Jornalismo

Essa semana estréia Watchmen e aproveitei o gancho do filme para falarmos de narrativa transmídia…

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Quando uma história é apenas o começo…

Com a cultura digital, surge uma nova modalidade de ficção: a ‘narrativa transmídia’

A carinha sorridente amarela respingada com uma gota de sangue é só o ponto de partida. A partir dela, descortina-se não só um universo de super-heróis decadentes e de superpoderes usados como armas militares, como uma série de pequenas histórias paralelas que acontecem independente umas das outras e em formatos diferentes. Juntas, todas essas narrativas contam uma história complexa e multifacetada, que dificilmente teria o mesmo impacto caso contada de forma linear.

Watchmen, a clássica série em quadrinhos cuja aguardada adaptação finalmente chega aos cinemas na próxima sexta-feira, é um dos muitos exemplos de um novo tipo de ficção – a narrativa transmídia. Nem tudo na história original de Alan Moore e Dave Gibbons era contado em forma de quadrinhos – cada episódio terminava com páginas que poderiam trazer um capítulo de um livro fictício, o prontuário médico de um dos personagens, recortes de páginas de jornal.

Mas com a internet e a digitalização das mídias, essa narrativa que acontece em diferentes plataformas aos poucos vem deixando nichos e tomando conta do mercado de entretenimento. Sites, celulares, redes sociais, games, aplicativos e blogs – peças-chave da cultura digital – são hoje responsáveis por expandir universos criados em livros, filmes, histórias em quadrinhos e programas de TV. Mas eles vão além de simplesmente levar uma grife de entretenimento para outras plataformas. Interligando-se com o produto principal, eles criam tramas paralelas e ações fora da internet que expandem ainda mais a história central. Assim, cria-se um novo vínculo com o antigo leitor/espectador/ouvinte, agora convidado a participar da narrativa.

Mas isso não pressupõe produção de conteúdo ou aquela interatividade em que pode-se mudar o rumo da trama principal. O elemento participativo da narrativa transmídia reside no fato de que a história original pode ser ampliada à medida em que a experiência da mesma possa ser provada em diferentes meios – e isso não quer dizer que esses enredos paralelos tenham que se encontrar num ponto final. “A convergência ocorre dentro dos cérebros de consumidores individuais e em suas interações com outros”, explica o teórico Henry Jenkins, criador do termo “narrativa transmídia” em seu livro Cultura da Convergência, lançado no Brasil. Nessa edição, nos aprofundamos no tema, a começar pela própria campanha de lançamento do filme Watchmen – transmídia por natureza.

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E a matéria continua:
Como atrair quem não conhece a HQ?
Watchmen original
Narrativa transmídia vai além da mera campanha
J.J.Abrams conecta tudo que faz
Indústria inclui fã como produtor de conteúdo
Exemplos de narrativas transmídia
ARGs em 2009

Ainda sobre o assunto narrativa transmídia, entrevistei o autor do termo, Henry Jenkins, cujo livro Cultura da Convergência foi lançado no Brasil.

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‘O formato transmídia é irreversível’

Entrevista com Henry Jenkins, escritor, pesquisador e diretor do programa de mídia comparativa no M.I.T.

O pesquisador Henry Jenkins tem um currículo invejável – além de diretor do programa de mídia comparativa no Instituto de Tecnologia de Massachussets (MIT), ele é autor de nove livros que lidam com as relações entre mídia e consumo, entre eles Cultura da Convergência (Aleph, R$ 59), em que cunhou o termo “narrativa transmídia” (transmedia storytelling). Mas prefere ser referido como “aca-fan” – um acadêmico que também é fã do tema que trata. Ele conversou com o Link em entrevista realizada em sua visita ao Brasil, no final do ano passado, sobre as transformações que o universo digital impôs à mídia.

