A primeira atividade da curadoria de música do Centro Cultural São Paulo em 2018 é uma homenagem a um ícone da música brasileira. A série de homenagens Viva celebra a importância de Walter Franco em dois shows neste sábado e domingo. O primeiro, dia 6, às 19h, Ou Não e Além, recria seu clássico disco de estreia Ou Não, de 1973, além de trazer músicas de outras fases de sua carreira. No domingo, dia 7, às 18h, Walter e banda voltam ao mítico Revolver, de 1975. Os dois shows serão precedidos pelos Concertos de Discos sobre os respectivos álbuns, que desta vez acontecem na Sala Adoniran Barbosa com a presença do próprio Walter, conduzidos pelo jornalista Thales de Menezes, que está escrevendo a biografia do músico (mais informações aqui). Abaixo, a introdução que escrevi no folder de apresentação do projeto, que será distribuído durante o evento e conta com textos do Thales sobre os dois discos revisitados.
O passo, o precipício
Um mergulho na obra de um dos artistas mais ousados da música brasileira
Walter Franco é um dos principais ícones da música brasileira moderna. Faz a ponte entre a canção popular e a academia, a vanguarda estética e a música pop. Seu período áureo, entre o Tropicalismo e o pop dos anos 80, é a espinha dorsal do projeto Viva Walter Franco, mais uma iniciativa da curadoria de música do Centro Cultural São Paulo que joga luz em biografias importantes de nossa cultura. Seus principais discos, Ou Não (de 1973) e Revolver (de 1975) serão contemplados em um fim de semana de shows e bate-papos – estes conduzidos pelo jornalista Thales de Menezes, que está escrevendo a biografia do músico. O evento festeja os 45 anos de carreira deste artista que nasceu em 1945 e que completa 73 anos exatamente no mesmo dia em que celebra seu primeiro disco, lançado em 1973. Coincidências não são novidades na vida deste artista complexo, ousado e instigante, que segue inspirando as novas gerações da música popular e erudita do país.
PROGRAMAÇÃO
dia 6/1 – sábado
16h
Concerto de Discos: Ou Não? (1973)
Walter Franco e Thales de Menezes conversam sobre o álbum de estreia.
90min – livre – Sala Adoniran Barbosa (622 lugares)
grátis – sem necessidade de retirada de ingressos
19h
Show: Ou Não e Além
Walter Franco toca músicas de seu primeiro disco e outras do decorrer de sua carreira.
90min – livre – Sala Adoniran Barbosa (622 lugares)
R$25,00 – a venda estará disponível na bilheteria em seu horário de funcionamento (terça a sábado, das 13h às 21h30, e domingos, das 13h às 20h30), e no site Ingresso Rápido
dia 7/1 – domingo
15h
Concerto de Discos: Revolver (1975)
Walter Franco e Thales de Menezes conversam sobre o segundo álbum.
grátis – sem necessidade de retirada de ingressos
18h
Show: Revolver Tudo
Walter Franco toca seu disco de 1975 na íntegra.
90min – livre – Sala Adoniran Barbosa (622 lugares)
R$25,00 – a venda estará disponível na bilheteria em seu horário de funcionamento (terça a sábado, das 13h às 21h30, e domingos, das 13h às 20h30), e no site Ingresso Rápido
Despeço-me da revista Caros Amigos, cuja última edição chega às bancas neste dezembro de 2017, desejando um futuro próximo à publicação que acolheu esta coluna Tudo Tanto.
Depois do Juízo Final
Despeço-me da coluna Tudo Tanto falando sobre o alento épico de Chico Buarque na melhor canção deste ano
“O sol há de brilhar mais uma vez
A luz há de chegar aos corações
Do mal será queimada a semente
O amor será eterno novamente
É o Juízo Final
A história do Bem e do Mal
Quero ter olhos pra ver
A maldade desaparecer”
(Nelson Cavaquinho)
Na coluna da edição passada falei sobre como os maus tratos para com a figura de Chico Buarque – vindo tanto da esquerda quanto da direita radicais desta era politicamente polarizada em que vivemos – seriam lembrados como um retrato dos tempos ridículos que vivemos nesta segunda década do século no país. Um dos maiores nomes de nossa cultura foi atirado à arena pública do escárnio como se sua reputação fosse uma ameaça para desmascarar o jorro de bílis mental que infelizmente vem se tornando rotina em nosso dia-a-dia.
E é. Munido de suas maiores armas – notas musicais, palavras e um arguto senso de estética, ética e política -, Chico respondeu aos seus detratores com sua obra mais importante desde o século passado, o monumental Caravanas, um disco essencialmente político mesmo que não fale sobre a política partidária que intoxica nosso debate público. Chico canta a cultura de uma forma ampla, tratando-a como a essência de nossa sociedade, falando sobre diversas nuances comportamentais que retratam a sociedade que somos e que podemos ser.
Mas nada havia nos preparado para “As Caravanas”. A faixa que quase batiza o disco (que opta por não usar o artigo definido plural) é seu eixo gravitacional, um épico carioca que transforma todo o disco em acessório para este grande momento. Última faixa do álbum, ela chega sorrateira como se viesse apenas concluir as pequenas digressões que o compõem para finalmente amarrá-las todas a uma descrição das invasões bárbaras que tanto incomodam os poderes estabelecidos que mandam no país desde antes de seu descobrimento.
