Entrevista

amanticidas

Prestes a lançar seu segundo disco, o grupo Amanticidas escancara sua principal influência, a vanguarda musical que girava ao redor do teatro Lira Paulistana durante os anos 80 e convida uma de suas principais seguidoras desta linhagem, no single que antecipa o novo lançamento. “Paisagem Apagada” é um pequeno e importante aperitivo de Teto, que foi produzido por Fernando Catatau, e está sendo antecipado em primeira mão para o Trabalho Sujo. A faixa também é um comentário sobre o Brasil de 2020 ao cantar que “Foi minha distração, sou eu que sou culpada, agora condenada assistir o desmonte do meu mundo”.

“A gente escolheu a Juçara muito tempo atrás, ela que foi ficar sabendo depois! Quando o Alex (Huszar, baixista e vocalista) chegou com essa canção, voz e violão, lá em 2017, foi imediato e unânime: a gente quer, a gente precisa, ouvir isso na voz dela”, explica o guitarrista e vocalista João Sampaio. “Não sabemos se é a letra, o clima, tudo isso junto: a gente sabia que tinha que ser a Juçara. Aí no ano passado durante as gravações nosso produtor Fernando Catatau – sem palavras, que homem – fez a ponte e o negócio virou realidade. Trabalhar com ela foi um prazer, uma honra e uma aula: é sempre bom quando você é fã de uma pessoa faz tempo e descobre que além do talento ela também é generosa, gente boa e uma baita profissional.”

João continua fazendo a conexão entre a cena que inspirou a criação do grupo, cujo nome saiu de uma música de seu maior ídolo, Itamar Assumpção, e a cena atual. “O legado mais forte talvez seja essa afirmação de que é possível fazer música autoral, original, diferente e interessante nessa cidade esquisita e imensa. Que tem gente pra fazer, gente pra ouvir, que não é fácil mas que vale a pena. Mas é um pouco difícil falar em descendência porque o pessoal da vanguarda original via de regra ainda tá por aí a mil, lançando coisa nova, então as gerações vão se confundindo, trocando. A gente quer mais é entrar nessa confusão”.

E não mediram esforços para se misturar: além da inspiração em Itamar, o grupo já dividiu o palco com alguns dos principais protagonistas daquela cena (Arrigo Barnabé, Banda Isca de Polícia, Ná Ozzetti, Alzira E, Suzana Salles, Orquídeas do Brasil, entre outros) e de se enturmar com artistas que orbitam ao redor deste grupo (como Tulipa Ruiz, Tom Zé, Maurício Pereira), além de ter seu primeiro álbum produzido por Paulo Lepetit. “A inspiração, na verdade, veio um pouco da necessidade”, continua João. “Lá nos idos de 2012 o Alex já tinha juntado a gente pra fazer um som assim meio vanguarda paulista. Tínhamos ensaiado umas poucas vezes, começado a levantar um repertório e conversado sobre as influências – Itamar já era a maior -, mas tudo naquele estágio bem preliminar de banda que quase-existe. Aí uma outra banda que o Sampaio tinha acabou e eles tinham um show marcado pra dali a duas semanas; ele ligou pra todo mundo, a gente escolheu o nome, se matou de ensaiar – algo que logo se tornaria um hábito -, levantou um show e seguiu dali.” Além de João e Alex, a banda ainda conta com Luca Frazão (violão de sete cordas e voz) e Joera Rodrigues (bateria).

O guitarrista lembra dos primeiros contatos que fizeram com os integrantes da vanguarda paulistana: “Teve um marco inicial bem claro nisso tudo que foi um evento em 2015 no qual tocamos antes da Isca de Polícia – a ideia dos produtores era justamente esse encontro de gerações. Aí tiramos um arranjo bem cascudo do Itamar pra impressionar – “Peço Perdão”, do disco Às Próprias Custas S/A – e funcionou: conhecemos o pessoal todo da Isca e o Lepetit falou pra gente que tinha um estúdio e adoraria que a gente gravasse lá. Dito e feito, em 2016 sai nosso primeiro disco com produção dele, que trouxe junto as participações incríveis de Arrigo Barnabé e Tom Zé. Com esse impulso inicial do Lepetit a gente foi indo atrás dos nossos caminhos pra buscar todo mundo daquela geração, querendo aprender: dividimos palco com Suzana Salles e Vange Milliet, com as Orquídeas do Brasil, Alzira E, gravamos no disco do Tom Zé, só alegria. Em 2018 fizemos uma turnê estadual em que cada show teve uma participação diferente desse pessoal, como o Maurício Pereira e a Ná Ozzetti. Estamos sempre nessa busca, que enxergamos um pouco como um longo processo de pesquisa mas também como uma realização pessoal e profissional gigante.”

