Dodô Azevedo em Doze Cidades

, por Alexandre Matias

dodoze

O velho compadre Dodô Azevedo, pedra fundamental do indie carioca, resolveu gravar seu segundo disco enquanto perambulava pelo mundo divulgando e produzindo seus livros e filmes. Ex-baterista da PELVs, Dodô era do núcleo-duro do Midsummer Madness e comandava o programa de rádio College Radio, além de ter participado do já clássico encontro com Kurt Cobain quando o Nirvana passou pelo Brasil. Mas isso foi nos anos 90. De lá pra cá, Dodô assumiu um papel mais polivalente: coordenou o projeto Pessoas do Século Passado (que era site, livro e disco), refez o percurso de Jack Kerouac em On the Road no livro Fé na Estrada, ministrou cursos sobre Kubrick e lançou longas e curtas em festivais de cinema alternativo pelo mundo. Essa mudança de chave aconteceu justamente no lançamento do Alguma Coisinha, seu primeiro disco, composto apenas em cima de bases sampleadas de clássicos da música brasileira de todas as épocas – Dodô me mostrou esse disco quando o Trabalho Sujo estava começando a transição do impresso pra internet e ainda não tinha tanta certeza de sair nessa carreira solo. Felizmente mudou de ideia e agora lança o crowdfunding para materializar doze músicas gravadas em doze capitais pelo mundo todo em vinil vermelho, cantando a saudade do Brasil em cada uma das músicas.

A campanha para transformar Doze Cidades em vinil já está online e eu conversei com ele sobre a nova fase do trabalho. Dodô ainda liberou o clipe de uma das músicas (“Los Angeles”), dirigido por ele, exclusivamente para o Trabalho Sujo.

Conta a história da tua carreira solo, para além da PELVs? Ou melhor: como o Alguma Coisinha virou o Doze Cidades? O que aconteceu entre os dois lançamentos?
Minha carreira solo em música acontece toda a vez que outras atividades de expressão artística – fazer filmes, escrever livros – não dão conta de responder quem eu sou no mundo. Isso aconteceu duas vezes. No meio dos anos 90, com o Alguma Coisinha e agora, com o Doze Cidades. Entre os dois, um modus operandi punk, nos anos 90 um uso radical, sujo, faça você mesmo, de samplers – a ponto do disco ser pirata até hoje – para fazer algo que não fosse música eletrônica. Agora, duas décadas depois, o uso radical, sujo, faça você mesmo, da tecnologia para carregar na mochila um estúdio portátil e levá-lo a onze cidades do mundo. Entre um trabalho e outro, outras formas de arte me foram suficientes. Principalmente ter começado, em 2010, a fazer cinema, e filmar de modo radical, sujo, faça você mesmo. E levar longas metrages a festivais aqui e lá fora e, estupefato, receber prêmios por isso. O romance autobiografico Fé na Estrada, também tomou me ocupou por uma década. Mas faltava dizer alguma coisa sobre o mundo que não conseguia dizer na literatura ou no cinema.

Como sugiu a ideia do novo disco?
Cada um dos seis curtas e quatro longas que fiz nos últimos cinco anos foi filmado em uma cidade diferente do mundo: me impus a velocidade de produção de meus ídolos: a turma da No Wave americana Nova Iorque 70’s, Jim Jarmush, Lydia Lunch etc e a dupla Bressane/ Sganrzerla, que produziu uma dúzia de filmes em três anos, aqui no Brasil, no início dos anos 70. Botei na cabeça que estava na hora de invertermos um jogo de observação e diagnóstico. Fomos acostumados, desde às gravuras de Debret aos escritos de Verger, a sermos estudados e definidos por estrangeiros. E que tal se o brasileiro passasse a observar e diagnosticar os países do mundo? O que o olhar e um diagnóstico de um brasileiro poderia trazer de novo e útil para outras culturas. O Doze Cidades é isso: um brasileiro ao observar-se estrangeiro, consequentemente diagnosticar o lugar onde está. Um brasileiro dizendo para um londrino o que Londres é. Dizendo para um japonês o que Tóquio é. Dizendo para um português o que Portugal é. Nos intervalos de filmagens, principalmente nas horas ociosas de insônia por causa do jetlag, pegava um violãozinho ou nem isso, um iPad com fones e começava a fazer programações de baixo e bateria, gravava a voz com o microfone do celular. O mesmo processo criativao, repito, do artista de garagem. Ano passado finalmente acreditei que tinha, dentre as dezenas de músicas compostas e gravadas lá fora, uma dúzia de canções que daria um disco bonito, um disco triste, um disco de saudade da sua terra, um disco de observação sobre a terra dos outros. Então finalizei-o no Brasil e começei a mostrar para gravadoras. A Embolacha comprou a briga antes mesmo de escutar o disco.

