"I'm doing fine…"

Nunca tive nenhuma relação com a falecida Nuvem Nove, mas tem uma galera que cresceu e se acostumou a comprar e vender discos lá. A loja fechou as portas em abril deste ano e rendeu esse documentário, Saudades da Nuvem Nove, que é um pouco mais longo do que deveria, mas dá uma geral na história da loja e de sua fauna agregada – desde celebridades locais quanto Marcelo Nova, Massari, Kid Vinil, Fernando Naporano, entre outras figuras.

O elogio do feio

Além da matéria de capa (U2 e Stones) da Top Magazine de fevereiro, eu também publiquei essa, mais uma sobre o Sou Feia, Mas Tô na Moda – e funk carioca em geral.

A certa altura de Sou Feia, Mas To na Moda, filme de estréia da diretora gaúcha radicada no Rio de Janeiro, Denise Garcia, um dos inúmeros entrevistados do documentário sobre o papel e a presença da mulher no funk carioca pergunta-nos onde as “tchutchucas” e “cachorras” do gênero teriam aprendido que o excesso de sensualidade (elogio para uns, eufemismo para outros), presente em letras, gemidos, performances e posturas as levaria ao sucesso. Antes de esperar a resposta ele mesmo enumera: É o Tchan, “vai dançando na boquinha da garrafa” e outros sucessos familiares que tocam no Gugu e no Faustão.

Em outras palavras – se o sexo é aceito como meio de comunicação em diferentes veículos (das novelas da Globo aos trocadilhos de duplo sentido do pagode, passando por comerciais de cerveja, Bruna Surfistinha e as novas carreiras de Alexandre Frota e Rita Cadillac), por que no funk carioca ele incomoda? Por que os gemidos de Tati Quebra-Barraco, Vanessinha Pikachu e Deise Tigrona, os requebros de Lacraia e os sorrisos francos de Claudinho e Buchecha, Márcio e Goró e Mr. Catra são vistos com olhos tortos no mesmo país que venera a mulata, a garota de Ipanema e a loirinha do Big Brother Brasil?

Desde o último grande levante do funk carioca em escala nacional – em pleno Rock in Rio 2001, com o Bonde do Tigrão e a “Egüinha Pocotó” -, o gênero que já tem mais de quinze anos vem passando por uma reavaliação ética e estética. Por um bom tempo renegado à condição de “som de quarto de empregada”, o funk do Rio ganha novas platéias, inclusive no exterior, toca em grandes festivais e vem levantando discussões sobre respeito de seu papel e natureza na cultura brasileira. Por que o buraco, no caso, é mais em cima…

Spice Girls
“O preconceito é totalmente social. Se o funk fosse produzido no Rio por garotas brancas de classe média do Leblon, elas seriam as Spice Girls brasileiras, mas como é feito por negras e faveladas, elas são as desbocadas, as ignorantes que não sabem o que estão falando”, explica Denise, cujo filme que estreou em janeiro e continua em cartaz é um dos reavaliadores da cena carioca. “Esta discussão sobre a conotação sexual das músicas não faz muito sentido, não numa cidade que se orgulha do carnaval que produz, onde mulheres desfilam literalmente em carne e osso – ou cobertas por purpurinas, está bem – para quem, no planeta, tiver televisão assistir. Então, se quisermos discutir o papel da mulher na sociedade brasileira, temos que colocar, no mínimo, o carnaval na pauta. O carnaval é uma celebração brasileira e o funk também. A diferença entre as mulheres que aparecem nos carros alegóricos do sambódromo e as funkeiras é que as primeiras entram mudas e saem caladas e representam a exuberância das formas femininas. No funk, as mulheres cantam, vestidas, e no geral não exibem as invejáveis formas dos destaques das escolas de samba, mas a conotação sexual está fortemente presente nestas duas formas de expressão da nossa cultura”.

“Gostar da música ou não é um direito de todo o cidadão”, continua a diretora. “Agora, no caso do funk, a questão é mais cruel: os detratores chegam a dizer que não é música, ou seja, querem desqualificar o movimento descaracterizando-o. Como não é música? O problema é que os favelados não têm acesso aos meios que os desqualificam, os jornais, as TVs, os fóruns, as universidades, os blogs, os sites e portanto ficam sem direito à resposta. E enquanto isso a covardia dos que tem acesso a estes meios corre à solta. Porém, os funkeiros têm seu público fiel, que comparece aos bailes, que consome o produto e que mantêm o funk existindo dentro das comunidades”.