Parte de sua entrada súbita vem de um andamento conhecido – e hipnótico. “Caravanas” foi criada sobre “Caravan”, hoje um standard jazzístico que também é a espinha dorsal para o grande jazz norte-americano da segunda metade do século passado. O caminhar lento e constante das notas imortalizadas por Duke Ellington são a trilha percorrida por Chico, que munido também do Estrangeiro de Albert Camus, compara as imigrações ilegais que ameaçam o conservadorismo nos principais países no mundo (servindo também como desculpa para pesar a mão sobre políticas sociais e direitos humanos devido à chegada desta “ameaça”).
Ao pintar o Oceano Atlântico que banha o Rio de Janeiro com a cor do mar em Istambul, Chico está falando dos muçulmanos que fogem das guerras artificiais no Oriente Médio em busca de algum alento na Europa mas também remonta às invasões bárbaras, que desconstruíram o Império Romano, e também ao tráfico desumano de pessoas que forçou a diáspora africana que é a base de nosso país. As caravanas do Arará, do Caxangá e da Chatuba que despontam na zona sul do Rio de Janeiro também são navios negreiros e ordens de mouros que chegam com “seus facões e adagas em sungas estufadas e calções disformes” para subverter a sensação de ordem que faz os poderes instituídos chamarem um país hostil para com seus próprios cidadãos de democracia.
Chico ainda conta com a percussão vocal feita por Mike, do Dream Team do Passinho, trazendo a beatbox do funk carioca para a descrição épica de uma sociedade à beira de uma transformação. Ao descrever o melhor retrato deste país no trágico momento atual, Chico Buarque também compôs a melhor música deste 2017 e também um alento para que, após o vindouro Juízo Final de nossa política, algo mude completamente o estado das coisas.
Tenhamos fé.
***
Outro triste sintoma destes tempos ásperos que atravessamos no país é a súbita notícia do fim da Caros Amigos. Acompanho a revista desde sua primeira edição (com Juca Kfouri bombástico disparando para todos os lados na hoje mítica capa em preto e branco) e pude acompanhar todas suas transformações: as edições especiais, os fascículos sobre os heróis brasileiros, o site, a entrada das cores, a redução no tamanho do formato. Sempre amparada por longas entrevistas e artigos de fôlego, a revista é o constante antídoto para tempos superficiais e destros, que optam por transformar política e economia em jogatina comercial e arte e cultura em mero entretenimento. Também é lar para pensadores políticos brilhantes, como José Arbex e Gilberto Vasconcellos, este último uma espécie de farol na formação do meu próprio pensamento político (cabe aqui um agradecimento público).
A frase de efeito “a primeira à esquerda” não era só um trocadilho esperto, mas também um alento frente ao conservadorismo cada vez mais reacionário que toma conta da mentalidade das grandes publicações brasileiras, apenas pelo fato de tornar público seu credo, em vez de tentar convencer parca e porcamente ao leitor de um certo “jornalismo imparcial”, eufemismo mal utilizado que disfarça convicções editoriais que, no literal fim das contas, também são comerciais. Ao assumir-se de esquerda, a Caros Amigos saía com larga vantagem frente à maioria das publicações impressas brasileiras
Fiquei grato e envaidecido pelo convite para escrever sobre música brasileira numa publicação tão importante para a minha formação, além de poder retribuir este convite convidando o leitor para observar a produção cultural de nossos tempos, a mesma que é considerada fogo de palha ou meramente juvenil para os veículos tradicionais brasileiros. Foram quase quarenta colunas jogando luz em transformações culturais e mercadológicas que determinaram uma nova música brasileira, que nasceu influenciada pelo cânone tradicional de nossa canção (o samba, a bossa nova, a MPB) mas que foi buscar referências em recantos menos usuais, como o jazz, o hip hop, o rock, a música eletrônica, movimentos de vanguarda musical dentro e fora do país, ajudando, inclusive, a reinventar este cânone.
Foram pouco mais de três anos de Tudo Tanto, coluna batizada com o título do segundo disco de Tulipa Ruiz justamente para reforçar a intensidade – tanto de quantidade quanto de quantidade – da atual música brasileira. Aproveito a oportunidade não apenas para lamentar o fim deste ciclo quanto para agradecer aos fiéis camaradas que me acompanharam nesta jornada do lado de lá da revista: ao heroico Wagner Nabuco, que insistia teimoso na sobrevivência de sua publicação sendo esta sua própria carta de intenções, à paciente Nina Fideles, que recebe meus textos quase sempre em cima do fechamento final, e, finalmente, ao mestre Aray Nabuco, que conheci no meu berçário profissional, o Diário do Povo, cuja presença nos poucos anos de convívio pessoal ajudou a alicerçar meu jornalismo em seus primeiros anos, e que teve a ideia de me chamar para colaborar com esta que é das principais publicações da história do jornalismo brasileiro. Despeço-me também de leitores que desconheço agradecendo pela leitura, principalmente se ela os instigou a buscar estes novos artistas que não tocam no rádio nem aparecem na TV, mas que souberam usar a internet como seu principal veículo de divulgação.
Mas o gosto acridoce da despedida vem com uma ponta de esperança de que este fim de publicação não é propriamente um ponto final e sim o encerramento de um ciclo que irá revelar, num futuro próximo, uma nova encarnação da Caros Amigos para encantar novos e velhos leitores. Torço por isso. O sol parece não estar mais no horizonte durante este inverno sombrio que paira sobre nossas cabeças. Mas sabemos que estações vêm e vão e daqui a pouco voltaremos a respirar o ar puro da liberdade.
Até breve.
Minha coluna Tudo Tanto de novembro na revista Caros Amigos fala sobre como Chico Buarque virou um alvo para todos – e como ele respondeu isso com arte e música.