“O jeito que esse processo de pesquisa se traduz no nosso trabalho é um pouco misterioso pra nós mesmos, continua o guitarrista. “A gente tenta assimilar, se apropriar e depois fazer do nosso jeito, mas o que sai e o que soa fica por conta do ouvinte. Mas claro que existem algumas inspirações mais diretas e conscientes, como estar no nosso processo de arranjo a coisa Itamarística das linhas instrumentais individuais se somando, um negócio meio contraponto até, que sempre nos fascinou e que a gente enxerga muito também nos trabalhos de um pessoal mais recente aqui de SP que admiramos demais, como Metá Metá, Passo Torto, Juçara Marçal…”

Teto será lançado nesta sexta-feira.

Foto: Manoela Meyer

Foto: Manoela Meyer

Célebre autora de obras intrinsecamente ligadas ao dia a dia do paulistano, como o Masp e o Teatro Oficina, a arquiteta Lina Bo Bardi é homenageada pela Trupe Chá de Boldo no primeiro lançamento do grupo em 2020, o EP Viva Lina. São cinco faixas que festejam a importância da artista paulistana e falam da relação que a arquiteta tem com a própria banda, que escolheu o Trabalho Sujo para lançar o primeiro single, “À Lina”, cujo clipe, gravado no próprio Oficina, você vê em primeira mão abaixo. O disco será lançado no último dia deste mês.

Também bati um papo com alguns dos integrantes da banda, que fará o show de lançamento no teatro do Sesc Pompeia (outra obra da Lina) no próximo dia 8 de fevereiro (mais informações aqui).

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Entrevistei, para a revista Trip, a jornalista Roberta Martinelli, o produtor Décio 7 e as cantoras Letrux e Luedji Luna sobre o espetáculo Acorda Amor, que apresentam canções de resistência da história da música brasileira ao lado de Maria Gadu, Xênia França e Liniker Barros e que agora virou disco – e também antecipamos a capa do disco, que será lançado no dia 28 de janeiro. Confere lá.

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“A vida só começou”, canta o cantor e compositor paulista Bruno Schiavo no single “Califórnia”, que lança em primeira mão no Trabalho Sujo. Gravado por Negro Leo e por Ana Frango Elétrico (com quem compôs “Tem Certeza?” de seu disco mais recente), Bruno está prestes a lançar seu primeiro disco solo, depois de passar pelo grupo Eueueu, que descreve como “um power trio entre a canção e o improviso de garagem baseado no ideal de horizontalidade em voga em 2013”, que montou ao lado de Daniel Scandurra e Chico França (autor da ótima “Promessas e Previsões”, lançada por Ana, no ano passado).

No novo trabalho, o foco é a canção pop. “De modo geral, esse primeiro trabalho é metade uma compilação entre o que fiz nos últimos dez anos, metade escrito no calor das gravações. Dá pra entender cada faixa como uma descoberta a seu modo, um álbum feito todo de começos”, me explica. “O disco teria uma definição específica ou pessoal de pop, possivelmente um metapop que envolve gradações de curiosidade do ouvido, exemplos: o quanto a escuta pôde ser ampliada em meio ao mainstream dos anos 90 e 2000; desde o pop de invenção dos Beatles; a partir de uma procura específica música popular brasileira adentro; do choque multicultural do download e da obsessão musical que ele democratizou. Um pop que passa pela noção de que estranhar intervalos, dissonâncias, contratempos e em seguida assimilá-los é um processo tão ou mais fundador da experiência quanto a repetição; que acredita na dialética entre tais modos como lugar privilegiado de investigação. Processo de composição tendente ao zero, ao utópico do presente imediato do improviso na canção, sem recurso a gênero, baseado na desmontagem da própria gestualidade musical afetada pelo pop, cujos resquícios são selecionados, mantidos e valorizados. Como numa investigação retroativa do ouvido programado: deixei iscas de superfície, especialmente melódicas e na sonoridade geral, e iscas de profundidade, que vão se apresentando nas escutas sucessivas, daí principalmente nas harmonias e nas letras.”