Em seu livro, quando o sr. se refere a convergência, não está falando especificamente de aparelhos, mas de mídias e narrativas.
Acho que estamos vendo que existe uma série de intersecções entre as diferentes mídias ao mesmo tempo em que há uma proliferação de novas tecnologias. Não acho que existe – ou que existirá – uma caixa mágica para onde todas as mídias convergirão. O ponto central é que as pessoas estão criando novas relações com a mídia e ela está se fragmentando. Meus estudantes carregam mais dispositivos e aparelhos de comunicação do que um soldado no Vietnã – a mídia é tão central em suas vidas, mas ao mesmo tempo eles têm ferramentas e plataformas diferentes ao ponto de duas pessoas sentadas uma ao lado da outra terem opções bem distintas para cada coisa. Não acho que isso vá parar em um futuro próximo, vejo o processo da convergência seguindo cada vez mais contínuo e mais dispositivos, configurações e aparelhos surgirão e não acho que aparecerá um dispositivo definitivo tão cedo.

O mesmo acontece com a mídia?
Hoje a mídia habita diferentes plataformas com o mesmo conteúdo. Logo todo o conteúdo nessas diferentes plataformas conversarão entre si e se completarão, tornando-se transmídia.

Mas estamos falando em nichos?
Ainda. As estratégias transmídia começaram primeiro em programas de TV que têm apelo entre nerds e geeks, que são os primeiros entusiastas desse formato. Agora estamos vendo isso para programas de TV para adolescentes, como Gossip Girl. Ainda não vemos estratégias como essas para programas de TV que mirem nos adultos porque ainda não encontraram um público que possa se relacionar com isso, mas quando a geração Pokémon chegar à idade adulta, isso terminará, pois tudo se tornará transmídia.

As pessoas terão tempo para consumir esse tipo de narrativa?
Boa pergunta. O cidadão comum terá tempo e disposição para ir no site, jogar o game, ler o anime ou será que eles só quer ver um filme ou um programa de TV? Hoje isso ainda é uma opção, as pessoas ainda podem conhecer histórias de um jeito ou de outro, mas na medida em que essa nova opção torna-se mais frequente, veremos que a resistência a ela diminuirá e esse formato será irreversível.
O que eu acho que vai acontecer – na verdade, já está acontecendo – é que aquilo que não for transmídia vai se tornar transmídia nas mãos do público. Falando apenas sobre programas de TV, se você reparar, vai perceber que os melhores produtos transmídia não foram criados pelas empresas que produzem os programas, mas pelos fãs. Veja a Lostpedia, que é uma Wikipedia feita por fãs de Lost, e você terá uma quantidade de informações sobre o seriado que seus produtores nunca produziram ou lançaram.

Isso não acena para cenários apocalípticos do tipo ‘o fim da TV’?
Se você analisar historicamente, não existe mídia morta. Há tecnologias que ficam velhas, mas não mídia morta. Veja o som gravado, por exemplo. Nós partimos do cilindro de cera rumo aos arquivos de MP3, mas desde que o som começou a ser gravado, ele segue sobrevivendo. O teatro não foi superado pelo cinema, como o cinema não foi ultrapassado pela televisão, da mesma forma como a TV também não vai ser banida pelo digital. Todos ainda estão lá. O que estamos vendo é o acréscimo de camadas na paisagem midiática e assim ocorrem mudanças nas relações entre essas camadas. E da mesma forma a estrutura da indústria tem mudado: o rádio já teve um papel central na sociedade, mas hoje ele vem sendo posto de lado, como o teatro já foi um dos principais temas da mídia e hoje é literalmente um nicho. Isso não quer dizer que a TV irá acabar. Por mais que as pessoas se divirtam ou usem o computador para uma série de coisas, a TV faz coisas que nenhuma outra mídia faz e isso vale para todas as mídias. O que muda é a importância delas para a sociedade.

