Blade Runner, hoje

ultraviolet-00

Fotógrafo inglês registra cenas na Ásia em 2017 que mostram que já vivemos o futuro cyberpunk imaginado nos anos 80 – tem mais fotos de Marcus Wendt no meu blog no UOL.

Estamos a apenas dois anos do 2019 sugerido por Blade Runner e embora não haja sinal de que vejamos robôs idênticos a seres humanos andando entre nós em pouco tempo, a realidade visual cogitada pelo filme de Ridley Scott já existe em 2017. Prédios gigantescos e submundos infestados de gente, iluminados pelas cores artificiais das luzes de néon e por logotipos de lojas e corporações, fazem parte do dia a dia de diferentes cidades pelo planeta – e a visão que o fotógrafo inglês Marcus Wendt, diretor do estúdio de design Field.io, teve ao passear à noite pelas cidades de Shenzen e Hong Kong, na China, só reforça isso. “Graças a uma dose pesada de insônia induzida pelo jet lag, eu comecei a explorar a área de Kowloon em Hong Kong e o Huaqiangbei – “o maior mercado de eletrônicos do mundo” – em Shenzen tarde da noite em uma viagem recente à China”, ele escreve em seu site. “Mergulhado em um escuridão estrangeira encontrei uma nova maneira de ver, estranha e alienígena. A luz sintética se infiltrava em meus olhos, o ar cheio de cores que se deslocavam se e ângulos inflexíveis. No meio da noite começava um novo dia.” Eis uma amostra de seu trabalho:

É bom pra ir entrando no clima do novo Blade Runner, que, pelo visto, promete.

30 anos de Neuromancer, por William Gibson

E por falar na Aleph, a editora está lançando uma edição comemorativa do marco zero do cyberpunk, o Neuromancer de William Gibson, primeira obra de ficção científica a vislumbrar o futuro com a presença da internet. Um dos atrativos dessa nova versão é uma introdução escrita pelo próprio Gibson para o aniversário de 30 anos do livro, lançado em 1984, que reproduzo abaixo:

neuromancer30

“Fico muito feliz que a edição de 30 anos de Neuromancer esteja sendo publicada no Brasil no século 21. Em 1984, o ‘Brasil no século 21’ era tema de ficção científica. Em 2014, o Brasil é um país que pulsa pleno de futuro, o futuro do verdadeiro século 21.

A história de Neuromancer se passa principalmente nas semirruínas do que ainda chamamos de nações “desenvolvidas”, porque essas eram as nações que eu conhecia suficientemente bem para que pudesse, a partir delas, lançar minhas extrapolações. Nações como o Brasil e a Índia eram cartas fora do baralho para mim, mas esses países são verdadeiros curingas do mundo hoje, ricos em possibilidades, muitas das quais, pelo que temos visto, ainda permanecem completamente imprevisíveis. Em breve, as maiores cidades do mundo não estarão nas nações outrora “desenvolvidas”.

O Brasil, em Neuromancer (ou o “além-mar” em Neuromancer, já que o país praticamente não está lá) queria sugerir algo assim: outro mundo, um lugar inteiramente distinto, onde a tecnologia pode ter se desenvolvido de uma forma diferente. Essa perspectiva continua nas duas sequências do livro e em minha obra posterior. Os personagens não visitam o Brasil, mas coisas interessantes emergem de lá, vindas a partir de um conjunto completamente diferente de possibilidades.

O fato de que leitores do século 21, vivendo em nações como o Brasil, ainda estejam dispostos a ler um romance de ficção científica anterior ao telefone celular e em que aparelhos de fax ainda estão presentes, me encanta. Para mim, Neuromancer nunca foi sobre “como o futuro seria”, mas sobre o que fazemos, como espécie, com as ideias que temos a respeito do futuro. É um romance sobre como a tecnologia nos modifica, ou fracassa em suas tentativas de nos modificar, geralmente de maneiras que os desenvolvedores dessa tecnologia sequer são capazes de antecipar.

O futuro imaginado em Neuromancer é um ato de improviso, um acidente complexo, pós-heroico, pós-mitológico. É justamente aí, eu acho, que o livro ainda funciona, apesar de sua tecnologia inevitavelmente obsoleta. E é por isso, eu acho, que nosso verdadeiro futuro pertence especialmente a lugares como o Brasil, lugares onde se trabalha necessária e concretamente com o improviso, com o complexamente acidental, todos os dias.

