Complete Rooftop Concert – Beatles

, por Alexandre Matias

E outro.

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No dia 30 de janeiro de 1969, os Beatles subiam no terraço do prédio de sua gravadora, a Apple, para apresentar aquele que seria o último show de sua carreira. Fazendo barulho sobre Londres, sem platéia definida nem contato visual com o público, os quatro tocaram como se tocar fosse a única coisa que importasse. Como se apenas a química entre os músicos fosse responsável por todo o fenômeno beatle. Sem tocar desde 1966, quando anunciaram o fim de suas excursões após um memorável concerto em San Francisco, os Beatles subiam mais uma vez no palco que para mostrarem que eram mais que instrumentos exóticos, letras psicodélicas e truques de estúdio.

Terminava ali também a última possibilidade de manter o grupo unido. Após as dramáticas gravações do Álbum Branco (que assistira Ringo deixar a banda, além de compilar a coleção mais plural e pessoal de canções de cada membro da banda), o grupo se sentia cada vez menos coletivo. A morte do empresário Brian Epstein, seguido do fracasso do filme Magical Mystery Tour na TV britânica, pesaram astante sobre a imagem de grupo perfeito que o quarteto se apoiava. A presença de Yoko Ono e diversos projetos paralelos individuais tornavam a convivência entre os integrantes do grupo insuportável, com trocas de acusações, brigas espinhosas e conspirações traidoras para isolar determinado membro.

A briga mais cruel era a inevitável entre John Lennon e Paul McCartney. A dupla de compositores e força-motriz do conjunto se tornava um campo de batalha sangrento, vil e selvagem. A meta dos dois era a mesma – tomar conta do grupo. Depois da morte de Epstein, em 67, o grupo criou o sonho impossível que era a Apple, uma gravadora, produtora e promotora simplesmente interessada em patrocinar qualquer projeto que fosse proposto. Resultado: os Beatles perderam mais dinheiro que na época da Beatlemania, quando a inexistência de leis sobre direitos autorais tornaria o faturamento da banda bilionário.

Quase falidos e com o imposto de renda em seus calcanhares, tanto Paul quanto John sugeriram novos empresários. McCartney chamou John Eastman, sócio da Kodak-Eastman e pai da esposa de Paul, Linda. Lennon convidou Allen Klein, então empresário dos Rolling Stones, um dos maiores vilões da história do rock. Convencido pela lábia de Klein (que gritou “peguei eles!” quando ouviu sobre a morte de Brian no rádio do carro), Lennon deixou-se levar e confiou parte de sua produção ao picareta. O sujeito pôs a mão em boa parte das gravações inéditas dos Beatles e faturou com pirataria. Sempre fingindo-se de vítima.

Fora isso, George Harrison já se mostrava tenso demais naquele meio, saindo em paus homéricos com John e, principalmente, Paul. Ringo Starr já demonstrara sua insatisfação ao abandonar as gravações do Álbum Branco por ser tratado como um mero músico contratado. Todos olhavam-se com raiva e ódio, numa das fases mais barra pesadas já presenciadas por uma banda de rock.

A última alternativa, proposta por Paul McCartney, era voltar-se para a música. Voltar-se para as raízes, para o som que uniu eles no início. Sem overdubs, sem colagens de som, nem efeitos especiais: os Beatles eram guitarras-teclados-baixo-e-bateria, um conjunto feito para tocar ao vivo. Assim começaram as gravações do vai-ou-racha dos Beatles, Get Back.

As gravações começaram no início de 69 e, para elas, o grupo convidou o tecladista Billy Preston, que já havia tocado com meia Motown. Depois dele, veio toda uma equipe de cinema, disposta a capturar os Beatles em ação, criando sua música. Para preencher o espaço vazio dos estúdios da Apple (pela primeira vez não gravavam um disco em Abbey Road), colocaram refletores e holofotes coloridos, criando uma paisagem psicodélica apenas com iluminação capaz de irritar o mais calmo dos mortais. Que dirá quatro músicos que se odiavam com câmeras por detrás de seus ombros.

Assim foi a gravação de Get Back, um caldeirão de vibrações ruins sendo cozido ao som de músicas antigas e novas composições criadas no espírito do novo álbum. Para Get Back, os quatro foram ao mesmo prédio em que tiraram a foto de seu primeiro disco e recriaram uma versão cabeluda e barbuda da capa de Please Please Me. As duas fotos estampariam, mais tarde, o par de coletâneas mais memorável dos Fab Four: 1962-1966 e 1967-1970.