“Machista, comunista, vai pra Cuba!“
Não há dúvida que vamos olhar, no futuro, para esta década como um dos períodos mais vergonhosos da história do Brasil. O andar pesado do retrocesso — político, moral, econômico, ético, cultural — pode ser medido por meio de inúmeras réguas, mas talvez a mais emblemática seja aquela que tenta derrubar um dos maiores ícones da cultura brasileira: Chico Buarque.
Filho de um dos maiores nomes das ciências humanas destas bandas (o Sérgio Buarque de Hollanda que propôs o conceito artificial do “homem cordial” para rotular o brasileiro em seu fundamental livro Raízes do Brasil), Chico é contemporâneo da bossa nova e assistiu de perto às transformações políticas que se abatem no Brasil no início dos anos 1960, da brutalização do debate político à dura resistência cultural, culminando no golpe “anticomunista” de 1964 que trouxe as poucas famílias que tomam conta do Brasil de volta ao poder (e a história se repete cinquenta anos depois exatamente da mesma forma…). A segunda metade da década viu a ascensão de Chico como cantor e compositor, um ourives dos versos e melodias, que nos seus primeiros anos de carreira escreveu clássicos como A Banda, Noite dos Mascarados, Com Açúcar, com Afeto, Quem Te Viu, Quem Te Vê, Retrato em Branco e Preto, Carolina, Roda Viva, Essa Moça Tá Diferente e Samba e Amor, antes de firmar-se como autor no ousado Construção e na provocadora Apesar de Você, no início dos anos 1970.
Desde então Chico vem estabelecendo-se como um intelectual ativo no imaginário popular brasileiro, mais do que cantor e compositor. Dramaturgo, escritor e até apresentador de programa de TV (quando, nos anos 1980, dividiu com Caetano Veloso o musical Chico & Caetano, na Rede Globo), ele sempre esteve presente nos diferentes embates políticos de que foi contemporâneo, da anistia aos exilados da ditadura ao movimento das Diretas Já, entre outros movimentos políticos e culturais das últimas décadas. Ao contrário de Caetano Veloso, Chico é mais reservado e com o passar do tempo foi se preocupando menos em lançar discos e fazer shows e mais em escrever livros.
E por mais que seu maior legado seja por escrito, seu lugar é a música, na qual consolidou sua reputação de contestador, de ativista político, de romântico inveterado, de sambista classudo e de letrista ousado. Por melhores que sejam seus livros ou sua presença pública, ela não é tão precisa e preciosa quanto seus discos, aos quais se dedica com esmero.
Nos últimos anos, contudo, toda a reverência que o tornava um dos grandes nomes de nossa cultura, além de uma de suas raras unanimidades, foi ruindo à medida em que os ânimos foram se acirrando. A belicosidade da discussão política no Brasil, acirrada principalmente pelas redes sociais, mas também por práticas fora da internet, passou a escolher alvos tanto à direita quanto à esquerda — e velhos conservadores e novos reacionários elegeram juntos Chico Buarque como o grande bastião vermelho, principalmente pelo fato de Chico ser um dos principais nomes públicos entusiastas das candidaturas e das presidências de Lula e Dilma.
Chico começou a ser visto e difamado como um pária comunista, arrimo intelectual da malograda baixa escolaridade do primeiro presidente petista, avalizador de um suposto novo Vargas a uma classe média teoricamente deslumbrada com seus versos e canções — só que, claro, sem um átimo desta polidez descritiva. Gritos de “vai pra Cuba!” e “vai pra Paris!”, berrados na internet e fora dela, acusavam-no de capitão de uma certa “esquerda caviar” que, às custas da “inocência do povo” (?) vive “uma vida burguesa sem culpas??”. Em um par de anos, Chico Buarque transformou-se numa espécie de cúmplice daquele que, na visão torpe destes desmiolados, foi o maior vilão da história do Brasil.
Se por um lado este tipo de ataque constrange mas é esperado, principalmente por conta do clima agressivo que paira sobre o País, o que dizer quando o ataque vem de seus antigos fãs — ou, mais especificamente, de suas antigas fãs? Isso começou a acontecer depois que ele lançou a primeira canção de seu novo trabalho, chamada Tua Cantiga, acusada de machista por narrar uma paixão do personagem dos versos.
A grita da esquerda — mais especificamente das feministas — dizia respeito ao verso “Largo mulher e filhos” como se Chico estivesse incentivando pais de família a largar sua prole por uma amante. Depois de tachado de comunista, foi a vez de chamá-lo de machista — como se a situação descrita por ele tivesse que necessariamente ser correta ou servir de exemplo. Como se ele não pudesse descrever algo de que discorde quando compunha. Mas e se ele não estivesse falando de outra mulher? Se ele estivesse falando da liberdade, da democracia, da felicidade anterior a este clima de trevas que vivemos hoje? Releia a letra com isso na cabeça e perceba que Chico segue sendo o mesmo compositor incrível de seus dias de ouro, embora não componha mais com tanta frequência. Isso sem contar As Caravanas, faixa que batiza seu novo título, mas essa música é assunto pra outra coluna.
A trilha sonora do filme psicodélico dos Beatles completa meio século de idade – e eu escrevi sobre esse clássico lá no meu blog no UOL.
Quando a versão LP de Magical Mystery Tour chegou às lojas norte-americanas há cinquenta anos, no dia 27 de dezembro de 1967, os Beatles encerravam com chave de ouro seu maravilhoso ano psicodélico bem como começavam a perder a mão do próprio negócio. Embora o disco fosse impecável – a ponto de rivalizar com o emblemático Sgt. Pepper’s como uma das principais obras da banda até então -, ele era fruto do primeiro projeto do grupo que foi mal recebido pela crítica (o telefilme que batizava o disco), bem como feria uma regra tácita que a banda se impôs desde seus primeiros anos, de não incluir as canções lançadas em compacto em seus álbuns.
