Às vésperas do dia das mães, Emicida lança o clipe da faixa que abre seu segundo disco. Batizada apenas como “Mãe”, ela narra a história de dona Jacira vista pelos olhos de seu filho como se ele estivesse num sonho.
E o clipe tem uma atmosfera tão parecida com o clipe novo do Radiohead que o inconsciente coletivo parece sublinhar o fato de que estamos nos sentindo perdidos num sonho. Será que é isso mesmo?
O jovem Emicida cada vez mais se consolida como um dos principais nomes da nova música brasileira. Já deixou a esfera do hip hop há algum tempo, mas em vez de simplesmente expandir seus horizontes para outros gêneros, prefere fazer que esses venham para a roda do rap, a rinha de rimas em que aprendeu a ser artista. Lançou seu novo disco O Glorioso Retorno De Quem Nunca Esteve Aqui em duas noites de gala no teatro do Sesc Pinheiros em São Paulo, na terça e quarta da semana passada, e pude assistir ao show da segunda noite (quarta, 18 de setembro) – apenas para atestar sua maturidade e compromisso com o espetáculo.
Pois por mais que Leandro cante a importância da música em sua obra (seja ao ironizar a relação entre música em dinheiro ou simplesmente ao celebrar que “música é luz” em “Hino Vira Lata”), é evidente que o MC ultrapassou a música e tornou-se um showman. Mais do que simplesmente ser um mestre de cerimônias das próprias qualidades e defeitos, Emicida transforma cada gesto num momento para ser eternizado, cada verso em frase de guerra ou oração, cada recepção de um novo colaborador (e foram tantos!) em uma cerimônia de reverências, sempre acompanhado da banda formada por Doni Jr. (violão, cavaco e guitarra), Anna Tréa (violão e guitarra), Carlos Café (percussão), Samuel Bueno (baixo) e seu fiel escudeiro, o DJ Nyack.
E isso não pára apenas no palco. É seu domínio da platéia que impressiona. Ele consegue suplantar aquela zona cinzenta entre o você e o vocês e conversa com as centenas de pessoas presentes como se encontrasse cada uma delas casualmente num elevador, numa fila, num ônibus. Emicida é aquele cara transforma o tédio em história, o mágico que sublinha nossa rotina para nos surpreender com uma beleza distante dos nossos olhos. E ao conversar com a multidão, ele não parece que está falando num púlpito nem num palanque – parece olhar nos olhos de cada um dos presentes (aí os óculos escuros são providenciais) e contar-lhes uma coisa que ninguém mais percebeu. Ele troca a sedução natural de qualquer artista por um carisma que é bruto em sua intensidade, mas refinadíssimo no detalhe. A beca que lhe acompanha ao subir ao palco tira o ar moleque do boné e camiseta mas não parece exigir um respeito falso. Ele é sincero.
E, no palco, recebeu cada um dos artistas que participam de seu novo disco para recriar aqueles momentos eternizados em disco que, aos poucos, transformam este Glorioso Retorno em um dos melhores discos desta década. Na parceria com Pitty, “Hoje Cedo”, ele reforça um refrão que tem a tristeza dos samples usados por Eminem em seus momentos menos cínicos e um ar emo/new metal que contamina toda canção, deixando-a livre para Emicida vociferar seus versos.
Emicida + Pitty – “Hoje Cedo”
Um dos principais momentos do disco e do show, a bela “Crisântemo” já tem sua importância ao transformar o drama violento da favela em dor universal, num grande momento da música brasileira. A presença da mãe de Leandro, Dona Jacira, que não subiu ao palco na noite anterior, é forte e solene, e deixa a teatralidade da segunda parte da canção – que em vários momentos nos faz engolir em seco – ainda mais intensa. Um momento mágico:
Emicida + Dona Jacira – “Crisântemo”
Tulipa não estava programada para tocar no segundo show, apenas no primeiro, mas apareceu com toda sua doçura para o momento bonitinho do show:
Emicida + Tulipa Ruiz – “Sol de Giz de Cera”
Com Wilson das Neves, Emicida prostra-se como criança que vê um ídolo pelo espelho, querendo parecer respeitável apenas por estar na presença de uma personalidade inspiradora (mais mérito do seu Wilson, é verdade). Mas antes de convidá-lo para sambar sua “Trepadeira”, repete o discurso que fez na noite anterior, em que respondeu aos que criticam sua canção por dito sexismo, em tom mais bem humorado, próprio para receber a lenda-viva do samba:
Emicida + Wilson das Neves – “Trepadeira”
Este magnetismo ganhou força com as cinco vozes do Quinteto em Branco e Preto entoando o ótimo refrão de “Hino Vira-Lata”, outro momento mágico do disco novo de Emicida:
Emicida + Quinteto em Branco e Preto – “Hino Vira-Lata”
Quase ao fim do show, convocou Juçara Marçal para mais um momento épico:
Emicida + Juçara Marçal – “Samba do Fim do Mundo”
E antes de encerrar a noite, emendou seu já clássico pout-porri com pedras fundamentais da história do hip hop brasileiro, especificamente inspirado naquela noite.