“E a exploração de mídia e gravadoras é sempre predatória – esgotar o artista e depois pegar outro. e o funk não tinha suficientes figuras com voz ativa, mobilização, interesse e força necessária para bancá-lo como movimento”, continua o jornalista Sílvio Essinger, autor do livro “Batidão” (Ed. Record), que fotografa o nascimento até o início da adolescência do gênero. “O funk também não tinha a defesa cultural que outros gêneros tiveram, como é o caso do axé, que aliás foi uma influência decisiva para a explosão do funk sensual”.

“A questão tá na etmologia da palavra preconceito. É o pré-conceito, o conceito que a pessoa tem antes de conhecer”, teoriza o pai do gênero, o DJ Marlboro. “O problema do Brasil não é apenas a discriminação e o racismo, e sim o fato de estes acontecerem de forma velada. A mesma pessoa que te cumprimenta e te dá tapinhas nas costas, fala mal de você pelas suas costas só porque você é da favela. O cara nem conhece a favela, mas tem esse pré-conceito que na favela só tem gente fudida, só tem bandido….”

Mutação
“É som de preto, de favelado”, cantava a dupla Amylckar e Chocolate nos anos 90, “mas quando toca ninguém fica parado!”. A descrição que os dois fazem do funk carioca poderia servir para boa parte dos gêneros populares do século 20. Como o funk, estilos musicais como o samba, o jazz, o forró, o rhythm’n’blues, o rock, o reggae, o hip hop, a axé music e os subgêneros da música eletrônica (drum’n’bass, techno, house) também nasceram em regiões urbanas decadentes produzidos por descendentes da Diáspora Africana, conduzindo tudo de forma não-linear, pelo ritmo.

“O que a gente conhece como funk carioca é uma mutação do Miami bass (vertente do hip hop surgida na Flórida) que começou a surgir no fim dos anos 80 quando as galeras resolveram entoar seus gritos de guerra, bem no estilo torcida organizada, por cima das bases instrumentais ou imitando foneticamente o que ouviam em inglês nas músicas”, explica Essinger. “Isso aconteceu naqueles mesmos bailes de subúrbio e periferia que anos antes tocavam o funk de James Brown e seguidores e, na renovação dos balanços, incorporaram o disco funk e depois o rap. O primeiro a fazer um disco de Miami bass em português foi o DJ Marlboro, no LP Funk Brasil (de 1989), inventando MCs. Logo depois apareceram MCs de verdade, como Galo, Neném & Mascote e D’Eddy”.

Sílvio continua sublinhando as faixas que moldaram o funk como nós o conhecemos hoje: “Entre as gringas, as de Miami bass que fizeram sucesso nos bailes e serviram de base para os funks foram “Doo Wah Diddy”, do 2 Live Crew; “It’s Automatic”, do Freestyle; “Your Boyfriend”, do Boys From The Bottom. Entre as nacionais, os primeiros sucessos foram a “Melô da Mulher Feia” do Abdullah, “Feira de Acari” do MC Batata, “Melô da Funabem” do Grandmaster Raphael e o “Jack Matador” do DJ Mamute, da equipe Pipo’s. Essas músicas deram origem ao funk de montagens, base para quase tudo que a gente ouve hoje”. “Montagem”, na terminologia do morro é aquilo que comumente nos referimos como “remix”.

Mundo Funk Carioca
“O Cristóvão Colombo e o Pedro Álvares Cabral do funk chama-se Hermano Vianna”, explica Marlboro, falando sobre o antropólogo irmão do paralama Herbert Vianna. “Cristóvão Colombo porque foi ele quem primeiro entendeu que o que acontecia nos bailes era uma manifestação nova e brasileira, quando escreveu o livro “O Mundo Funk Carioca” em 1988″, explica o DJ, “e Pedro Álvares Cabral porque foi ele quem me deu o meu primeiro seqüenciador, permitindo que começasse a haver uma cena de funk produzido no Brasil”.

“Meu envolvimento era como ouvinte de discos, muito intrigado com o que tinha acontecido à cena desde o fim dos anos 80, o período estudado pelo Hermano”, segue Sílvio. “De repente, havia toda uma música nova, com assuntos novos, muito interessante, sendo ignorada como fenômeno cultural pela imprensa formadora de opinião lasse média”.

Mas desde que Sílvio começou a pesquisar para seu livro, em 2001, muita coisa tem mudado nesta aceitação do fenômeno. Já saíram duas coletâneas sobre o gênero na Europa (Slum Dunk Presents Funk Carioca, pelo selo inglês Mr. Bongo, e Rio Baile Funk: Favela Booty Beats, pelo selo alemão Essay), Marlboro já se apresentou na Espanha (no renomado festival Sónar, em Barcelona), Inglaterra, EUA (quando tocou no Central Park) e França e representantes do gênero passaram pelos principais festivais do Brasil, do Tim Festival (quando a rapper cingalesa M.I.A. convidou Deise Tigrona para dividir seu palco no Rio) ao Skol Beats (quando o DJ Dolores chamou Mr. Catra para rimar sobre seu set). “A internacionalização tem sido fundamental para as pessoas entenderem que o funk chegou pra ficar”, explica o DJ.