Magical Mystery Tour foi um projeto liderado por Paul McCartney logo após a morte do empresário da banda, Brian Epstein, no fim de agosto daquele ano. Epstein havia sido a peça-chave que fez o grupo ir além do formato tradicional de banda de rock, transcendendo para fenômeno pop global sem precedentes. A súbita morte do empresário pegou a banda de surpresa logo após o lançamento de Sgt. Pepper’s e os deixou completamente sem rumo. Era Brian quem estudava todos os passos que a banda poderia dar, dividindo com John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr as opções de carreira e a partir das opiniões do grupo dar seus ousados passos profissionais. Foi ele quem vislumbrou a estética da banda, todo o conceito de merchandising, a forma como lidava com a imprensa, a conquista de mercados pelo planeta, a possibilidade de fazer filmes, capas e títulos de discos que falavam por si só. Dos grandes passos que os Beatles deram em termos de marketing pessoal, só alguns foram dados sem a iniciativa de Brian, como o abandono dos palcos em 1966 e a ideia de criar álbuns conceituais. Da mesma forma que o produtor George Martin era o quinto beatle quando o assunto era música, Epstein era o quinto beatle em relação a estratégia e rumos de carreira, guiando a banda para fronteiras que os quatro nem imaginavam.
Não por acaso sua morte foi um choque para a banda. Ele não chegava a ter o aspecto professoral que Martin tinha em relação ao grupo (por ser quinze anos mais velho que os dos Beatles mais velhos, John e Ringo) e tinha só seis anos a mais que os dois, aproximando-o ainda mais do grupo. Era um fã de música pop como os quatro Beatles e sua relação com o grupo era menos de empresário e mais de amizade. Os quatro confiavam cegamente em Brian – e aquela morte tirou completamente o senso de realidade do grupo na hora em que estavam surfando uma onda de plena criatividade artística. Isso está claro na entrevista que John e George deram logo após chegar do retiro com o guru Maharishi Mahesh Yogi, onde souberam da morte do amigo e empresário. Olha a expressão na cara dos dois:
Paul McCartney logo entendeu que aquela notícia poderia ter um impacto negativo o suficiente para deteriorar a banda e acelerar seu fim, algo que já vinha sendo cogitado desde que o grupo pendurou as chuteiras dos palcos, e assumiu as rédeas da banda. Como havia feito em Sgt. Pepper’s – quando concebeu o conceito por trás de um disco que seria uma obra única, mais do que uma coleção de canções -, logo cogitou a possibilidade de lançar um terceiro filme da banda, sua obra audiovisual psicodélica, que, por motivos de agilidade de produção, foi transformado em um filme feito para a TV, no caso a emissora britânica BBC, onde o grupo já batia ponto regularmente em seus programas radiofônicos.
Magical Mystery Tour foi um conceito criado a partir dos chamados “mystery tours”, viagens de charrete em que os ingleses eram convidados a passear sem saber o rumo daqueles passeios, quase sempre em direção ao campo, no início do século 20. Como, para os ingleses, toda a noção de psicodelia estava intrinsicamente ligada à volta à infância e uma viagem ao passado, era natural que aquele conceito fosse transformado em “mágico” para saciar as ansiedades lisérgicas de uma geração que via o mundo deixar de ser preto e branco para assumir cores em Technicolor.
O problema é que por mais empolgado que Paul estivesse com aquele conceito, ele era apenas um jovem de vinte e cinco anos que havia dominado o mundo da música e estava delirando com a possibilidade de se tornar um autor sério. Havia começado a frequentar galerias de arte, a acompanhar cinema de vanguarda e a ler sobre cultura erudita. Aquele ímpeto jovem de se tornar um artista intelectual era bonito na teoria, mas na prática ele não tinha muita ideia do que fazer. E embora o filme tivesse sido dirigido e escrito pelos quatro Beatles, era ele o capitão daquela aventura e o aspecto livre de execução do filme seria perfeitamente exemplificado pelo roteiro escrito por Paul – um diagrama circular que funcionaria como ponto de partida para improvisos excêntricos e delírios lisérgicos da banda.
O resultado foi um filme completamente experimental e caótico, que substituía as charretes das turnês misteriosas do passado por um ônibus escolar cheio de personalidades peculiares, todas elas vindas do inconsciente coletivo imaginado pela banda, ecoando também as viagens psicodélicas promovidas pelos Merry Pranksters de Ken Kesey pelos Estados Unidos, anos antes, quando aquele grupo atravessava o país dando ácido lisérgico diluído em ki-suco em festas instantâneas. Pelo percurso do filme, curtas musicais que anteviram o conceito de videoclipe e acenos humorísticos que plantariam a semente do que o Monty Python faria em seu Monty Python’s Flying Circus, dois anos depois. Steven Spielberg e George Lucas também celebraram o aspecto de vanguarda naïf do filme, que ajudaria os dois diretores a entender como ser experimental e pop simultaneamente.
Mas todas essas qualidades foram percebidas posteriormente. Quando foi exibido após o natal daquele ano, o filme sofreu fortes críticas, principalmente por sua falta de roteiro e aparente amadorismo. O produtor George Martin também atribui o fracasso do filme ao fato de este ser um filme muito colorido e, à época, boa parte dos televisores na Inglaterra transmitirem apenas em preto e branco. O baque sofrido pela banda foi tamanho que o próprio Paul McCartney deu uma declaração para a imprensa praticamente se desculpando por ter feito o filme.