Mas podemos imaginar um cenário em que, por exemplo, Hollywood se torne um nicho?
Sim, como aconteceu com a ópera, Hollywood pode sim se tornar um nicho, que precise de subsídios do governo para continuar existindo. Mas essa indústria tem tentado se posicionar na nova paisagem de mídia e explorá-la de forma eficaz, conectando-se com outras mídias, como quadrinhos. O mesmo tem acontecido com a TV, que está se adaptando muito rapidamente à distribuição digital. Meus alunos no MIT assistem cada vez mais televisão fora da televisão – seja baixando programas ilegalmente em torrents, comprando de forma legal pelo iTunes ou assistindo aos programas nos sites das emissoras. Mas ainda é TV, ainda é uma narrativa episódica.

Mas o disco como conhecíamos, o álbum, não morreu?
A indústria da música está voltando para as canções, que sempre foi a unidade básica na história do som gravado. O álbum é um capítulo específico dessa história, um experimento que falhou. Podemos imaginar que, no futuro, teremos um espaço sonoro, que seria um ambiente virtual em que você pode passear por ele e aí ouvir diferentes músicas dentro de um mesmo contexto – que é a ideia por trás de um álbum, só que adaptada à realidade digital. Já podemos dizer que games já estão fazendo isso, afinal o Guitar Hero e o Rock Band já são esse tipo de ambiente em que é possível encontrar diferentes canções organizadas por níveis de dificuldade. Haverá novos padrões para configurar e organizar o conteúdo, que ainda é baseado em canções. Não que a canção seja a única estrutura possível, mas agora é ela que parece funcionar melhor.

MWC em BarcelonaFabricantes não querem internet na TVPirateBay transforma julgamento em espetáculoNão dê mole com os seus CDsA criação do Partido Pirata do BrasilO Twitter é o novo Google?As “Apple Stores” da MicrosoftVida Digital: Cia. Barbixas

Lips e a nova era do karaokêSegurança digitalTestes com novos celularesAntivírus online e de graçaVida Digital: Neil GaimanOlhando a crise de outro ponto de vista

O site do Link teve problemas essa semana (novidades vêm aí!) por isso as matérias só entraram no ar hoje, sexta. Mal aê.

RPGs ocidentais amadurecemO novo Google EarthO novo SkypeAs crianças e a internetUm chip gráfico minúsculoO YouTube pode ultrapassar o Google como principal buscador?Latitude permite que você seja encontrado onde estiverVida Digital: Rafael Sica

A nota oficial:

O programa do ‘Link’ na Rádio Eldorado passará por uma reformulação e deixará de ir ao ar a partir dessa semana. O programa, que mesclava música e comentários sobre tendências na área de tecnologia de forma acessível e bem-humorada, era exibido no domingo à noite desde outubro de 2004, com boletins diários na Eldorado AM e FM. A equipe responsável pelo projeto ‘Link’ deverá analisar possíveis alterações no programa de rádio.

Você é pirata?Vida Digital: Lawrence LessigEntrevista: Matt Mason (The Pirate’s Dilemma)Wi-Fi sem roteadorO futuro dos jornais

Entrevista que fiz com o Lessig junto com o Rodrigo pro Link de hoje.

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‘O problema não são os piratas – é a lei’

Uma das maiores autoridades do mundo em direitos autorais na era digital, ele concorda: ‘Sim, somos todos piratas’

“A lei é o problema”, Lawrence Lessig sequer titubeia ao ser perguntado sobre direitos autorais e o mundo digital, “ela é muito radical”. O mesmo não pode ser dito sobre Lessig, professor de direito na universidade de Stanford, nos EUA. O criador do Creative Commons, proposta para flexibilizar o sistema legal, tem uma preocupação que vai além do copyright: “Temos toda uma geração de garotos que acha que a lei é um saco, que ignoram a lei. Quão difícil será para nós fazer eles também obedecerem leis fiscais, ou outras leis? Há dez anos, violar a lei não era tão fácil.”