Emicida – “Tic Tac (Doctor’s MCs)” / “Verão na VR (Sistema Negro)” / “Fim de Semana no Parque (Racionais MCs)” / “Us Mano e as Mina (Xis)” / “Fogo na Bomba (De Menos Crime)” / “Quatro Nomes de Menina (Pepeu)” / “Rap é Compromisso (Sabotage)”
Afinal, tudo aqui é hip hop. Por mais que transite entre a MPB e o samba de raiz, o rock e o sambão-jóia, Emicida carrega todos estes gêneros musicais para sua arena, o palco erguido com beats e cercado de palavras de ordem que, vez ou outra, sublinha com um holofote, no cenário cheio de frases, seu maior bordão: “A rua é nóis”. Pois ele traz cada um de nós para esta mesma rua chamada Brasil, nos puxando para a realidade pela orelha mas sem que isso tenha um tom de humilhação ou recalque. Ele quer que saibamos que estamos todos num mesmo barco em que o individualismo não faz o menor sentido. Um dos grandes shows do ano, de um artista em plena ascensão.
Abaixo, todos os vídeos que fiz, na ordem em que as músicas apareceram no show (e a foto que ilustra o post é do Ênio César e foi concedida pela equipe do Emicida):
Daquele jeito que você gosta…
Holy Ghost – “Bridge and Tunnel”
Cut Copy – “Free Your Mind”
!!! – “One Girl/One Boy”
Arcade Fire + David Bowie – “Just a Reflektor”
RAC + MNDR + Kele – “Let Go”
Azealia Banks + Pharrell – “ATM Jam (Kaytranada Edition)”
Robin Thicke + Pharrell + T.I. – “Blurred Lines (Nehzuil RnB Remix)”
The Internet – “Dontcha”
Chela – “Romanticise”
Emicida + Dona Jacira – “Crisântemo”
Cícero – “Fuga no. 3 da rua Nestor”
Washed Out – “All Over Now”
Arctic Monkeys – “I Wanna Be Yours”
Bixiga 70 – “Retirantes”
MGMT – “Cool Song No. 2”
Garotas Suecas – “Pode Acontecer”
Of Montreal – “Obsidian Currents”
Bárbara Eugenia – “O Peso Dos Erros”
Lulina – “Areia”
Franz Ferdinand – “Oblivion”
Os The Darma Lóvers – “Toda Verdade”
Assisti ao último dos dois shows do lançamento do novo disco do Emicida no meio desta semana (os vídeos já estão lá na TV Trabalho Sujo) e depois comento com mais sobre aquela noite. Antes disso, queria frisar a importância de seu novo O Glorioso Retorno De Quem Nunca Esteve Aqui, seu principal registro em disco. Em vez de expandir os horizontes do hip hop para outros gêneros musicais, Leandro Roque de Oliveira faz o caminho inverso, e convida outros gêneros – principalmente o samba – a entrar na arena em que hoje domina, a do hip hop nacional. O velho gênero, representado em diferentes escalas por pelo Quinteto em Branco e Preto, por Wilson das Neves, Tulipa Ruiz, Fabiana Cozza e Juçara Marçal, é o principal alvo do MC, disposto a provar sua importância e a registrar sua reverência num misto de empáfia e humildade que o tornam um dos principais nomes da música brasileira no século 21. Mas talvez o momento mais desconcertante do disco é quando ele dispensa convidados mais célebres e chama a própria mãe, Dona Jacira, para cantar em um momento único em que o drama épico do melhor do rap brasileiro ganha contornos familiares, íntimos e dolorosos, numa música que já tem seu espaço no cânone da canção brasileira. “Crisântemo” é da mesma estatura de “Deus Lhe Pague” de Chico Buarque, “Sinal Fechado” de Paulinho da Viola e “Tô Ouvindo Alguém me Chamar”, dos Racionais MCs. Emicida está no topo e ele parece saber para onde vai.
Abaixo, o vídeo que fiz da música na apresentação do Sesc Pinheiros.