Em um novo mundo, talvez, meu estranho velho livro se torne um livro novo. Contexto é tudo. E eu invejo o de vocês.

–William Gibson
Vancouver, 25 de julho de 2014

Projeto 2501: Uma homenagem a Ghost in the Shell

gits-2501-00

Começou como uma homenagem fotográfica feita pelos norte-americanos Ash Thorp e Tim Tadder, mas logo o Project 2501 se desenvolveu em algo maior: uma iniciativa multinacional de recriar o clássico anime cyberpunk Ghost in the Shell, dirigido por Mamoru Oshii e inspirado no mangá de Masamune Shirow, em um filme. O projeto já conta com colaboradores espalhados pelo planeta que cuidam de diferentes partes desta criação – animação, computação gráfica, cinema, fotografia, tratamento de imagem, efeitos especiais, etc. – e uma amostra pode ser vista no vídeo abaixo:

 

Drokk: A distopia oitentista de um Portishead

Se Beth Gibbons é o coração e Adrian Utley a alma do Portishead, Geoff Barrow é o cérebro do grupo de Bristol – e ele se juntou ao compositor Ben Salisbury, autor de trilhas sonoras para filmes e documentários, para criar Drokk: Music inspired by Mega​-​City One, uma ode às trilhas dos filmes de John Carpenter (feitas pelo próprio diretor) e ao universo sonoro do cyberpunk oitentista. Tenso, eletrônico, hermético e retrô, o disco – como entrega o título – funciona como materialização sonora da Gotham City de um dos poucos antiheróis futuristas da Inglaterra, Judge Dredd, quadrinho que John Wagner e Carlos Ezquerra publicavam na 2000 A.D. E nos lembra de um lado sombrio dos anos 80 que, se não abandonava o neon típico da época, fugia do gótico do século 19 rumo a uma distopia muito mais perigosa e ameaçadora que a individual, celebrada pelos filhotes do romantismo tradicional. Outro disco que desponto como forte candidato para os melhores de 2012.

Tron 2 promete

Outro trailer que apareceu esta semana foi o da sequência de Tron, que vem sendo ruminada desde pouco depois do lançamento do primeiro filme (no início dos anos 80) até hoje. O mais legal é que é uma continuação de fato e tem um toque retrô oitentista forte.

E se liga no Dude…

A cultura do remix

Conforme prometido ontem, segue meu capítulo do livro Para Entender a Internet, do Juliano Spyer. O livro é uma compilação digital de vários textos que buscam explicar conceitos básicos da natureza digital. Além do meu texto, o livro ainda conta com textos de Sérgio Amadeu sobre pirataria, André “Maratimba” Passamani sobre P2P, Carlos Merigo sobre propaganda, Raquel Recuero sobre redes sociais, Soninha sobre eleições e internet, Interney sobre blog, do Kazi sobre beta, Fábio Fernandes sobre cyberpunk, Cris Dias sobre capital social, Luli Radfahrer sobre mobilidade, Zé Murilo sobre ecologia digital, Felipe Fonseca sobre lixo eletrônico, Ana Brambilla sobre jornalismo colaborativo e Rodrigo Savazoni sobre exclusão digital, entre outros. Segue o meu texto abaixo, mas ele também se encontra aqui (com os devidos links para a expansão dos conceitos). O livro ainda não existe em papel, mas pode ser baixado em PDF aqui.

***

Cultura do remix

O termo remix surgiu nos anos 70, quando produtores e DJs descobriram que era possível mexer na música depois que ela havia sido gravada. Um conceito de certa maneira novo, a pós-produção ajudou a maturidade do rock nos anos 60, quando, liderada pelos Beatles, toda uma geração se dispôs a alterar a própria obra com efeitos, superposições e modulações que podiam mudar sutil ou completamente o que havia sido registrado em estúdio. Mas o que o produtor americano Tom Mould descobriu quase sem querer que era possível aproveitar este novo recurso e aplicá-lo em um mercado ainda mais recente, o da disco music. Ele quem começou a explorar as possibilidades de uma mesma música ser esticada, às vezes por mais de dez minutos, caso fosse necessário. Ciente da novíssima habilidade dos DJs de Nova York no final dos anos 70 (que, sozinhos, começaram a grudar as músicas umas nas outras, juntando batidas semelhantes e encaixando as músicas umas nas outras), Mould percebeu que poderia ajudar a movimentação da pista de dança se fizesse discos que ajudassem o DJ – afinal, discos eram seus instrumentos. E assim foi inventando novidades como o breque instrumental no meio da música – que poderia ser usado ou para prolongar a duração da música, usando-se dois discos, ou permitir que uma nova música entrasse -, o single de 12 polegadas (com sulcos mais largos, em vez do compacto de sete) e, finalmente, o remix.