A cerne da questão, para Lessig, está na mudança da relação das leis com a sociedade e a incorporação da cultura do remix não apenas na produção de conteúdo como nos negócios. O advogado, que foi cogitado para o cargo de ministro da justiça do governo de Barack Obama (de quem foi professor), está lançando um novo livro, Remix: Making Art and Commerce Thrive in the Hybrid Economy (editora Penguin, sem previsão de lançamento no Brasil, leia ao lado), em que dá um passo além da discussão dos direitos autorais.

“O foco nesse livro não é a criatividade. Embora ela seja importante, o livro tem uma preocupação maior com uma cultura que criminaliza atividades que deveriam ser normais. Essa é uma lição que os soviéticos aprenderam, quando faziam todas as atividades criminosas.”

No livro, Lessig propõe que a cultura do remix – em que conteúdos de naturezas diferentes são misturados por produtores e consumidores – deve também ser comercializados. Nada mais é que a ampliação da ideia de Creative Commons.

Quando foram criadas em 2001, as licenças CC deram um passo crucial no entendimento dos direitos do autor na época da reprodução eletrônica, apresentando o conceito de que o autor poderia permitir a reprodução livre de sua obra, colocando ressalvas para seu uso. Mas mais do que funcionar como uma solução, as licenças Creative Commons se aprofundaram nessa discussão que flexibiliza o rígido copyright para uma época em que qualquer um pode produzir e distribuir conteúdo.

“Precisamos atualizar a lei, para que ela faça sentido no mundo digital”, explicou em entrevista durante sua última visita ao Brasil, no ano passado. “Há muitas iniciativas nos EUA, como licenças coletivas, licenças voluntárias, que propõem mudanças para fazer a lei fazer sentido na era digital. É isso o que deve ser feito, ao invés dessa guerra extrema contra quem usa as tecnologias digitais”.

“Se somos todos piratas?”, Lessig repete a pergunta para responder categoricamente e dar uma pequena aula sobre a natureza do copyright. “Sim. A razão pela qual todos são piratas hoje é porque a lei atual é baseada na reprodução de cópias. É uma que fazia sentido nos séculos 18 e 19, pois elas lidavam com cópias feitas por meio de novas tecnologias, que não estavam ao alcance de todos. Se você foca a lei de direitos autorais em cópias, você tem um modelo de negócios que incentiva o trabalho criativo. Fazia sentido”.

E continua: “Mas estamos nos movendo para uma era em que todo mundo que acessa a cultura tecnicamente faz cópias. Faz tanto sentido regular isso como regular o ato de respirar – copiar é algo tão comum que qualquer um pode fazer. Ao invés de invocar essa lei insana toda a vez que um garoto liga o computador, a lei deveria parar de focar na cópia e se focar em atividades que façam sentido comercialmente”.

E conclui citando nosso ex-Ministro da Cultura: “Se eu faço um remix de uma música do Gil e compartilho com meus amigos, ele não deve se preocupar com isso, porque não irá canibalizar seu valor de marketing. Mas se eu monto um site e coloco todo o trabalho do Gil e dou para as pessoas de graça, acho que o Gil pode – e deve – reclamar”.

Mas isso não quer dizer o fim dos direitos autorais, Lessig é enfático também nisso. “Há pessoas falando nisso, que as tecnologias digitais acabaram com qualquer possibilidade de controle. Não sou tão radical. A minha visão é que os direitos autorais têm um papel importante, só que precisam mudar para que possam continuar a funcionar.”