Na frente das câmeras, os Beatles voltavam no tempo trazendo versões viscerais para clássicos de suas adolescências como “Be Bop A Lula”, “You Really Got A Hold On Me”, “Kansas City”, “Going Up Country”, “Save The Last Dance For Me”, “Tracks Of My Tears”, “Rocker”, “Shake Rattle And Roll”, “Lawdy Miss Clawdy” e “Blue Suede Shoes”. John e Paul trariam músicas à moda antiga: “I’ve Got A Feeling” foi composta pelos dois, embora em separado; “Don’t Let Me Down” e “One After 909” (esta, pré-61) vinham de Lennon e McCartney daria “Get Back”. Os dois ainda contribuiriam com faixas a seu próprio modo. John vinha com a insistente “Dig It”, a country “Two Of Us”, a bucólica e lírica “Across The Universe” e o folk uptempo de “Dig A Pony”. Paul trouxe baladas, como “The Long And Winding Road”, “Teddy Boy” e “Let It Be”. George tinha em suas duas faixas duas brincadeiras com base no blues – a primeira misturando-a com uma valsa (“I Me Mine”), a segunda gravada de forma intimista (“For You Blue”).

E no meio de rocks de primeira, bate-bocas que ficaram históricos graças ao filme Let It Be. Paul McCartney cobrando serviço de Lennon e Harrison, cada vez mais dispersos e instáveis. George e Paul se bicam a todo momento, como irmãos se provocando. Lennon fazia vista grossa para Paul, que cantava o refrão de “Get Back” (“Volte pro lugar de onde você veio”) olhando na cara de Yoko Ono. Pra acabar com esta nuvem negra, eles decidiram sair do estúdio e voltar ao palco. O palco só não poderia ser um palco tradicional, tinha que ser algo espontâneo. Novamente, a idéia foi de Paul, que propôs fazer um show no dia seguinte no alto do prédio da Apple.

Era uma quinta-feira fria de inverno e mesmo o sol claro no céu não incomodava o frio. No terraço do prédio da Saville Row, o grupo vestiu os casacos de cada uma de suas esposas e tocou os últimos quarenta e dois minutos para uma platéia desconhecida. O público só conseguia ouvir o som vindo do céu, sem saber de que direção. Aos poucos, alguns percebiam a movimentação e se agarravam em escadas de incêndio e nos prédios vizinhos para perceberem que “sim! São os Beatles!”.

O curto show contou com dez canções. Começaram com duas versões de Get Back para esquentar, emendaram “Don’t Let Me Down”, “I’ve Got A Feeling”, “The One After 909”, “Dig A Pony”, (que aparecem no filme Let It Be), mais duas versões de “I’ve Got A Feeling” e “Don’t Let Me Down”, seguida da versão que aparece no filme de “Get Back” (que termina o show com Lennon agradecendo sarcasticamente: “Queria dizer “obrigado” para em nome do grupo e e esperamos ter passado no teste”).

Depois deste show, eles decidiram que a banda iria acabar e juntaram esforços para fazer de Abbey Road, que começaria a ser gravado em fevereiro (cinco anos depois de conquistarem os Estados Unidos no programa Ed Sullivan Show). Get Back, o disco, foi tocado até maio, quando ficou pronto, mas foi cancelado. O lado A do disco tinha “One After 909”, “Rocker”, “Save The Last Dance For Me”, “Don’t Let Me Down”, “Dig A Pony”, “I’ve Got A Feeling” e “Get Back” (a versão do compacto). O lado B era formado por “For You Blue”, “Teddy Boy” (que só veria a luz do dia no primeiro disco solo de Paul, McCartney, de 70), “Two Of Us”, “Maggie Mae”, “Dig It” (com seus quase dez minutos), “Let It Be”, “The Long And Winding Road” e “Get Back” (a versão do topo da Apple).

Depois de arquivado, o disco começou a ser pirateado por ter vazado pelas mãos de Allen Klein. Depois de seu fim, em abril de 70, o grupo entregou o material das sessões de Get Back para o lendário produtor Phil Spector, que depois produziria discos solo de John e George. Phil não respeitou o material dos Beatles e picotou-o à sua maneira. Tirou o belo teclado de The Long And Winding Road e Let It Be, acrescendo a elas coral e orquestra. Dig It se tornaria uma vinheta de 14 segundos. Uma série de diálogos dos integrantes da banda foram usados fora de contexto, criando uma paisagem inexistente de som.

O material das sessões de Get Back logo caiu nas mãos dos pirateiros. Além do disco original, todas as versões alternativas e os rascunhos para Abbey Road se tornaram a segunda maior fonte de pirataria beatle, perdendo apenas para as sessões da BBC. O material da rádio inglesa já foi lançado de forma oficial, mas o de Get Back não. Muita gente especula a possibilidade de, daqui a alguns anos, os Beatles voltarem à mídia com mais um disco duplo, algo como The Get Back Sessions. Que seria, ao lado de Live At The BBC e dos três volumes de Anthology, um best of da pirataria do grupo. Que seria reeditada em toda extensão, num futuro não muito distante. Mas isso é outra história.

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