Gravado a partir de 2018 no estúdio Rockit!, o disco foi conduzido pelo mesmo Eduardo Manso que ajudou Ava Rocha a moldar seu Trança – e isso acabou aproximando ainda mais Bruno da cena carioca, trazendo um time pesado desses artistas para o álbum. “Além de uma percepção de estilo totalmente imune a quaisquer desvios mais caretas meus, Manso tem uma noção inacreditável da função do ‘inaudível’ numa faixa, do lugar fundamental de não-evidência”, ele continua. “O incrível Trança de Ava Rocha cuja direção musical foi dele e de Negro Leo habitava minha imaginação sonora nesse período inicial das gravações. Convidei muito honradamente músicos que observava de perto há anos, admiração e afinidades só cresciam: Thomas Harres, Marcelo Callado e Antônio Neves tocam bateria; Felipe Zenicola e Pedro Dantas, baixo; Thiago Nassif, o próprio Manso e Marcos Campello, guitarras; Chicão, piano e sintetizadores; Nana Carneiro, Raquel Dimantas, Ana Frango Elétrico e Ava Rocha participam em coros. Luxo total, maior presente da vida. Vários amigos também estiveram próximos, ouvindo, comentando, discutindo, me recebendo no Rio, ajudando na produção em geral, da capa, imagens de divulgação e clipe.”

“Califórnia” é mais do que uma boa amostra de seu trabalho como uma introdução perfeita para o disco, um fio da meada que puxa para um universo tão estranho quanto pop, que mistura camadas de ruídos sonoros a melodias assobiáveis e letras contemplativas – e reconstruídas (“Amores Incríveis” é minha favorita). “O olhar pelo lado mortificante da rotina por si só propõe um distanciamento das coisas do mundo que, então, podem reaparecer tão objetivas e frias no plano da linguagem a ponto de exigirem do sujeito um ato de reconexão, de refundação de sentidos. Penso nas ‘superfícies plásticas coloridas desiludindo no sol’ do refrão de ‘Amores Incríveis’, uma canção só superficialmente alegre. A ironia, inapreensível de primeira pra muitos, é um produto da desconfiança na naturalidade dos gestos gastos, dos vícios do comportamento apesar de suas repetidas manifestações. O teatro que revela uma verdade ou a emulação da sinceridade parecem efeitos complementares em mão dupla que podem ambos engendrarem deslocamentos ‘desejantes’. Por esse caminho, não existe afirmação da vida sem trazer à baila negativa a transparência de segunda ordem. Há correspondências evidentes entre escalas, estilos, gêneros musicais cristalizados e afetos-padrão, ou seja, encontros que são o material incontornável da canção. Seria possível uma história da música popular enquanto provocação astuciosa a esse absolutismo sentimental, irmão mais velho da parte anestesiada do ouvido?”

Pergunto sobre as referências musicais para esse disco e a resposta é tão difusa – e passageira – quanto as próprias canções, embora dê uma bela medida do que pode ser ouvido. “Sou fascinado por gravações caseiras de versões demo de compositores que gosto, Cobain, Macalé, Lennon, Michael Jackson. Minha primeira aquisição fonográfica consciente – com muitas aspas – foi Dangerous. A segunda, Mamonas. Os Mutantes e os desdobramentos de Rita Lee e Arnaldo Baptista foram irreversíveis junto com João Gilberto na adolescência; o Gilberto Gil da apresentação na USP e do Luminoso; Low de Bowie, a estranheza pop ali. Noel Rosa e Assis Valente, Duke Ellington, Nina Simone e todos os songbooks da Ella Fitzgerald, Djavan, Björk, Lupicínio, Radiohead, Super Diamono, Antena 1. Essa pergunta sempre evoca um palimpsesto perigoso, essa é uma lista hoje, só, e hoje também posso trocar com a diversidade da minha geração, o que certamente é o melhor de tudo.”