Lessig, no entanto, reconhece que a briga não é fácil, pois os interesses do passado defendem valores do século 20, que Lessig considera difíceis de ir contra. “Olhe para as estrelas do cinema. Elas podem dizer as coisas mais idiotas apoiando a cultura do passado e não reconhecer o futuro. Por exemplo, nos EUA, a Sony entrou em 1998 com uma ação para estender os direitos autorais por mais 20 anos. E chamou Bob Dylan como testemunha, que disse que criou o melhor de sua obra já pensando que ela só cairia em domínio público depois de 70 anos e não 50, sugerindo que, se não esse período fosse de 50 anos, ele não teria criado sua obra. Imagina o Bob Dylan nos anos 60 pensando: ‘Será que escrevo uma música? Ah, tudo bem, porque ela só vai cair em domínio público depois de 70 anos e não 50’; Nesse mundo atual coisas ridículas como essas são consideradas normais.”

E conclui fazendo uma previsão séria sobre a pirataria: “Acho que ela se tornará cada vez mais uma bandeira política.”

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Uma cultura dividida em duas

“O que antes era impossível e ilegal, hoje é apenas ilegal”, explica Lessig logo ao início de seu novo livro, Remix, cujo subtítulo pode ser traduzido como Fazer Arte e Comércio Florescer em uma Economia Híbrida. Tal economia é a mesma provocada pela remistura sugerida no título e que diz respeito justamente a duas culturas que coexistem neste nascimento da era digital que vivemos hoje.

Lessig divide a cultura atual em duas vertentes: a cultura que apenas lê (RO, do inglês “read-only”) e a que lê e escreve (RW, “read/write”). Ele define a primeira como passiva e alfabetizada, em que a fonte de informação é profissional. Já a segunda, nascida com a internet, é mais ativa, é mais audiovisual do que letrada e produz conteúdo com a mesma facilidade e voracidade que consome. Lessig explica como ambas podem coexistir, mas que a mudança na legislação é crucial nesta nova realidade.

Seus próximos livros são sobre a constituição americana e sobre corrupção, seu atual foco de trabalho.

O dilema do pirata

Mais uma entrevista que fiz para a edição de hoje do Link, desta vez com Matt Mason, autor do livro Pirate’s Dilemma.

‘Competir em vez de combater’

O sucesso do iTunes e da Apple no mercado de música digital veio do fato das gravadoras não terem assumido a competição contra a pirataria digital, na época do Napster, preferindo processar seu próprio público. Sem a competição formal, as majors abriram espaço para a entrada de um executivo de outra indústria para ser bem sucedido num mercado que era dominado por elas.

Esse é apenas um entre as dezenas de exemplos que o jornalista Matt Mason lista em seu livro The Pirate’s Dilemma (Free Press, importado). Analisando a questão da pirataria do ponto de vista da cultura, Matt sugere que a saída para as empresas não perderem para a pirataria é que elas assumam a concorrência e, em vez de tentar processar os piratas, mostrem para seu público que pode oferecer algo melhor.

Para não fugir à sua própria linha de raciocínio, Mason colocou o livro para download no site thepiratesdilemma.com. O Link conversou com o jornalista sobre o livro e o cenário descrito nele.

Como surgiu a ideia do livro?
Escrevi sobre música durante anos e sempre me interessei em como a cultura funciona como um experimento social que traduz como as pessoas se sentem e como, através da cultura, elas se juntam e tentam fazer com que as coisas funcionem não necessariamente de uma forma já estabelecida – e como isso pode dar vazão a boas ideias. Assim, o movimento punk fez isso com a ideia do consumidor que também se vê como um produtor. Não que isso não existisse antes do punk, mas foi o punk quem primeiro levou esse conceito para o holofote, seguido do hip hop e, mais tarde, pela web – e agora isso é algo que todos conseguem compreender. O mundo ultrapassou o conceito de transmissão tradicional (broadcasting) e abraçou todas as formas de comunicação e compartilhamento de informação e conteúdo – e eu quis observar o lado cultural dessa equação.

