Django Livre: Quentin Tarantino clássico

, por Alexandre Matias

Eis a resenha que fiz para o Django Livre, no site da Galileu:

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Um clássico de Quentin Tarantino

O que torna um filme clássico? O momento em que ele é lançado, se ele consegue registrar as inquietações de seu tempo a ponto de entrar para a história como um espelho daquele momento. Grandes atuações. Uma fotografia impecável. Uma direção segura. Cenas que, apenas com o casamento de som e imagem, conseguem sintetizar sentimentos da cabeça do autor para a do espectador. Grandes frases. Bom ritmo. Boa narrativa.

E quais são as características que tornam um filme de Quentin Tarantino um filme de Quentin Tarantino? Uma metralhadora de referências. Grandes atuações. Diálogos longos com descrições detalhadas. Cenas de tortura física e psicológica. Vilões maus de verdade. Protagonistas dispostos a acertar contas. Bom ritmo. Grandes frases. Narrativa entrecortada.

Desde que o século 21 começou que Tarantino tenta transcender seu próprio cinema, aquele com as bases lançadas durante os anos 90. Cães de Aluguel, Pulp Fiction e Jackie Brown ficavam naquela zona cinzenta dos filmes policiais de baixo orçamento dos anos 70, que une os blaxploitation aos primeiros Scorsese e aos melhores filmes de Sam Peckinpah e, graças ao tempero de citações e referências pop de seu diretor, transformava todo este gênero considerado B no território dos novos clássicos.

Mas os anos 90 acabaram e Tarantino quis sair de seus anos 70 e dos Estados Unidos, abraçando uma carreira internacionalista. Com os dois volumes de Kill Bill visitou o Japão e o cinema asiático e Bastardos Inglórios passava-se na França para causar o encontro explosivos da elite do nazismo alemão com mercenários judeus do exército americano tentando se passar por italianos de araque. Entre os dois, visitou o cinema de drive-in dos anos 50 no bilhete duplo Grindhouse, codirigido com o comparsa Robert Rodriguez. E agora, com Django Livre, rebobina seu filme um século e meio no passado.

E se seus filmes anteriores apenas aspiravam a transcendência rumo a um cinema clássico (quase sempre esbarrando na caricatura, seja no gesto em que Pai Mei ajeitava sua barba em Kill Bill ou na gargalhada que a tela do cinema dava na sessão fatal do final de Bastardos Inglórios), em Django Livre ele deixa a caricatura em segundo plano. Tarantino está mais interessado em celebrar o western como um dos principais gêneros narrativos norte-americanos do que em fazer sua habitual graça com filmes antigos, músicas desenterradas ou listar produtos de consumo.

Por um lado, isso é um tanto complicado, uma vez que o filme se passa no meio do século 19 e as referências pop da época são praticamente nulas – afinal, não existia cultura pop então. Por outro, é a deixa para Tarantino exibir seu extenso leque de samples cinematográficos, empilhando referências de filmes antigos e que caíram no esquecimento ao mesmo tempo em que aponta para referências que não são propriamente pop. Cita a mitologia germânica, a Ku Klux Klan avant la lettre, a então recente consciência humanista europeia e chega ao extremo de acenar para Laranja Mecânica do Kubrick (veja o desconforto na cena em que tocam Beethoven). E, claro, superpõe cenas que se passam em uma época com músicas de outra – e este contraste acentua-se ainda mais quando a época no caso é o século retrasado.

Mas não é o clássico Tarantino que torna Django Livre clássico, e sim sua aspiração ao grande cinema. Como os irmãos Coen em Onde os Fracos Não Tem Vez, Tarantino aproveita sua incursão pelo velho oeste para filmar cenas que fazem mais sentido na tela do cinema, por maior que seja a tela da TV em sua casa. A cena em que o escravo Django (Jamie Foxx, atuação irrepreensível) e seu dono Dr. King Schultz (Christoph Watz, repetindo o papel de Bastardos Inglórios, só de outro ponto de vista) firmam parceria e atravessam as montanhas rochosas no inverno, ao som de “I Got a Name” de Jim Croce, ao mesmo tempo brinca com a ideia de road movie antes mesmo das estradas existirem, também dedica-se com esmero de documentarista e fotógrafo à paisagem natural dos Estados Unidos.

O glacê deste épico é uma saga de vingança, e nela o tempero Tarantino é carregado – e maniqueísta. Com poucos minutos de filme, ele já mostra que os caipiras do sul dos EUA não são apenas os vilões do filme como quando, ao morrer, espatifam-se feito personagens de desenho animado, causando riso. Já os escravos ganham a aura de protagonista não apenas personificada na busca de Django pela liberdade e por sua esposa, Broomhilde, no sul daquele país, mas também por serem vítimas de violência gratuita e gráfica, em diversos momentos, humilhantes e tétricos. A cena em que o escravo D’Artagnan é cobrado por não ter feito o que deveria fazer é revoltante – e Tarantino a torna assim de propósito, justamente repulsiva para nos lembrar que estas cenas aconteciam com nossos ancestrais recentes, quatro gerações para trás. Brancos rindo e se divertindo enquanto negros viram a cara, calados, para evitar a dor e a tristeza.

É quando surge dois dos principais personagens e das grandes atuações do filme, quando somos apresentado ao desprezível Calvin Candie (Leonardo diCaprio, genial) e seu escravo particular Stephen (Samuel L. Jackson, irreconhecível). Os dois dão aulas de dramaturgia à medida em que encarnam seres desprezíveis, opostos diretos aos personagens de Foxx e Waltz. Ao contrapor dois vilões e dois mocinhos sem dividi-los por raça, Tarantino dá seu xeque final à pseudopolêmica racista relacionada ao filme. O filme sublinha sim o holocausto da escravidão, mas lembra que bondade ou maldade independe de cor da pele.

E depois de nos provar isso com atuações e diálogos brilhantes, ele deixa o couro comer em tiroteios que não devem em nada às carnificinas em massa de Kill Bill. Django é um filme ousado, assustador, tenso e provocador, ao mesmo tempo em que não perde o bom humor e pode até provocar gargalhadas.

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