E já que o assunto é geração, pergunto sobre a influência desta cena carioca da última década, em constante reinvenção, tão presente no disco, e ele aponta para o selo Quintavant. “O conhecimento da cena musical carioca em torno da noite e do selo Quintavant me causou espanto: avanços intensos do free jazz ao ruído, sempre permeado por uma grave consciência minimalista e por uma ética técnica sem engessamento. O que é muito incrível, acompanhado por uma crítica forte e ao mesmo tempo generosa como a de Bernardo Oliveira. Algo que com certeza merece um aprofundamento histórico e cuja influência ainda não sabemos como medir, mas com certeza será profunda.”

Foto: Vitória Proença

Foto: Vitória Proença

O violão bate pesado enquanto Kiko Dinucci abre os trabalhos de 2020 anunciando em primeira mão seu segundo disco solo, para o Trabalho Sujo. “Olodé”, primeira faixa que mostra de Rastilho, disco que lança em fevereiro, é uma boa amostra do novo trabalho, extremo distante de seu primeiro disco solo, o punk Cortes Curtos. “Olodé, Odé Lonan, Odé Asiwaju”, canta em iorubá (“Chefe dos caçadores, caçador de caminhos, caçador chefe”. Refeita as pazes com o violão (“não briguei com nenhum instrumento”, ele me corrige), ele o leva de volta ao terreiro sozinho, com poucas participações além de sua voz e suas cordas – como o cativante coro que repete as frases neste primeiro single. “É uma música que compus em homenagem aos orixás caçadores, em especial pra Oxosi, mas que pode ser também pra Logun Edé ou Ogun”, ele me explica. “A canção representa muito bem o clima do disco, agressivo e rítmico. Como se fosse a antítese da imagem mítica do violão macio servindo como cama pra uma canção bonita. No disco o violão é o destaque, está na frente, acima da voz, chega dando rabo-de-arraia, atropelando.”

“Eu senti saudade do violão depois de passar pelo trator guitarrístico que foi o Cortes Curtos”, continua, falando sobre o disco lançado em 2017 que gravou em formato power trio com Marcelo Cabral e Sérgio Machado. “Queria revisitar a minha maneira de tocar, riffs de baixo meio gambri marroquino, ataques de agudo em contraponto. Queria dedicar um disco a esse jeito de tocar. Já tinha exercitado isso no Duo Moviola, no Metá Metá e não queria deixar essa maneira de me expressar lá atrás. O disco foi uma forma de revisitar essa onda também. Esse violão vem muito da minha limitação técnica, eu sonhava em tocar aqueles choros fodões e quebrava a cara, então fui dando o meu jeito. Tenho uma relação afetiva com o violão, foi o meu primeiro instrumento, me acompanhou na infância, na adolescência punk remendado com durex, nas rodas de samba. Me acompanhou nos períodos mais importantes da minha formação.”

Quando eu pergunto sobre uma possível briga com o instrumento, ele explica melhor. “O que acontece é que em um determinado momento eu senti muito a limitação timbrística do violão, um violão é sempre um violão. Então voltei a tocar guitarra pra explorar pedais e outros timbres. Geralmente o violão é um instrumento que ocupa muito espaço na música brasileira, faz baixos, harmonia, ritmo, melodias, carrega a canção nas costas. Tocando guitarra elétrica eu exercitei outros jeitos de ocupar espaço, às vezes com menos notas, com menos responsabilidade que o violão. Teve essa fase do Metá Metá pro MetaL MetaL, do Passo Torto pro Passo Elétrico. Exercitei com a guitarra do Rodrigo Campos uma espécie de teia melódica e rítmica que foi importante para discos como o Encarnado da Juçara Marçal e A Mulher do Fim do Mundo da Elza Soares. Depois do Cortes Curtos eu passei os últimos três anos muito interessado em sintetizadores e samplers. Estou sempre nessa procura, muito até pela minha limitação técnica como músico. Agora voltei pro violão. O que junta todas essas fases é a característica rítmica. O jeito com que eu me aproximo da música é muito baseado na percussão, só que sem tocar instrumento de percussão.”