E qual é a principal contribuição da internet neste cenário?
Acho que os pais da internet serão lembrados da mesma forma que hoje lembramos dos filósofos clássicos. Não estou falando em troca de MP3, mas de uma mudança que vem reorganizar a sociedade. Estamos vendo, em diferentes áreas, mudanças em estruturas de poder que deixam de ser baseadas no modelo em que um emissor fala para muitos receptores e estão indo para um modelo em que todos conversam com todos – todo mundo hoje pode transmitir informação para todo mundo ou só para algumas pessoas. Mas o principal valor da pirataria é que as pessoas podem copiar, legitimar algo novo e criar novos modelos de negócio. Foi assim que Hollywood começou, foi assim que o mercado de música começou e acho que iremos ver novos modelos de negócios surgindo daí.

Os piratas ensinaram algo ao mercado?
Certamente. Vide que muitos estúdios e empresas de mídia estão contratando consultores para saber como lidar com isso e aos poucos estão se livrando da ideia de processar os próprios consumidores, pois se tornou improdutivo. As gravadoras provavelmente nunca irão se livrar da péssima reputação que ganharam ao fazer isso. Antes as pessoas eram apaixonadas pelas gravadoras – pela Motown, pela Atlantic – e hoje você não vê nenhum jovem apaixonado pela SonyBMG, elas viraram o inimigo. E isso não vai mudar nas próximas gerações, mesmo se a indústria mudar da noite pro dia.
Mas sim, embora algumas pessoas na indústria ainda achem que o cara que compra um DVD pirata na rua e outro que baixa o mesmo filme via internet sejam o mesmo tipo de infrator, mas algumas outras pessoas já estão entendendo que são duas coisas bem diferentes. Acho que o problema não é inteiramente compreendido pelas grandes empresas de conteúdo, porque quando falamos em empresas com centenas de milhares de empregados, a mudança não é algo que pode acontecer de um dia para o outro. Acho que essa é a principal razão pela qual uma grande mudança ainda não aconteceu.
Muitas pessoas dentro desse negócio já tentaram mudar as coisas, mas são empresas que não sabem trabalhar juntas, como a indústria de cinema, de energia, a de carros ou a do petróleo. Essas são empresas que sabem a importância de trabalhar juntas, de fazer lobby pelo mercado, não por apenas uma empresa. As pessoas dentro dessa indústria são jovens e não vêem valor em trabalhar de forma conjunta. É um problema interessante e multifacetado.

Existe empresa imune à pirataria?
Várias, mas o problema é que não é o negócio seja imune à pirataria, mas a abordagem. Veja a água engarrafada. É um negócio de 8 bilhões de dólares nos EUA, mesmo que em toda casa aqui tenha água de graça em diferentes cômodos e 42% da água engarrafada à venda por aqui não é tão limpa quanto a água da torneira. Por quê? Porque eles não vendem água, eles vendem a imagem de uma casa no interior da França, saúde, vitalidade, etc., conceitos abstratos que as pessoas compram. É um truque, mas funciona. O homo economicus é sempre racional, mas na realidade, nós não somos tão racionais assim. Nós compramos a idéia que uma casa na França tenha a ver com água engarrafada. A pirataria não é a ameaça, se você prestar atenção. As pessoas compram música via iTunes não porque é o melhor jeito de se baixar música – você sai do iTunes e pode baixar muito mais músicas e sem pagar nada. As pessoas usam o iTunes porque é seguro, conveniente, mais fácil, confiável. É um clichê de publicidade, mas é verdade. As pessoas não compram uma furadeira, e sim um buraco.

