Em plena transformação

, por Alexandre Matias

Lê Almeida está mudando. O herói indie que estabeleceu um dos poucos portos seguros para o rock independente no Rio de Janeiro – a casa de shows Escritório, centro de um microssistema solar em que diferentes personalidades únicas da cena fluminense orbitavam ao redor -, ele aos poucos está expandindo suas fronteiras. E isso não diz respeito apenas aos limites geográficos, embora estas transposições tenham sido fundamentais para este novo momento. Desde que trabalhou com Doug Martsch do Built to Spill, encontrou caminhos para seu conjunto Oruã passear pelo hemisfério norte em paisagens norte-americanas e europeias que aos poucos foram atravessando sua concepção artística. Com o novo grupo, começou a fagocitar influências musicais que iam para além do indie rock e da música brasileira, alicerces de sua sonoridade até então e absorveu influências de música eletrônica, rock progressivo alemão, hip hop e free jazz, além de incorporar outras disciplinas para além da música. O resultado disso está em seu novo trabalho, I Feel in the Sky, gravado em várias cidades do mundo e que será lançado nesta sexta-feira e pode ser ouvido em primeira mão aqui no Trabalho Sujo. Essa expansão artística também tem um desdobramento espiritual, que o próprio Lê explica num texto de apresentação do novo trabalho que ele também antecipa aqui para o site. Saca só:

Ensaio sobre o céu

Eu queria encontrar palavras que definissem a sensação de estar no céu. Independentemente da crença e de qualquer orientação religiosa, apenas a sensação livre de se sentir leve o suficiente para estar tão alto quanto o céu. Não consegui encontrar essas palavras exatamente, mas encontrei um mundo de pensamentos, anotações e percepções sobre como criar e gravar fora de um ambiente violento, influenciando diretamente minha musicalidade e criando novos contornos sociais em minha maneira de pensar.

A gravação de um álbum às vezes se torna um jogo de paciência. Deixar um som amadurecer na mente enquanto ele toma várias formas e descobrir como dar sentido a tudo isso faz parte da experiência.
Passei vários meses viajando com minha banda Oruã e transformei esse material em gravações que acabaram se transformando em um esboço de um álbum. Foi durante a turnê de 2022 nos Estados Unidos que percebi que o único título que eu havia pensado até então tinha uma conexão direta com a estrada e o estado mental sonhador que a turnê causava em mim. I Feel in the Sky.

Alguém havia comentado em algum momento que eu sempre parecia feliz quando estava em turnê. Isso combinava com minha empolgação de me apresentar como músico profissional todas as noites, mas, além disso, acho que a felicidade de experimentar coisas novas me deu muita inspiração que só o tempo me fez perceber. Deixar minha realidade no Rio de Janeiro foi muito libertador.

Cresci em um bairro violento. Vivi lá durante a maior parte da minha adolescência, trancado no meu quarto gravando música, Soltando pipa em cima da laje em casa, andando de bicicleta e fugindo de brigas violentas na rua. Em uma dessas brigas, levei uma pedrada em um dos olhos e vi (pela primeira vez na vida) meu pai ameaçar alguém de morte. Embora eu soubesse que ele nunca faria isso, ficou claro para mim que vivíamos em uma filosofia explícita de “dente por dente e olho por olho”.

Deixei esse bairro em 2018, depois que meu pai morreu. Precisando de alguma forma de liberação, fiz longas turnês com o Oruã pelo Brasil e saí do país pela primeira vez, tocando com a banda americana Built to Spill em 2019. Viver na estrada me fez absorver novas formas de entender e expressar a arte. Essas novas noções me fizeram perceber que a música que eu criava tinha me ajudado a escapar da minha realidade, mas indiretamente tinha um tom violento e defensivo embutido nela. Comecei a sentir a necessidade de mudar isso.

I Feel in the Sky foi gravado durante os intervalos entre as turnês. Eu estava procurando uma respiração calma e constante para amadurecer essas músicas sem nenhum tipo de pressão, inclusive a minha própria. Basicamente, eu queria que as faixas soassem visivelmente diferentes umas das outras, como se tivessem sido criadas e gravadas propositalmente em ambientes muito diferentes. Isso aconteceu espontaneamente, pois eu levava alguns equipamentos de gravação comigo na estrada e aproveitava qualquer oportunidade para gravar aleatoriamente.

À medida que o conceito desse álbum foi sendo desenvolvido, percebi que a energia de cada ambiente de gravação afetava diretamente a formação das faixas. Até 2019, eu havia passado muito tempo gravando em uma sala comercial no centro do Rio de Janeiro. Esse local ficou conhecido como Escritório, um espaço destinado à produção e shows que eu e alguns amigos ajudávamos a manter desde 2013. Nesse espaço fiz inúmeras gravações, tanto minhas quanto de várias bandas diferentes. Naqueles anos, adquiri muitas habilidades, mas estava sempre trabalhando na mesma sala em um computador antigo e as vezes com fitas cassete. Depois de sair do país pela primeira vez, adquiri uma nova mesa de som portátil, um notebook e um novo programa de gravação. Com essa nova configuração, comecei a fazer experimentos na estrada, usando qualquer espaço e qualquer instrumento disponível.

Durante o período do fim da pandemia, morei em Búzios, no litoral do Rio, com dois amigos, João e Bigú. Eles foram meus parceiros musicais por muito tempo, mas morar juntos era uma novidade e nos permitia trocar conhecimentos com mais frequência. Nosso foco inicial nessa casa era mixar e gravar overdubs para o novo álbum do Built to Spill, mas também se tornou um espaço colaborativo que acabou formando o álbum Íngreme do ORUÃ e mais material solo meu. Alguns esboços de melodias mais serenas surgiram durante as manhãs em que eu dedilhava acordes calmos e gravava em uma Tascam 4-track.

Em abril de 2016, tive minha primeira experiência em uma residência artística musical. Ela aconteceu na capital de São Paulo. Durante esse período, comecei a me envolver com algumas pessoas do circuito de improvisação livre, fora da residência. Comecei a improvisar com Cacá Amaral, Henrique Diaz e Juliana R. Eram pessoas incomuns musicalmente para mim e muito acolhedoras. Fizemos algumas sessões e meu campo de possibilidades na guitarra e nas composições foi se expandindo cada vez mais em direção ao free jazz. Cacá Amaral foi uma espécie de mentor para mim na improvisação livre. Lembro-me dele me buscando de carro em uma estação de metrô para irmos à casa do Archela, meu xará. De lá saíram gravações incríveis e uma delas foi incluída no primeiro álbum do ORUÃ, representando outro tipo de ideia dentro da minha música.

Em outubro de 2023, apresentarei I Feel in the Sky em outra residência artística, em Seaview, em Washington (EUA), inserindo minhas noções atuais de improvisação em um ambiente completamente novo, imerso na natureza e próximo ao mar.

As adversidades sociais em que cresci nunca me fizeram sentir um artista. Foi viajar pelo mundo que me fez sentir um respeito significativo pelo que faço como arte genuína. Isso definiu meu projeto como um passe livre artístico que explora mundos novos e desconhecidos. Sem medo.

Terminei esse disco na minha cidade, aqui no meu bairro, depois de uma viagem que durou quatro meses e duas semanas, na qual cruzei mais de 10 países com o ORUÃ, entre os Estados Unidos e a Europa.

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