Dois shows incríveis na noite deste sábado consagraram aquela que pode ter sido a melhor apresentação da Mostra Prata da Casa do ano. Abrindo os trabalhos, Rodrigo Caçapa visitou gêneros ancestrais com violas e percussão, apontando para um futuro moderno e nada deslumbrado. Depois foi a vez da incendiária Dona Cila do Coco transformar ao choperia do Sesc num imenso bailão, que culminou com a presença de Caçapa e Alessandra Leão ajudando a diva de 85 anos a fechar seu show – veja os vídeos abaixo. E domingo é dia de hip hop na Mostra.
A penúltima noite da Mostra Prata da Casa reúne duas forças da cena pernambucana – uma ancestral, com a magnética Dona Cila do Coco transformando tudo numa grande ciranda, e a outra mordeníssima, com o sereno Rodrigo Caçapa reinventando a viola. Os shows começam às 21h deste sábado, no Sesc Pompéia, e os ingressos custam R$ 8. Abaixo, o texto que escrevi sobre esta noite para o catálogo da Mostra.
Todo o Pernambuco
Depois do Rio, de São Paulo e de Salvador, talvez Recife já possa ser considerada a quarta força artística do Brasil, principalmente após o big bang chamado mangue beat que Chico Science detonou no início da década de 1990. Há vinte anos, a vida cultural da capital pernambucana era restrita a arremedos e cópias do que era produzido no resto do país e a auto-estima do estado praticamente não existia. Foi preciso que uma turma de amigos resolvesse conectar a cidade ao resto do mundo através da eletricidade, do hip hop e do rock, usando como base a vasta tradição secular de uma das regiões mais antigas do Brasil. Foi o choque entre o moderno e o arcaico, lição aprendida com o tropicalismo, que colocou Nação Zumbi, Mundo Livre S/A e o Pernambuco de volta ao mapa da música brasileira e, principalmente, recuperou o amor próprio do estado que, aos poucos, contagiou todo o nordeste e chegou até Belém. Dos nomes que surgiram após este primeiro grande evento, dois são contemporâneos dos anos 90 embora só tenham lançado seus discos no século atual. Dona Cila do Coco foi uma das primeiras artistas de raiz resgatas por Chico Science e incendiou o público da choperia com sua cantiga apaixonante cercada de uma banda que era puro ritmo, fazendo desabrochar rodas de dança pela platéia. Já Rodrigo Caçapa, saiu da mesa de produção para lançar seu ótimo primeiro álbum solo (Elefantes na Rua Nova) no ano passado, em que mergulha no universo das violas e percussão para, no palco do Prata da Casa, modernizar toda uma tradição sem precisar de música eletrônica, letras em inglês ou misturar gêneros musicais. Com quatro violeiros e três percussionistas, recriou um Pernambuco tradicional bem parecido com o cantado por Dona Cila e os dois juntem unem quase um século de história pernambucana e shows acústicos poderossímos.
Que maravilha foi o show de Dona Cila do Coco na semana passada no Prata da Casa. Até quem mais tinha expectativa (como eu) ficou surpresa: do alto de seus 73 anos (“74 em abril!”, gritava), a velhinha transformou a choperia do Sesc Pompéia em um imenso bailão, com todo mundo disposto a se acabar de dançar. Não faltaram homenagens a Chico Science, Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga, mas o grande momento do show foi o final, quando ela fez todo mundo da platéia formar uma grande ciranda. Já tinha visto Lia do Itamaracá fazer isso no Recife, mas aqui em São Paulo, foi a primeira vez… Sente só:
Dona Cila do Coco – “Lia é Lia” / “A Rolinha”
Tem mais vídeos que fiz aí embaixo:
E encerrando o segundo mês da minha curadoria no Prata da Casa, tenho o prazer de apresentar uma mestra de um gênero – Dona Cila do Coco vai comandar o baile na choperia nessa terça – e promete ser memorável. Abaixo, o texto que escrevi apresentando-a para o projeto:
Cecília Maria de Oliveira é dessas lendas vivas da música nordestina. Com quase 80 anos e há décadas carregando o cetro do coco, ela só tem um disco lançado. Mas isso é secundário em sua carreira, pois o coco – um dos gêneros tradicionais mais antigos da cultura pernambucano e um dos poucos que já ultrapassa mais de um século de tradição – pertence a um universo necessariamente oral e qualquer tentativa de capturar seu espetáculo acústico de ritmo e melodia falha, justamente por perder a essência viva da tradição que a nobre senhora representa. Sua presença é o carisma personificado e a força intensa do seu cantar – familiar e expansivo ao mesmo tempo – conduz o público a uma utopia pré-industrial, de estrada de terra batida e lampiões a gás. Um espetáculo esplendoroso e enraizado, forte, feminino e doce, que parece tocar a apresentação como uma conversa de comadres, mas que aponta para o sublime.