Com o tiro no próprio pé dado pelas gravadoras, ao processar seus clientes, outros ramos da indústria aprenderam algo?
Com certeza. Veja a série Lost. Seus produtores são contra a pirataria, mas eles em vez de brigar contra os piratas, resolveram competir com eles. Assim, se você vive nos EUA, você pode assistir à série de graça no site da emissora. Esse é um bom argumento contra a pirataria – em vez de tentar reprimi-la, tente competir com ela.
A Disney/ABC (produtora de Lost) entendeu isso e colocou em prática. Fiquei surpreso com a decisão, porque é uma empresa com dezenas de milhares de funcionários, que mesmo assim colocou isso em prática. Isso é uma decisão drástica a ser tomada numa empresa tão grande. Se você é o executivo-chefe de uma empresa de mídia, uma decisão dessas pode fazer com que o preço da empresa caia.
Acho que a principal razão dos executivos não competirem com a pirataria não é por eles não quererem ou porque eles não achem que seja uma boa idéia. É que muitos desses executivos não querem desapontar seus acionistas e como muitos deles vão se aposentar em poucos anos, têm ressalva de mexer nos negócios. É uma cultura dividida. De um lado você tem os grandes salários na direção, que não querem que essa mudança aconteça pois, quando saírem, querem manter o preço das ações intacto. Do outro, você tem as pessoas que trabalham em níveis intermediários, que acabam ficando frustradas com essas decisões, porque eles querem mudar tudo que podem, pois acham que será bom para a empresa. Não é que as grandes empresas não queiram mudar e ponto, mas existem pessoas nessas empresas que querem e outras que não querem – há muitas nuances nesse jogo que são difíceis de serem percebidas. É um problema estrutural.

Isso deve mudar à medida em que esses executivos forem se aposentando?
Sim e acho que isso já está acontecendo. Quando você é um executivo-chefe de uma grande empresa e tem em vista que vai se aposentar em poucos anos, a melhor coisa que você pode fazer é não fazer nada. Deixe que alguém cuide desse problema. E o lance com a internet é que ela não foi desenhada como uma mídia feita especificamente para gerar dinheiro. Embora muitas pessoas falem em monetização e em como ganhar dinheiro a partir de conteúdo gerado pelos usuários, mas a internet não foi feita fundamentalmente para isso. Ela é uma rede pensada na comunicação – seja de um indivíduo para um outro, de um indivíduo para várias pessoas ou até de muitos para muitos. Por isso, se você é esse executivo-chefe, pessoalmente e a curto prazo, não é bom competir com a pirataria – o que não é bom para a empresa a longo prazo.
O que estamos assistindo, com a pirataria e a forma com que as pessoas usam a internet, é um sintoma de algo maior que está acontecendo com o capitalismo. Mais uma vez, a forma como pensamos os negócios está mudando. Se você olhar as visões clássicas da economia, as empresas sempre tiveram um motivo para acrescentar valor à sociedade. Mas o capitalismo mais recente está mais preocupado em agregar valor às suas diretorias do que para todos – claro que estou simplificando demais esta situação. Acho que estamos voltando ao modelo clássico, os negócios precisam agregar algo às pessoas, dar a elas boas experiências. Dependendo do tipo de negócio que você está envolvido, a pirataria força algumas questões: como uma companhia, o que estamos agregando às pessoas? O que trazemos de bom para elas? Devemos proteger o conteúdo ou valorizar a experiência?

O Google é uma empresa que já trabalha nesse novo modelo?
Google é uma companhia cujo negócio é essencialmente pegar o conteúdo alheio e reorganizar – e o motivo pelo qual o Google consegue fazer isso é que, por exemplo, para um escritor, é melhor estar no Google Books do que não estar lá. Meu livro está lá, ninguém me pediu permissão para estar lá, mas tudo bem, porque para mim existe um valor no fato das pessoas acharem meu livro. E isso vale para todo mundo que pega o conteúdo de outra pessoa e distribui, que é o mesmo o que os piratas fazem – e é por isso que é tão difícil combater a pirataria com processos judiciais, porque se você é uma gravadora, por exemplo, que decide não oferecer MP3 para as pessoas nem vai tentar competir com o Napster, você deixa espaço livre para um enorme mercado cinza se desenvolver, porque as pessoas gostam de MP3 e de iPods. Foi por isso que o Steve Jobs conseguiu tirar esse poder das gravadoras e hoje ser mais forte do que elas. Como as gravadoras não souberam competir com a troca de arquivos pela internet, elas deixaram um espaço enorme para uma pessoa de outro mercado entrar. E acho que vamos ver isso acontecer em qualquer situação em que uma empresa estabelecida não mude rápido suficiente. Mudar é arriscado, mas não mudar também é.