O repertório do disco é quase todo novo – apenas duas músicas já haviam sido compostas anteriormente. Até que, ao quebrar o pé num acidente de skate no ano passado, ele resolveu tirar o disco da cartola. “Tive que ficar de molho um tempo e pensei: agora eu vou ter que fazer esse disco. Já tinha vontade de fazer, mas precisei, digamos, de um empurrãozinho”, ri. “O disco foi gravado em três dias, no começo de setembro de 2019, por André Magalhães e Bruno Buarque, que o mixaram em mais três dias no começo de novembro. Foi gravado e mixado na fita, cem porcento analógico, na unha, sem edição ou overdub de violão, os takes de violão são de apenas um track, é sempre um violão sozinho tocando”. Além de Kiko, o disco conta com poucas participações especiais: Ava Rocha, Juçara Marçal e Ogi, além do coro formado por Dulce Monteiro, Gracinha Menezes e Maraísa.

As influências são clássicos da música brasileira. “Eu tava a fim daquele som do Sergio Ricardo na trilha do Deus e o Diabo Na Terra Do Sol, do Glauber Rocha, aqueles ecos que também estão no Geraldo Vandré de Requiém Para Matraga que estão no filme Bacurau, do Kleber Mendonça e Juliano Dornelles, e originalmente no filme A Hora e a Vez de Augusto Matraga, do Roberto Santos. Aquele som do disco do Pedro Santos eu gosto muito também. E Eu ficava pensando naqueles ecos dos filmes do Zé do Caixão. O Bruno e o André usaram os delays e reverbs analógicos. Eu ficava mostrando esses sons pros caras.” Ele também cita mestres como Dorival Caymmi, Baden Powell, Rosinha de Valença, João Bosco, Nelson Cavaquinho, Gilberto Gil e Edu Lobo como referências nestas composições. O show de lançamento acontecerá dia 15 de fevereiro, no teatro do Sesc Pompeia. “Ao vivo deve ser bem parecido com o disco, talvez mais rápido e agressivo. O show tem que ser mais que o disco, tem que ter um grauzinho a mais”, conta. “Quero levar a formação do disco para os palcos sempre que possível, quando não der, farei sozinho.”

A foto da capa

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Teago Oliveira, Douglas Germano, Chico César, Alessandra Leão, Jards Macalé, Emicida, Rakta… Conversei com alguns dos autores das melhores capas de disco com fotografia de 2019 em uma matéria para a revista Zum – leia lá.

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O músico, cantor e compositor carioca Pedro Dias Carneiro – melhor reconhecido pela sigla de seus nomes, PDC, ou, mais especificamente, Vovô Bebê – é um dos integrantes de uma turma que está aos poucos desconfigurando a cara sonora do Rio de Janeiro. Com a faixa etária flutuando pelas duas décadas de idade, esta safra de músicos nasceu à sombra da geração + 2 (a turma que unia os experimentos de Kassin, Domenico e Moreno à MPB-indie do Los Hermanos) e foi acalentada na Áudio Rebel com muita experimentação sonora na veia (nutrientes providos pelo selo Quintavant). Seu principal nome é a revelação deste ano Ana Frango Elétrico, mas há vários outros artistas – e não apenas músicos – orbitando-se mutuamente. E PDC, que já passou dos trinta, é o vovô do grupo e o próximo a dar a sua cara, anunciando o lançamento de seu terceiro disco, Briga de Família, pelo selo Risco, que também lançou o disco mais recente de Ana, o maravilhoso Little Electric Chicken Heart. E ele antecipa em primeira mão para o Trabalho Sujo o clipe da faixa que batiza e abre o disco, uma avalanche sonora que empilha questões como “Quem deixou mamãe descer com o martelo na careca do vovô?” e “Quem deixou o frango em cima da mesa dando sopa pro cachorro?” em menos de dois minutos de uma canção fantasiada de cacofonia bate-estaca.