Mas Marlboro não tem pressa. “Na verdade, eu acho que isso tá acontecendo muito rápido, porque isso sempre aconteceu, da música que antes era considerada pobre, vulgar e de preto ser descoberta anos depois de seu auge, com uma espécie de refinamento”, conta. “Aconteceu com o samba: o Cartola foi preso quando era jovem por ser sambista, imagina, e depois só teve seu valor reconhecido quando ele tava velhinho, com 70 anos. Luiz Gonzaga também, quando ele tava no auge, forró era “música de paraíba”, pejorativo mesmo. Acho que graças a essa era de excesso de informação e facilidade de comunicação – internet, celular, TV a cabo – esse reconhecimento tá acontecendo enquanto o funk vive sua grande fase. É uma questão de tempo”, sorri.

Documentário revê os Rolling Stones jovens

Essa saiu antes do carnaval, mas inda não tinha postado aqui:

Alguém aí ainda agüenta Rolling Stones? Depois da overdose da megacorporação multinacional gerida por Jagger e Richards a que o Brasil foi submetido, voltar a máquina do tempo uns 40 anos e encontrar os atuais CEOs disfarçados de “rock stars” numa festa particular em uma cidade européia talvez seja o antídoto perfeito para anestesiar êxtases superlativos da passagem do grupo.

O documentário “Rolling Like a Stone”, que será exibido no Festival É Tudo Verdade (que começa dia 23 de março), em São Paulo, parte de um curto trecho de filme que registrou a passagem do grupo inglês pela cidade de Malmö, na Suécia, para reconstruir o conceito do grupo do outro lado do espelho. Centrado ao redor de uma festa particular da cena de rhythm’n’blues da minúscula cidade escandinava que contou com a presença ilustre de Mick Jagger, Keith Richards e Brian Jones (1942-69), o filme dos diretores suecos Magnus Gertten e Stefan Barg busca alguns dos coadjuvantes daquele dia para mostrar o que acontece com as pedras que deixam de rolar.

Somos atirados no meio de sexagenários saudosos de seus tempos de rock’n’roll, que recordam -uns com dor, outros com candura- dos tempos em que a sociedade poderia ser desafiada (e, quem sabe, o mundo ser mudado) com ruído elétrico, ritmo insistente e cabelos compridos. Integrantes de bandas anônimas (Gonks, Namelosers) e meninas apaixonadas pelo brilho dos ingleses colocam mais uma peça no quebra-cabeças cuja a imagem é a atual cultura pop –uma peça marginal, irrelevante, mas que mostra com precisão o impacto do rock na rotina do planeta.

Sem o áudio (a trilha sonora é composta por faixas das bandas citadas acima, de rock garageiro sem sal), o documentário é musicalmente insípido –mesmo para os fãs de carteirinha dos Stones (sempre em segundo plano, no filme), “Rolling Like a Stone” é, no máximo, curioso. Lento e enfadonho, o filme vale por mostrar de forma crua a triste realidade daqueles que sonham sonhos alheios. Como muitos no show histórico da praia de Copacabana.

Traje de gala

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Fui ver o Marcha do Pingûim e… sei lá. Quer dizer, em termos de visual, rito natural e captação documental, não tem o que dizer, o filme faz bonito em escala mega, um documentário Mundo Animal em grande estilo, meio Jacques Costeau com Amyr Klink e algumas cenas de cair o queixo. Não é à toa que o filme é o maior sucesso francês no mercado internacional de todos os tempos ou outro superlativo que o valha.

Mas aí, chega na pós-produção e neguinho fode tudo. Umas musiquinhas intragáveis, tipo Björk for dummies com Cardigans (ainda mais) infantilizado, cantando (EM INGLÊS! Cadê a tão famosa auto-estima napoleônica desse povo? Globalizou-se?) umas baladinhass de merda que comparam qualquer coisa (amor, beleza, a vida) com gelo, frio ou neve. Deprimente. Fora as vozes da família pingûim em off, com o pai, a mãe e o filho (“conversando” numa locução abobada, daquelas que crianças de cinco anos acham palha). Dava pra fazer o documentário sem emitir uma palavra sequer, mas aí entraram essa musiquinha e essa locução e um troço preza por pouco não desanda o filme num Querida Mamãe em movimento. Mas o filme presta pra fazer a moral com a namorada, inda mais se a tua mina (como quase todas) se derrete quando vê filhote de bicho.