Há quem acredite que a atual situação signifique o fim do direito autoral…
Não acho que ele vá acabar, o direito autoral é muito importante. Mas o que está mudando é o conceito de uso justo, o que dá pra se fazer sem pedir permissão. Acho que o direito autoral também está ficando mais sofisticado. E nós realmente precisamos de leis fortes sobre direitos autorais, mas não precisam ser tão rígidas quanto as leis de hoje.
Se você olhar a história de qualquer tipo de mídia, sempre houve pirataria. O aparecimento de uma nova mídia sempre causa rupturas no mercado. Se você for ver a fita cassete foi perseguida pela indústria do disco quando surgiu, o DVD foi perseguido por Hollywood. A diferença de hoje é que com a internet é que toda indústria que produz conteúdo está virando do avesso ao mesmo tempo e assim estamos vendo a pirataria acontecer em todos os tipos de mídia e em todos os países. O videocassete com certeza criou uma ruptura violenta no mercado, mas não tornou a idéia de fronteiras nacionais inútil, como fez a internet. Essa é a principal novidade: se antes era uma empresa ou um ramo da indústria que era afetado, agora são vários. E acho que é por isso que esse assunto está se tornando de interesse global.

Então a saída para a indústria seria a colaboração entre empresas…
A definição ocidental de competição é que as pessoas que estão concorrendo contigo são seus inimigos, que lutam umas contra as outras por uma fatia do mercado. Acho que estamos indo em direção a uma definição mais oriental de competição. Se você olhar como são as coisas no Japão, empresas como a Toshiba vêem seus concorrentes como colaboradores em potencial – por exemplo, o HD em todo iPod é feito pela Toshiba. O que a cultura do remix faz é aumentar a amplitude dessa idéia, dizendo que isso não tem problema, que as idéias de seus amigos ou concorrentes podem e devem ser utilizadas, por isso talvez seja hora de você pensar se não é o caso de deixar as pessoas fazerem o mesmo com o seu conteúdo e assim aumentar o valor do que você faz.

Essa aproximação entre empresas e piratas pode fazer com que a distinção entre o underground e mainstream desapareça?
Acho que não. Escrevo para um site chamado Free.com e foi da comunidade de troca de arquivos via internet que eu recebi as críticas mais sérias a meu livro. Porque meu livro de uma certa forma tenta legitimar a pirataria e as pessoas que agem como piratas se veem como o underground. E aí aparece um cara dizendo que nós precisamos tornar isso mainstream para que a indústria geradora de conteúdo possa sobreviver (rindo)… Então esse cara é o inimigo.
É como perguntar para um garoto punk nos anos 70 como é que se faz para vender camisetas dos Ramones em todos os shopping centers dos EUA. Eu entendo e respeito a posição dessas pessoas, mas o ponto é que, hoje em dia, as camisetas dos Ramones estão à venda em todos os shopping centers dos EUA. A pirataria vai com certeza se tornar legal. É assim que essas coisas funcionam, o underground sugere algo novo, o mainstream vem e legitima. Sempre foi assim.

O programa de hoje fala sobre pirataria – quando é que baixar MP3 vai deixar de ser visto como crime? – com papos com o autor do livro The Pirate’s Dilemma, Matt Mason e Lawrence Lessig, além da crise nos jornais americanos e de montar uma rede wi-fi sem roteador. No som, Little Joy, Santogold, Jorge Drexler, Rosie and Me, Gal Costa e Peter Bjorn & John. O Link Eldorado vai ao ar todo domingo, às 21h, na rádio Eldorado, em São Paulo.