“O disco é o registro desse show que tenho feito com banda desde 2017. um pouco devagar, feito sem outros apoios, sabe como é”, ele me explica por email. “Foi gravado em basicamente três etapas: bases, sopros e vozes, entre mortos e feridos nos últimos dois anos. Depois o Gabriel Ventura (guitarrista) veio aqui a gente passou umas coisas pelos pedais dele, tudo aqui no estúdio, o antigo 304 do Chico Neves, hoje carinhosamente chamado de Estúdio do Vovô.”

“Nos outros discos eu toquei quase todos os instrumentos, não tinha banda, apenas uma ou outra participação”, ele compara com os trabalhos anteriores. “Nesse além dos amigos músicos absurdos que consegui juntar, ainda tive a sorte de ter a leveza da voz da Luiza Brina em uma das faixas, e o grande Luís Capucho incorporando um inusitado carioca. Na faixa título, aproveitei o tema família pra chamar o Leonardo Musse pra tocar trompete e o Conrado Kempers pra samplear uns sons de rádio, ambos fazem parte da minha primeira banda Dos Cafundó.”

É a deixa para falar sobre esta geração – e apresentar sua banda. “Humildemente, entrei num grupo bão. É Guilherme Lírio no baixo, Uirá Bueno na bateria, Tomas Rosati na percussão, Aline Gonçalves no clarinete, Karina Neves na flauta, Jonas Hocherman no trombone, Ana Frango Elétrico nos vocais, o Gabriel Ventura nos efeitos e o Bruno Schulz pilotando o som. Só mestre guerreiro se virando como pode pra viver de música no Rio.”

E continua: “Eu acho que o sapo tem que pular. E acho que o Rio, apesar de ser historicamente um dos centros culturais do país, se continua sendo é porque o pessoal aqui é quente. Então sim, tem uma galera tocando fogo aqui na música e nas artes, muita gente, em muitos Rios de Janeiro. Eu tenho a sorte de conhecer uma pequena parte dessa turma, e cada um vem de um lugar né, acho que se tem algo parecido com alguma cena que eu faço parte é importante citar a Audio Rebel, o Escritório e agora o Aparelho, espaços que sempre deixaram as portas abertas pra música independente aqui.”

O disco que sai no fim de janeiro é o primeiro com esta formação, uma vez que gravou seus dois discos anteriores praticamente sozinho. O primeiro, inclusive, era em seu próprio nome – e “Vovô Bebê” era o nome de uma das faixas, que acabou sendo a forma que ele começou a se identificar nas redes sociais. “Quando o disco surgiu, a ideia era ser o último Vovô Bebê, a morte do Vovô. Os outros têm uma temática mais de resgate, de busca por serenidade, aceitação acho. Esse tem mais a ver com ruptura, conflito. É briga de família, é briga. mas é família. mas é briga. Então, mesmo que como música não entregue exatamente o que é o disco, achei que hoje em dia fazia sentido começar com a morte do Vovô, com uma martelada na cabeça, e partir daí.” Na cabeça do vovô e dos ouvintes – a faixa é a mais atordoante do disco, pra não deixar dúvidas sobre suas intenções.

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Conversei com a cantora e compositora pernambucana Karina Buhr sobre o lançamento de seu novo álbum, Desmanche, em uma entrevista feita para a edição de novembro da revista da UBC – que pode ser conferida também no site deles.

Percussão protagonista

Em seu quarto álbum, Desmanche, a cantora e compositora Karina Buhr canta o peso dos tambores e da situação política no Brasil de 2019

Karina Buhr é sucinta quando pergunto quais as principais inspirações para seu quarto álbum, o recém-lançado Desmanche: “Os tambores e o Brasil”. A explicação vem da situação que nosso país vem passando, às trevas dos novos governos, e da velha paixão de Karina pela percussão, colocada em primeiro plano neste seu quarto álbum. “A ideia foi quebrar totalmente com o que vinha fazendo. Mudei completamente a formação da banda e o modo de gravar, foi uma ruptura”, explica.