O mesmo não poderia ser dito em relação à sua trilha sonora. Lançada no início daquele dezembro como um EP, o disco continha apenas as músicas da banda que utilizadas no filme, todas inéditas. Era um compacto duplo que trazia a faixa-título e “Your Mother Should Know” no lado A, “I Am the Walrus” no lado B, “The Fool on the Hill” e a instrumental “Flying” no terceiro lado e “Blue Jay Way” de George Harrison no quarto. Como a capa de Sgt. Pepper’s, a do EP também era dupla e trazia um encarte de 28 páginas que tentava contar a história rascunhada no filme.
Mas quando o disco foi cogitado para o mercado norte-americano, ele sofreu uma grave distorção – principalmente do ponto de vista dos Beatles. Em vez de ser um compacto duplo, ele agora seria um álbum, e parte das músicas que o tornariam um disco cheio já haviam sido lançadas como compactos anteriormente, quebrando uma regra que os Beatles criaram logo após o lançamento de seu primeiro disco, o único a conter músicas lançadas também como single (a saber, “Love Me Do” e “P.S. I Love You”, que faziam parte do repertório do disco Please Please Me). Desde então, o grupo separava as músicas que tinham maior potencial radiofônico para serem lançadas como compacto, deixando-as quase sempre de fora dos álbuns. Assim, hits instantâneos como “She Loves You”, “I Wanna Hold Your Hand”, “We Can Work It Out”, “Day Tripper”, “Paperback Writer” e “Rain”, entre outras, nunca chegaram a figurar na discografia de álbuns do grupo.
O disco Magical Mystery Tour, que chegou ao mercado norte-americano há 50 anos, incluía as faixas de compactos como “Strawberry Fields Forever” e “Penny Lane” (compacto que havia sido lançado antes de Sgt. Pepper’s), “All You Need is Love” e “Baby You’re a Rich Man” (lançado após a primeira transmissão ao vivo da história, naquele mesmo ano) e “Hello Goodbye” e “I Am the Walrus”. A princípio o grupo ficou contrariado com esta nova versão, mas aos poucos cedeu às más impressões a ponto de oficializá-lo com item oficial quando a discografia da banda foi sacramentada em sua versão em CD, trinta anos depois. A inclusão daqueles compactos no antigo EP duplo também favorecia a transformação de todos os outros compactos na coletânea dupla Past Masters – Volume 1 & 2, que teria de ter um terceiro volume caso não os compactos de 1967 não fossem incluídos naquela edição.
Mas, principalmente, a nova edição coroaria 1967 como o ano psicodélico dos Beatles, reunindo toda a produção da banda naquele ano em dois álbuns, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band e Magical Mystery Tour. Juntos os dois formam um par de discos impecável, que reúne a produção psicodélica mais intensa em um ano em que várias bandas lançaram dois discos clássicos (os Doors lançaram seu primeiro disco homônimo e Waiting for the Sun, o Experience de Jimi Hendrix tinha a estreia Are You Experienced? e o fantástico Axis… Bold as Love, o Jefferson Airplane teria seu Surrealistic Pillow e After Bathing at Baxter’s, os Stones lançariam Between the Buttons e Their Satanic Majesties Request).
Sozinho, Magical Mystery Tour é o que o filme original tentava ser: uma viagem psicodélica misteriosa, em que os Beatles, como mágicos, recebiam o ouvinte tentando emular a sensação lisérgica em letras e melodias – dos “roll up” que abrem a faixa-título ao clima nebuloso da hipnótica “Blue Jay Way” de George Harrison, da viagem instrumental de “Flying” (a primeira faixa assinada pelos quatro Beatles) ao delírio jocoso de “I Am the Walrus” (que Lennon compôs arbitrariamente de forma dúbia, apenas para atiçar a curiosidade dos que interpretavam demais suas letras), passando pela viagem à infância em Liverpool de “Strawberry Fields Forever” e “Penny Lane”, pelas baladas nostálgicas “The Fool on the Hill” e “Your Mother Should Know” e pelas letras simples, otimistas e diretas de “Hello Goodbye” e “All You Need is Love”. Um disco impecável que encerraria um ano mágico para os Beatles e os preparava para o início do fim de suas carreiras, quando, em 1968, começariam a se desfazer com o mítico Álbum Branco. Mas isso é outra história…
Ouça lá no meu blog no UOL a mixtape que o beatle fez em 1965 para seus companheiros de banda.
Documentário produzido pela BBC sobre os últimos anos de David Bowie acaba de ser comprado pela emissora norte-americana – escrevi sobre isso no meu blog no UOL.
The Last Five Years foi um documentário produzido pela BBC inglesa nos últimos cinco anos da vida de um dos artistas mais criativos de nossos tempos, o inglês David Bowie, que morreu no início de 2016. Lançado na Inglaterra no início de 2017, o filme foi comprado pela emissora norte-americana HBO e será lançado no dia em que Bowie completaria 71 anos, dia 8 de janeiro nos Estados Unidos e possivelmente em outras emissoras afiliadas do canal espalhadas pelo mundo.
O documentário traça o período em que Bowie voltou a produzir novos discos depois de diminuir suas aparições públicas consideravelmente. Durante estes cinco anos, ele lançou dois álbuns aclamados pela crítica, o sóbrio The Next Day (lançado em 2013) e o críptico e ousado ★, seu vigésimo quinto disco, que veio a público dois dias antes de sua morte e impressionou a todos como um de seus discos mais sérios e um epitáfio sobre sua carreira.
Um dos grandes discos da história e obra-prima de Dr. Dre completa um quarto de século de influência – escrevi sobre ele lá no meu blog no UOL.
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Escrevi lá no meu blog no UOL minhas primeiras impressões sobre o oitavo episódio da saga Skywalker.