Como o papel do artista tem mudado neste século? Se todo mundo produz cultura todo mundo consome cultura? Não chega uma hora que esse ciclo se esgota?
Quando eu estava num acampamento nômade na fronteira do Irã com o Iraque, há dois anos, observei que naquele grupo de 150 pessoas no deserto, naquele pequeno vilarejo primal, todo mundo era produtor de cultura. Havia as tecelãs com seus métodos milenares, os senhores fulineiros, produzindo peças maravilhosas como jogos de chá pintados à mão, quase todo mundo pintava, quase todo mundo sabia um instrumento, quase todo mundo escrevia. Era assim que todos vivíamos muitos milhares de anos atrás: todos, repito, todos produzindo cultura e consumindo cultura 24h. Este ciclo não se esgota. E, na verdade, só não se esgota se for praticado desta forma na qual estamos agora – do “todo mundo pode ser artista”. O papel do artista, neste início de século, é, como no início de cada século, segundo a História da Arte, fazer um balanço do quanto o progresso adquirido no século anterior nos afastou do que somos. E, nisso, o século 20 foi prodigioso. Daqui uns 20 anos eu liberaria o artista para olhar pra frente. Agora, como em todo início de século, repito, a hora é de olhar para atrás e organizar tudo o que foi feito. Ser um bibliotecário de tudo o que foi escrito no século 20, ser um arquivista de todas as imagens produzidas no século passado, ser DJ de toda a música produzida neste período e por aí vai.

Como você tem avaliado a atual cena musical brasileira?
Falando da cena indie: Sabe a onda atual do parto humanizado? Da comida orgânica? Da decoração DYU? Da maconha plantada em casa? Do chá verde detox? A cena atual da música brasileira é, hoje isso, parto humanizado, comida orgânica, coisas que façam bem. Uma cena que busca a desintoxicação dela própria e de quem consome a sua produção. Que impõe, empoderada porque não precisa mais de grandes gravadoras, sua própria velocidade, à despeito das demandas de mercado. E há a grande novidade desta década. A cena indie experimental carioca, da turma que se apresenta, produz e comercializa seus produtos no Audio Rebel. É estonteante a quantidade de artistas novos e interessantes que aparecem todos os dias, de segunda a segunda, nos palcos do Rebel.
Falando da atual cena brasileira continental, vejo-a muito pouco elitizada, muito pouco bossa-nova, onde Ivete Sangalo, Wesley Safadão e MC Bin Laden influenciam gente como Figeroas, e não causam urticárias, como o popular fazia com a cena indie de todo o século passado. A coisa mais bonita foi ver o Sepultura tocando no trio de Brown, carnaval passado. Até porque o rock, o rock mesmo, recusou-se a renovar-se neste século no Brasil. Hoje, rock é nostalgia. Tributo à Legião Urbana, show só com Hits dos Paralamas do Sucesso, volta do Planet Hemp, culto ao Charlie Brown, culto aos Los Hermanos, aos clássicos do Skank, do Jota Quest, que já viraram cássicos. Mas rock é um gênero careta, que se renova muito lentamente e sempre com os dois pés atrás. É meu gênero favorito. Mas é careta.

E este revival indie que aos poucos vem crescendo, como você encara isso?
Com a naturalidade de quem concluiu, nos anos 90, quando começou o revival dos anos 80, que no século 21 iria chegar a hora do revival do indie anos 90. Com a mesma naturalidade de quem tem certeza que em 2030 teremos um revival de Kayne West e Rihanna. O consumidor fica mais velho, com grana, e cria uma demanda pelos artistas que ele consumia quando jovem e não tinha grana. Por isso, na verdade, são falsos revivals. Você não ve nenhuma garota de 20 anos num show do My Bloody Valentine. A garotada ainda está descobrindo Joy Division, The Smiths, Arto Lyndsay – este um verdadeiro herói, guru, da garotada que hoje produz música indie no Rio -, Talking Heads. Deste ponto de vista, é um falso revival, esse indie. São só os consumidores de sempre, agora velhos e barrigudos, tendo condições de bancar o retorno disso. E isso não é nada ruim. Embora eu gostaria muito ver uma banda de moleques de 23 anos dizendo que fazem um som inspirado em Killing Chainsaw. Não vai acontecer. Não aqui no Brasil, não agora. Talvez quando pegar de vez o revival indie, este sim completo, que acontece hoje na América, onde as meninas de 20 anos adoram a Kim Gordon, a Joan Jett, onde bomba o instragram da filha do Kurt Cobain e da própria Kim Gordon. Será lá, na América, onde, a qualquer momento vai aparecer uma banda nova inspirada no Dinosaur Jr. Só quando nossa garotada ver isso, aí sim há a possibilidade disso acontecer. Embora eu ache, no fim das contas que, entre a garotada, o que vai prevalecer será a demanda por arte tipo parto humanizado. Nesse sentido, Doze Cidades é meu trabalho menos anacrônico, menos excludente, mais chega-junto.
É que de uns tempos pra cá “vamos” tem sido minha palavra favorita.

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