Desmanche marca a volta da percussão como elemento central em sua composição.
Meu instrumento é o ritmo, todas as músicas que faço partem daí. Nos outros meus três discos solo os tambores foram tirados no momento dos arranjos, embora a ideia rítmica tenha sido mantida. Alguma coisa no espírito que ia pra um lado mais rock fazia isso acontecer naturalmente. Dessa vez resolvi mudar isso e não só manter as percussões nos arranjos finais, como trazer ela de volta comigo pro palco e tirar a bateria. A percussão sempre foi um elemento central nas minhas composições, mesmo não quando não estão aparentes.

Desmanche é um disco político em vários níveis, não apenas no sentido de um disco de protesto.
Sim, na poesia dele tem a violência do estado racista, o descaso com a moradia da população e o respeito ao chão embaixo dos pés. Em “A Casa Caiu” falo de movimentos por moradia e também do crime de Brumadinho, “Sangue Frio” fala da violência do Estado, “Temperos Destruidores” é sobre as das guerras do mundo “por tempero e deuses”, “Lama” fala da realidade de uma cidade, Recife, de festa e violência. Mas também tem um lado manso, que acho que é o ponto de sobrevivência, um banho num rio de uma outra dimensão, coração transposto e não um leito de rio, “Vida Boa é a do Atrasado” é leve, uma brincadeira, “Chão de Estrelas” fala de festa, tem um mistura de tensão e calma.

Qual o papel da cultura e da música especificamente para enfrentar o desmanche cultural que os atuais governos estão implementando no Brasil?
Acho que a música, qualquer tipo de arte tem o poder de levar a gente pra dentro, de tirar da realidade e ao mesmo tempo de dar forças pra enfrentá-la e também instigar as pessoas pra troca de ideia e pra ação. No momento em que pessoas estão juntas num show, falam sobre letras e músicas e filmes uma potência enorme é gerada e mudanças significativas acontecem. Por mais que isso por si só não resolva nada, mexe como mentes, com ideias, move as coisas. É difícil falar sobre isso no Brasil porque vivemos um apartheid e a música não tem como ficar fora desse contexto. Tem música que é considerada melhor, tem passinho e funk criminalizados, Rennan da Penha preso por fazer girar cultura, diversão e dinheiro na favela. É assunto que não cabe numa resposta de entrevista.

Pappon e Volta, em Maastricht. Holanda, 1994

Pappon e Volta, em Maastricht. Holanda, 1994

Ambos no hemifério norte, cada qual em um continente, Cadão Volpato e Thomas Pappon criam seu primeiro projeto conjunto pós-Fellini, batizado apenas com seus sobrenomes. Volpato & Pappon começou há cinco anos com Thomas, que já está em Londres há quase três décadas, brincando com samples e os dividindo com Cadão, que ainda morava em São Paulo, num processo parecido com o do disco mais recente do Fellini, Amanhã é Tarde, de 2002. De lá para cá, compuseram cinco canções e nesse meio tempo, Cadão mudou-se para Nova York, tornando a dupla central do clássico grupo indie paulistano ausente de seu país no momento mais bizarro de sua história. E é assim, exilados do Brasil, que lançam, nas plataformas digitais, seu primeiro EP, batizado ironicamente com o título de uma das faixas, “Eles Ressuscitarão”. Bati um papo com os dois por email sobre este novo projeto.