O melhor jeito de assistir a Os Último Jedi, oitavo episódio da saga Skywalker que estreia esta semana no Brasil, é ir ao cinema sem saber de nada – mas, calma, não precisa parar de ler o texto aqui. O próprio trailer trinca algumas surpresas ao apresentar cenários e criaturas que deixariam fãs boquiabertos caso não fossem mostrados de antemão, então se você conseguiu escapar da avalanche de notícias, fotos e cenas inéditas dos últimos meses e precisa ser convencido de que este filme vale a pena ser assistido, garanta sua sessão blindado destas notícias. Por isso, o texto abaixo mais descreve sensações e personagens do que entrega a história do filme – portanto, sem spoilers.
A principal crítica sofrida pelo Despertar da Força que fez a Lucasfilm, agora uma empresa Disney, ressuscitar sua galinha dos ovos de ouro em 2015 era que o Episódio VII era apenas uma recriação do Episódio IV, o primeiro filme da história de Guerra nas Estrelas, lançado em 1977. Com J.J. Abrams no comando, o filme é uma colcha de retalhos de referências dos seis filmes anteriores que usa a mesmíssima estrutura narrativa da produção que transformou George Lucas em milionário: Rey refaz o caminho do aprendiz de Luke, Kylo Ren é um aspirante a Darth Vader, o Supremo Líder Snoke é o novo Imperador, BB8 é o R2D2 2.0, Poe Dameron faz as vezes de Han Solo, Maz Kanata ecoa Yoda e todos os personagens que sobreviveram ao novo filme (Han Solo, Leia, Chewbacca, R2D2, C3PO) batem cartão com seus bordões na rapsódia de Abrams, que termina com uma nova Estrela da Morte explodindo após tomar um laser em seu inexplicável ponto fraco. Só o personagem Finn – o único Stormtrooper a desertar do exército do Império – e a fatídica cena central com Han Solo fogem das referências citadas estabelecidas pelo criador de Lost.
Era um risco que precisava ser corrido. J.J. Abrams tinha o desafio de tornar a série novamente atraente e divertida após o fiasco dos Episódios I, II e III, considerados manchas pesadas em uma das marcas mais importantes da cultura pop de todos os tempos. Apelou para a nostalgia como se preferisse não mexer no próprio time, ousou em pouquíssimos momentos, mas conseguiu atrair o velho público e uma nova audiência, transformando a ressurreição da série um dos principais sucessos comerciais deste século até agora.
Os Último Jedi tinha tudo para refazer um caminho parecido em relação a O Império Contra-Ataca e usá-lo como modelo para contar uma nova história. A comparação era reforçada pela cor do logo da série, pela primeira vez em vermelho na divulgação inicial, em vez de amarelo, talvez querendo indicar que seria um filme passional e pesado como foi o Episódio V. Mas o diretor Rian Johnson preferiu dar alguns passos para trás e ver toda aquela história dos sete primeiros episódios numa perspectiva galáctica. Quem são aquelas pessoas? Por que elas são tão importantes para a história da Força? O que são os Jedi?
A partir desses questionamento, ele desconstrói os personagens apresentados no filme anterior de forma soberba. Entra na natureza de Poe Dameron numa sequência de abertura de tirar o fôlego, trabalha a complexidade emocional de Rey, lapida um vilão perfeito em Kylo Ren, humaniza ainda mais o coração de Finn. Eles ganham uma profundidade completamente nova, esquivando-se dos clichês que os vinculam a outros personagens anteriores. Rey é decidida e obstinada, ao contrário de seu espelho original, o jovem Luke. Kylo Ren ganha contornos mais decididos, mesmo sem abandonar por completo o ar birrento que o transformava em um Darth Vader mimado – Adam Driver aos poucos constrói um vilão completamente novo. Poe Dameron e Finn ganham uma importância que no filme anterior parecia passageira e têm momentos definitivos no novo filme.
Mas é um filme dos gêmeos Luke e Leia. O que O Despertar da Força nos tirou de Mark Hammill, Os Últimos Jedi entrega de forma plena, bem como toda a complexidade super-heróica da antiga princesa Leia. Os irmãos são alguns dos principais alicerces desta nova trilogia e seus destinos no novo filme determinam o desenrolar básico da história.
Além disso há novos alienígenas, novos bichos, novas naves, armas, uniformes, veículos. O aspecto visual de Guerra nas Estrelas ganha um banho de loja que aponta para possibilidades infinitas, criando cenas memoráveis e de pleno apuro visual. Toda criação de computação gráfica que George Lucas insistiu na primeira trilogia deste século e que Abrams evitou no filme anterior, surge esplendorosa e realista neste novo filme. E os novos personagens apresentados – uma soldado, um malandro e uma general (não vou nem dizer o nomes dos atores) – também fogem de possíveis comparações com outros nomes conhecidos de outros filmes. Sem contar a presença massiva de mulheres – e o tratamento de animais como seres vivos, não como fontes de comida.
Os Últimos Jedi não é perfeito. São duas horas e meia de filme que começam com um bom pique, mas aos poucos desanda quase sonolento pela sua metade. Mas o ato final é tão surpreendente e empolgante (aplaudi três cenas específicas no cinema) que esquecemos facilmente do encontro frustrado num planeta Mônaco que nos revela um dos novos personagens.
E, principalmente, foge por completo das fórmulas já estabelecidas nos filmes anteriores. Rian Johnson está procurando novos rumos, novos fios da meada, novas ambiências, novas sensações, e amplia magistralmente a mitologia criada por George Lucas. Não por acaso, ele será o responsável pela próxima trilogia da saga, a primeira sem a presença de ninguém da família Skywalker.
