 chama-se “Qual Seu Nome?”), o que acaba com a expectativa sobre um longo episódio de duas horas, como se fosse um filme. Meus palpites? Linda é irmã-gêmea de Richard, Judy é o major Briggs, há uma relação entre Diane e Naido, Audrey é a sonhadora e dois grandes acontecimentos devem acontecer no Jack Rabbit’s Palace e na cadeia da delegacia de Twin Peaks, além de algo me dizer que só assim entenderemos a cena de abertura. Mas isso tudo é irrelevante. Mesmo com o fim da temporada, ao descobrirmos quais quais perguntas foram realmente respondidas e quais eram irrelevantes, a importância do seriado não precisa ser provada.
Em menos de dezoito episódios Twin Peaks fugiu de clichês, provocou intelectualmente seus espectadores, dissecou a própria mitologia e nos apresentou novos ícones, arriscou-se sempre que possível e sempre abrindo mão de recursos cosméticos como efeitos especiais, maquiagem ou trilha sonora didática, que funcionam hoje como carro-chefe comercial para a maioria das produções audiovisuais, para manter seu foco no texto, nas cenas, na direção, no roteiro e na atuação. Lynch e Frost deram as costas para o óbvio e puxaram o telespectador para um salto estético e narrativo que já serve como referência para criações futuras. Mesmo sem atingir altos índices de audiência, a terceira temporada de Twin Peaks é um dos produtos de entretenimento mais bem sucedidos deste ano e um desafio artístico incomensurável, além de ser o melhor seriado deste século mesmo sem ter terminado ainda. E será que ele termina? Afinal esta talvez seja a grande questão deste season finale: teremos uma quarta temporada?
Torço que sim, pois o melhor de tudo é a viagem, não o destino. Como disse no início, entender é o de menos.





