PKD na BBC

“Was it Phil’s fault God talked to him or was it God’s?”

Cinema: “Sou Feia…” mostra funk além do fenômeno

Esse saiu na Folha de sexta, depois eu ponho a íntegra do papo com a Denise:

Quem foi na palestra que o DJ e produtor Steve Goodman ministrou na última edição do festival Hype, no Sesc Pompéia em São Paulo, assistiu a uma amostra em vídeo de MCs de garage duelando rimas entre si sem nenhum de base – no máximo, palmas. O palestrante, que também atua como discotecário grime sob o codinome de Kode9, disse que era impossível legendar o vídeo, devido ao excesso de gírias, referências e trocadilhos na batalha verbal. Mas percebia-se claramente uma matriz essencial, tanto na prosa quanto no ritmo, característico daquela cultura de rua, ainda que racionalmente intraduzível.

O mesmo acontece nos minutos iniciais de “Sou Feia Mas Tô na Moda”, estréia na direção da gaúcha Denise Garcia, sócia do cartunista Allan Sieber na produtora Toscographics. “Quem nasceu, nasceu/ Quem não nasceu, não nascerá”, canta, sem acompanhamento, o MC G, logo na primeira cena do filme. Logo a câmera corre para um churrasco na Cidade de Deus, em que MCs de funk carioca trocam rimas como numa roda de samba, só na palma da mão. Em português carioca, as gírias, referências e trocadilhos são igualmente intraduzíveis em legendas para outra língua, mas como na batalha grime, percebe-se claramente todas as nuances que caracterizam um gênero musical. Nuances que são escancaradas quando, minutos à frente, o produtor Grandmaster Raphael arenga um arremedo de vocal para encaixar-se nas bases pré-gravadas, igualmente inconfundíveis.

Esse é o grande trunfo de “Sou Feia…”, que ameaça falar do papel da mulher no funk do Rio, para dar uma pequena aula sócio-cultural sobre o fenômeno pop. “Meu interesse no funk começou em 2000”, lembra Denise, “quando os bondes de mulheres começaram a aparecer na imprensa. Porém, sempre que o assunto vinha à tona, era um tal de ‘esta música denigre a imagem da mulher’, ‘a mulher está se deixando tratar como objeto…’. Eu, como mulher, não achava isso”.

“Foi quando comecei a perceber essa barreira que separa a favela do asfalto. A coisa toda de mulher-objeto era uma desculpa para o preconceito que rola com o pessoal da favela, pois uma cidade que se orgulha do carnaval que faz, não podia estar falando sério. Era falso moralismo mesmo. Aí que comecei a pensar em fazer um documentário”, explica a diretora, que começou o filme através da emblemática Tati Quebra-Barraco, que registrou se apresentando grávida de oito meses.

“Comecei pelas mulheres porque estava fascinada com a coragem, cara de pau, senso de humor das funkeiras. Porém, quando comecei a conhecer e entender o movimento melhor, vi que não fazia sentido deixar de lado a história que eles todos iam me contando, então resolvi abrir geral”, continua a diretora. “Fiquei com vontade de me meter a tentar explicar o contexto. A única certeza que eu tinha desde o início é que, fosse o recorte que fosse, essa história seria contada por funkeiros, sem filtro acadêmico”.

Mas a grande estrela do documentário, que ainda conta com uma estarrecedora versão à capella para “O Rap da Felicidade” com Cidinho e Doca (soul na veia), é Deise da Injeção, que conquista pela simplicidade. “A primeira entrevista que ela me deu foi emocionante porque ela estava numa fase que pensava que nunca mais iria poder viver de fazer música. Ela foi muito sincera e me cativou. Desde então, sempre que me entrevistavam, eu sugeria que entrevistassem a Deise, pois ela era a única do filme que não estava fazendo shows. E, hoje, nem precisa falar né: tá fazendo muitos shows, largou o emprego de doméstica, foi pra França, tocou com a M.I.A.”.

“Mas a maior emoção foi ter enfiado uma coisa na cabeça e ter ido até o fim mesmo sem ter tido um centavo para realizar”, desabafa a diretora. “Eu não acho que a gente deva se orgulhar de trabalhar sem grana porque é um trabalho e é preciso poder sobreviver dele, mas deixar de fazer um projeto que se está a fim porque nenhuma empresa quis entrar, isso não! Nós aprovamos R$ 450 mil reais na Lei do ICMS, mas nos contatos que fizemos a resposta era sempre a mesma: ‘achamos que o assunto do seu projeto não se enquadra no perfil de nossa empresa’. Vai entender isso: empresa operando em pleno Rio de Janeiro funkeiro, como é que não se enquadra?”.