Até o fim de semana volto a falar sobre o novo filme, desta vez enchendo o texto de spoiler. Mas diz aí na área de comentários o que você achou de Os Últimos Jedi.
Mark Mothersbaugh, líder do Devo, narra histórias de bastidores do primeiro disco de sua banda, que incluem causos com David Bowie, Brian Eno e gente do rock alemão dos anos 70 – falei sobre o relato no meu blog no UOL.
O registro de uma conexão improvável entre dois gigantes da música moderna foi encontrado recentemente por um de seus autores, quando o líder da banda new wave Devo revelou que teria gravações de seu grupo ao lado de ninguém menos que David Bowie. A revelação aconteceu na noite desta segunda-feira, quando, num encontro na loja de discos Sonos, em Nova York. Mark Mothersbaugh, fundador e principal mentor do grupo Devo, era uma das atrações em um painel de discussão sobre a importância de David Bowie, cuja morte completa dois anos no próximo mês, e reuniu nomes como o músico Nikki Sixx do Mötley Crüe, a líder do grupo Perfect Pussy (e ex-VJ da MTV norte-americana) Meredith Graves e o fotógrafo Mick Rock, todos contando histórias do tempo em que conheceram o ícone inglês. O papo teve a mediação feita pelo jornalista Rob Sheffield.
“David Bowie chegou e disse: ‘Quero produzir vocês”‘, lembrou Mothersbaugh quando se referia a um dos primeiros shows de sua banda, no meio de 1977, na casa Max’s Kansas City. “E nós falamos que não tínhamos contrato com gravadoras. E ele disse: ‘Não importa, eu pago”‘. Essa foi apenas uma das histórias contadas pelo líder do Devo, de acordo com o blog Bedford and Bowery.
Mothersbaugh continuou lembrando que Bowie não falou da boca pra fora e que o músico inglês subiu no palco para acompanhar a banda no segundo show que eles fizeram naquele lugar, no mesmo dia. “Ele subiu no palco e disse: ‘Essa é a banda do futuro e eu vou produzi-los este natal em Tóquio!’ E nós todos ficamos: ‘Parece ótimo. Estamos dormindo em uma van em frente ao Bowery essa noite, em cima do nosso equipamento”. Aquela noite terminou com Bowie levando a banda para seu hotel, levando-os para comer sushi, coisa que eles nunca tinham visto na vida.
Meses depois, Brian Eno, que produziria o primeiro disco do Devo (Q: Are We Not Men? A: We Are Devo!, de 1978) levou a banda para o estúdio Conny Plank, em Colônia, na Alemanha, e no primeiro dia de gravação tocou em uma sessão com o grupo, David Bowie e outros músicos alemães. “O Devo tocou com David Bowie, Brian Eno, Holger Czukay (do grupo alemão Can) e alguns outros músicos eletrônicos alemães que estavam por ali”, revelou Mark, que também contou que acabou de reencontrar a gravação histórica deste dia. “Eu ainda não a escutei, mas acabei de encontrar esta fita”, contou.
Como se não bastasse, ele ainda contou as fitas originais das gravações do primeiro disco, gravadas em 24 canais e cheias de anotações feitas por Eno. “Tem umas faixas com coisas escritas como ‘vocais de David’ e ‘sintetizadores extra de Brian’ e eu de repente eu lembro que tirei essas participações quando estávamos fazendo a mixagem final do disco”, explicou, acrescentando que não usou essas gravações no disco final porque haviam se envolvido com empresários picaretas, levando-o a se tornar “completamente paranoico em relação a pessoas se metendo nas nossas coisas”.
No final, Mothersbaugh deixou a dúvida no ar. “Acho que deveríamos ver o que tem nessas fitas. Estou realmente curioso pra saber o que diabos fizemos.”
O mítico disco de estreia do Wire completa quatro décadas cada vez mais influente – escrevi o texto sobre a importância do disco no meu blog no UOL.
Quando 1977 chegou ao fim, parecia que o ano havia virado o rock do avesso. Depois de anos borbulhando no underground de Nova York e Londres, o punk finalmente vinha à tona – não apenas a partir da consolidação da safra nova-iorquina, que viu todas suas bandas (Television, Patti Smith Group, Ramones, Blondie e Talking Heads) assinar com grandes gravadoras encarnado, mas principalmente pela doutrina de choque e destruição dos Sex Pistols, primeiro porque a banda inglesa materializava visualmente aqueles novos ideais estéticos mas também porque validava o descontentamento de toda uma nova geração de adolescentes conterrâneos, que pegavam guitarras e máquinas de xerox, mas fazer sua própria cena musical longe das grandes casas de shows, das lojas de discos e das emissoras de rádio. Todas as grandes bandas do punk inglês surgiram ou se consolidaram ao mesmo tempo em que os Pistols: Clash, Damned, Buzzcocks, Jam, Slits e X-Ray Specs (além de artistas que orbitavam ao redor do punk, como o Police e as bandas de ska da gravadora 2Tone) saíram das garagens para as páginas dos jornais, provocando caos e desordem em shows cada vez mais rápidos e barulhentos.
Quando 1977 chegou ao fim, uma banda minúscula chamada Wire, criada naquele mesmo ano, lançou seu primeiro disco e correu riscos musicais para além dos três acordes e das palavras de ordem. Cruzando o limite que separava o punk das ousadias sonoras que viriam a ser conhecidas mais tarde como pós-punk, o grupo londrino ainda mantinha-se do lado original daquele movimento cultural, mas buscava fugir das imposições estéticas determinadas pelo próprio rock’n’roll. Ao lançar seu Pink Flag no dia 4 de dezembro de 1977, o Wire também explorava todas as possibilidades do punk – e seu legado mudaria inclusive a forma como o gênero seria percebido tanto nos Estados Unidos quanto no resto do mundo.