O conceito de remix, no entanto, não podia ficar limitado à pista de dança. Afinal, ele trata de um processo que começa a reverter o detalhismo cartesiano que categorizou o mundo em compartimentos tão diferentes que parece não ter conexões entre si. Aos poucos redescobrimos pontos em comum em áreas que antes julgávamos completamente alheias umas às outras – intersecções entre arte e dinheiro, ciência e religião, paixão e lucro – que nos fazem repensar completamente o cenário em que habitamos. Estamos, como Mould no final dos anos 70, descobrindo que existem formas de facilitar a vida de cada um dos DJs do mundo – e todo mundo é um DJ em potencial. Como tal, todo ser humano edita sua própria realidade a partir de sentimentos, conceitos, princípios e valores que são, voltando à metáfora, as canções que ele quer que o resto do mundo ouça. Com os recentes avanços tecnológicos que tivemos ao final do século passado, começamos a remixar a realidade de forma mais drástica e consciente, seja no controle remoto, no uso da internet e em tudo que consumimos.

Mais do que na música, que ainda mantém alguns setores completamente alheios ao remix, a realidade atual é completamente remixada. Entre as roupas customizadas e os carros tunados, há um sem-fim de produtos que estão sendo reinventados por seus consumidores – além de tantos outros produtos que foram feitos para ajudar as pessoas a criar, mais do que a simplesmente remixar. Se antes temíamos que a sociedade do consumo nos padronizasse e uniformizasse, estamos vendo um movimento bem diferente acontecendo hoje em dia – e a cada dia que passa, mais temos possibilidades disponíveis para alterar a nossa rotina.

Esse processo de remisturação é o oposto do que aconteceu, voltamos à música, quando o áudio começou a ser gravado. Artistas que nunca haviam aspirado o sucesso além de sua própria comunidade aos poucos se viram transformados em pequenas celebridades, vendendo um novo tipo de som novíssimo para o público em geral pelo único fato de ser gravado. Se antes a música popular era um processo coletivo, sem duração, gênero musical ou autoria definidos, à medida em que o século 20 amanhecia, surgiram novos astros de uma música que, devido a limitações técnicas (só era possível gravar três ou quatro minutos), passava a ter um tema só e começo, meio e fim. Assim surgiu o jazz, o blues, o tango, a moda de viola, o samba, o baião, a rumba, o country e o frevo, por exemplo, gêneros musicais que eram praticados na rua por todos que, quando um Robert Johnson ou Luiz Gonzaga chegava ao estúdio, era personalizado em um músico, quase sempre “o rei do tipo de música tal”.

Estabelecida com o advento da mesma inovação tecnológica que deu origem aos idiomas modernos, aos países, aos livros e ao jornalismo (a palavra impressa), a autoria, como todos estes conceitos anteriores, vem, no entanto, sofrendo uma drástica derrocada que acompanha os primeiros passos de uma nova consciência planetária. O meio ambiente, o capitalismo moderno e a cultura pop funcionaram como agentes cruciais no despertar dessa sensação de que todos nós somos responsáveis por todo o planeta. A internet só nos conectou. Encontrou um ambiente propício para acelerar a troca de idéias e de informação a ponto de tornar-se, em pouquíssimo tempo, no sistema nervoso da humanidade.

Do mesmo jeito que o gênio não é alguém que veio do nada e venceu por conta de seus próprios esforços (sempre procure o contexto de onde o sujeito veio antes de comemorar a vitória da individualidade), a criatividade também não pertence a um só indivíduo. E se o século 20 consolidou o conceito de autoria graças à várias revoluções tecnológicas do fim do século anterior (a fotografia, a rotativa, o gravador de som e de imagens – basicamente invenções ligadas ao processo de registro), a revolução tecnológica que assistimos hoje é baseada em exposição, distribuição e troca. Estamos dispostos a fazer o conhecimento planetário possa se tornar acessível a todos os seres humanos e temos cada vez mais consciência disso – como do nosso papel de agente desta distribuição, atuando como um DJ que, de acordo com as “músicas” (sentimentos, conceitos, princípios e valores) que escolhe, atinge um determinado tipo de público.