Como este Volpato & Pappon começou?
Cadão – Acho que foi em 2015. A ideia do Thomas era fazer algo diferente do Fellini, mais experimental.
Thomas – Há 4 anos, voltei a fazer música aqui em casa, em Londres, comecei a brincar com um sample do Quarteto em Cy. Achei que podia servir para algo tipo Fellini, e o Cadão topou fazer letra e voz. Ele estava em Sao Paulo. Mandei a música, ele fez a letra, gravou a voz num iPhone ouvindo a música no fone de ouvido, e me mandou a voz. Eu mixei, acrescentei umas coisas.
Cadão – Começamos com… “Dinheiro” – claro, tudo foi sempre uma mera questão de…. Ele me mandou a música, eu fiz a letra e gravei no celular. Mandei de volta e ele fez o trabalho todo. Simples assim.
Thomas – Fizemos quatro canções em quatro anos. Nesse ano, achei que estava na hora de lançar isso de algum jeito, e que, para um EP, precisávamos de mais uma música.
Cadão – Lembro que a sensação foi sempre mais ou menos a mesma ao receber as músicas ao longo dos anos – a última, “Tudo tem seu tempo”, chegou aqui em Nova York em maio de 2019, e foi a que mais demorou para sair – e é a de que gosto mais no momento -: espanto. O Thomas sempre me surpreende.
Thomas – Insisti com o Cadão, que nesse meio tempo se mudara para Nova York, para retomar uma musica que a gente havia abandonado. Assim, rolou ‘Tudo Tem Seu Tempo’. Et voilà.
Cadão – Acho que os arranjos que ele fez para as cinco músicas são notáveis, estão em outro patamar da evolução de um talento que sempre admirei muito. E ele também sabe ser engraçado e devotado à ideia, toques naturais do Fellini.

A composição remota inspirou a criação?
Thomas – Acho que sim. O ‘Amanhã é Tarde’ foi criado assim, funcionou bem. A diferença é que, naquela vez, o Cadão veio a Londres pra gravar as vozes aqui em casa. Dessa vez foi tudo remoto.
Cadão – Não a distância, mas a composição em si. Porque sempre foi assim: a música primeiro, depois a letra. A música dita o que ela quer – e às vezes ela é uma tirana. O importante é que o barato de compor em dupla continua intacto.

O fato de vocês serem brasileiros exilados deste Brasil do final dos anos 10 influenciou no projeto?
Thomas – Difícil ser categórico nessa resposta. Será que a distância influencia? No caso do Cadão, o ‘exílio’ foi recente. Eu estou há 28 anos fora do Brasil, mas tenho fortes laços emocionais e culturais com o país. E em música, tudo o que faço é pensado como MPB. É onde enquadro Fellini, The Gilbertos e Pappon & Volpato. Por outro lado, sim, os dois ouvem bandas e artistas de fora. O Cadão curte Patti Smith, Bob Dylan, adora os poetas beat – deve ter sido uma das razões para curtir a ideia de morar em Nova York. E tudo isso tá no EP.
Cadão – Bom, eu estou em Nova York há dez meses, o Thomas já perdeu a conta do tempo em que está na Europa. Mas para mim o tempo tem passado como um jato – “O tempo envelhece depressa”, segundo o Antonio Tabucchi. Minha impressão é de estar longe há anos. Então, acho que “exílio” pode ser um definidor, porque muita coisa ficou para trás, incluindo um país. Note que uma das músicas já fala de Nova York. Outra (“Dinheiro”), parece não ter um país. Outra (“Eles Ressuscitarão”), recorda velhos verões. Outra diz: “Eu sempre estive longe”. E assim por diante. Tudo é muito sincero, podes crer.

Há planos de fazer shows?
Cadão – Não me parece que eles ressuscitarão. No entanto, quem sabe o cara não vem a Nova York e a gente arruma alguma coisa aqui, na raça, como fizemos em 1990 – e como está na música “Nova York 90”? Amanhã nunca se sabe.
Thomas – Não pra tocar essas musicas, elas são meio ‘intocáveis’. Mas outro dia consideramos— e curtimos — a ideia de fazer um show numa livraria em Nova York, e outro num cafe aqui em Londres. Em duo: voz e violão. Tocando musicas do Fellini. O saco é ter de ir atrás para agitar essas coisas.

mateus-aleluia

Em mais uma colaboração para a revista Trip, conversei com o mestre tincoã Mateus Aleluia às vésperas do lançamento de mais um álbum solo e de ter um documentário falando sobre sua trajetória (Aleluia – O Canto Infinito do Tincoã, previsto para dezembro), além de trazer em primeira mão o clipe da música “Confiança”, poema de Agostinho Neto, “o patrono da liberdade angolana, o primeiro presidente de Angola livre”, que ele mesmo musicou. Saca lá.