Formada pelo guitarrista e vocalista Colin Newman, pelo guitarrista Bruce Gilbert, pelo baixista Graham Lewis e pelo baterista Robert Gotobed, o Wire começou ao redor do guitarrista e vocalista George Gill, dono de um conceito que evoluiu para uma banda chamada Overload, no início de 1977. Mas os ensaios não empolgavam, as letras e músicas do dono da banda eram vistas com desprezo pelos outros integrantes e bastou que Gill faltasse a um ensaio (depois de quebrar a perna tentando roubar um amplificador de guitarra de outra banda), que os quatro integrantes de seu grupo percebessem que a banda tinha um problema: seu fundador. Ao mostrar para o grupo suas primeiras canções, Newman conseguiu rapidamente que os outros músicos entendessem que a falta de fluência musical vinha da presença de Gill, e aos poucos puderam ir para além das fronteiras estabelecidas pelo punk. Seus primeiros shows aconteceram em abril de 1977 e já nas primeiras apresentações experimentavam algo inédito no gênero: o corte seco das músicas pela metade, quebrando completamente a expectativa do público, que se engalfinhava em rodas de pogo conduzidas pelo barulho.
Aos poucos reduziam o tempo das canções drasticamente, muitas vezes por considerarem o material desenvolvido em um único ensaio suficiente. As músicas às vezes não tinham refrão, só duas estrofes, ancoradas sempre por riffs de guitarras secos e minimalistas como o ritmo tribal de sua percussão, deixando o baixo e o vocal livres para explorar novas frentes melódicas. Ao assistir a shows dos Buzzcocks e dos Ramones no meio daquele ano os fez perceber que a velocidade também era um limite a ser rompido – daí passaram a compor faixas ainda mais curtas e diretas, bem como números com andamento mais lento que aquele do punk tradicional.
Pink Flag sintetizava todo o espírito da banda de forma definitiva. Eram vinte e uma canções em pouco mais de meia hora de disco, com músicas que nem mesmo um minuto tinham, em alguns casos. Os temas eram muito mais diversos que os explorados pelo punk: a tensa “Reuters”, que abria o álbum, descrevia uma zona de conflito do ponto de vista de um correspondente de guerra; a urgência de “Start to Move”, “It’s So Obvious” e “12XU” contrastava com o ar contemplativo de canções sentimentais como “Fragile”, “Strange”, “Lowdown” e “Feeling Called Love”, questões políticas fugiam de discussões partidárias em faixas como “Mr. Suit”, “The Commercial”, “Brazil” e a faixa-título. Todas as canções pareciam pequenos manifestos modernistas e poderiam ter suas letras sido escritas no início do século 20, com frases de efeito que tinham origens futuristas, dadaístas, situacionistas e pós-modernistas. A novidade estética era a urgência dos sons e palavras, quase sempre indo além do que se esperava de um disco de punk rock.
A inventividade e a criatividade do grupo logo o levariam para além daquele lugar musical. Nos discos seguintes, especialmente Chairs Missing, de 1978, 154, do ano seguinte e o ao vivo Document and Eyewitness, de 1981, o Wire transcendia a pressa e a selvageria do punk primal, abraçando a natureza artística que acompanhava o grupo desde seus primeiros passos. Novos instrumentos, temas e andamentos foram incorporados ao som do grupo e cada um destes quatro primeiros álbuns poderia ter sido gravado por uma banda diferente, tamanhos os saltos evolutivos que deram entre um registro e outro, quase sempre negando os preceitos tecidos no trabalho anterior.
Mas o impacto de Pink Flag atravessaria o Atlântico e teria uma influência muito maior do que em seu país de origem, mesmo não vendendo bem em nenhum dos mercados. Mas como os Estados Unidos estavam ainda entendendo o que era o punk a partir do punk inglês (pois haviam pouquíssimas bandas punk para além das de Nova York), todos os discos punk ingleses que apareciam eram tratados como mensagens vindas de um planeta utópico – e Pink Flag parecia ensinar que o punk poderia ir para muito além da cartilha dos três acordes básicos, descendentes do rock mais cru.
Assim, o disco tornou-se fundamental para uma nova geração de bandas punk. Ele praticamente serviu como um dos pilares da cena de hardcore de Nova York, com músicas regravadas pelo Minor Threat (“12XU”) e por Henry Rollins (“Ex-Lion Tamer”), repercutiu na cena californiana (sua “Mannequin” foi regravada pelo Firehose e os Minutemen sempre assumiram o disco como influência para suas músicas curtíssimas), além de ter sido regravado pelo R.E.M. em seu disco Document (com a música “Strange”). Seu legado norte-americano praticamente consolidou um novo gênero musical descendente do punk, o hardcore, que evoluiria ainda mais com outras influências locais.
Mas o grupo, que está na ativa até hoje, sempre fugiu de fórmulas. Tanto que quando fez sua primeira turnê pelos Estados Unidos, no final dos anos 80, cientes que estavam sendo esperados pela influência de seu primeiro disco, contratou a banda Ex-Lion Tamers para tocá-lo na íntegra como show de abertura. Assim, os punks que queriam apenas ouvir seu disco favorito da banda sentiam-se satisfeitos logo no início e o grupo não precisaria se preocupar em revirar o passado. Um dos discos mais influentes do punk inglês, Pink Flag continua sendo passado de geração para geração como um segredo, uma lenda urbana, uma comunicação em código. Felizmente.