Cidadão Instigado e o Método Tufo de Experiências – Cidadão Instigado
Levada de conga e violão nordestino começam, sedutores, a tentar uma certa aproximação. “O que é que tu quer de mim? Que voz é esta?”, pergunta, carregada de seu característico sotaque cearense, a voz do guitarrista e vocalista Fernando Catatau, líder do grupo Cidadão Instigado, acompanhado do assobio sinistro de um teclado retrô. “Que silêncio é este? Por que tu não fala o que estais pensando? Não quero estar recuando o meu sentimento, a minha alegria. Eu sinto que você está chegando mas se recusa a aceitar”. O som desenha um boteco mal freqüentado, à meia luz, TV ambiente ligada ao fundo só para dar uma mínima sensação de vida, ainda que apenas úmida e viscosa. O pano sujo sobre o balcão, o copo solitário de cerveja, o display para maços de cigarro vazio, a mesa de lata riscada com nomes, palavrões e datas, os azulejos que um dia foram brancos. Tudo inspira o desespero de uma latinidade decadente, caixas de cerveja amarela usadas para esconder o mofo da parede dos fundos. Não dá pra saber quem é o predicado da canção: uma pessoa, um vício, a própria identidade.
Uma guitarra elétrica crua, sem efeitos especiais (a imagem que me vem à cabeça são aqueles velhos amplificadores Giannini, com botões do tipo “tremolo” e “vibrato”), corta o ar ativando baixo e bateria em um melancólico e quase almodovariano bolero, fazendo a consciência do protagonista – provavelmente em algum ponto entre a ressaca e o arrependimento, mesmo ainda sendo noite – tornar-se a banda mais triste do mundo, nos colocando em algum ponto entre “Amarelo Manga” e “Um Drink no Inferno”. “Acho que estou te esperando”, entoa quase inocente, num refrão que sorri, serviçal, por mais uma chance, “o que você talvez já saiba. É, você pode estar certa, talvez não valha apenas dizer mais nada. Mas eu te espero mais perto, estou morrendo e tenho medo de só pensar em você. Te encontra logo com a distância antes que ela te dizer que já é tarde demais”.
E sem sermos perguntados estamos no meio de Cidadão Instigado e o Método Tufo de Experiências, tributo a todos os tipos de conflitos pessoais pelo qual Catatau e companhia nos conduzem em seu segundo disco. Terceiro, se contarmos a primeira e pouco ouvida demo, CDzinho de cinco faixas que poucos privilegiados tiveram o prazer de desfrutá-lo ainda em 1999. Ainda no Ceará, a banda dava a ignição em uma inesperada cruza de jazz rock com trovadorismo nordestino e tempero de rádio AM. Longe de apocalipses mais ao leste, de artistas como Cordel do Fogo Encantado, Zé Ramalho e Cabruêra, a intensidade épica do Cidadão vem do apreço dos músicos por seus instrumentos (parente, enviesado, do Cordel de Lirinha, que, optam pela estrada acústica e percussiva, enquanto os cearenses seguem a trilha elétrica e harmônica) que culmina no amor de Catatau por seu instrumento. Imerso entre Johns McLaughlins, Daves Gilmours e Lannys Gordins, a guitarra de Fernando é setentista por definição, virtuosa por natureza e tortuosa, primeiro sentimentalmente, depois como manifesto.
A guitarra torta e passional do Cidadão Instigado por excelência acaba funcionando como metáfora para o disco, tanto em termos temáticos quanto instrumentais. O Método Tufo é um disco sobre o estranhamento, partindo do ponto de vista mais evidente quando se trata do líder do grupo: o fato de ser, na prática, mais um nordestino em São Paulo. Usa diferentes ângulos para mostrar como é se sentir alheio à normalidade em uma cidade cuja normalidade parece imitar a morte, insistindo na fórmula, na aparência, na passividade, na submissão.
Musicalmente, aponta para o quarto de empregada e para a coleção de discos do tio hippie. O tom ao mesmo tempo sóbrio e sombrio que aquela guitarra impõe à qualquer intervenção que se proponha. Tanto que já tocou ao lado da Nação Zumbi, do Hurtmold e do Los Hermanos, sempre impondo seu estilo pessoal, seu timbre agudo e dedilhado torto, nunca alheio a cena alguma. E é justamente sobre o fato de os outros lhe considerarem alheio que começa o discurso que prevalece em todo o álbum.
“Quem pode explicar a razão de pinto de peitos ter nascido com o bico preto? Talvez Deus tivesse um motivo ao perpetuar este ato por mais que pensem ser um defeito”, pergunta em “O Pinto de Peitos”, “um defeito de Deus é sempre perfeito”. “Eu não sei o que falar sobre as estrelas que povoam o meu céu, que brilham e brilham, mas não me dizem nada”, canta na bêbada “Noite Daquelas”.
“Fale para mim, por que eu lhe incomodo tanto? Será que são as minhas sobrancelhas grossas ou serão as minhas tortas? Será que a minha voz fanha polui a tua sonoridade sobre-humana?”, ironiza feliz por saber como a música termina, em ” Apenas um Incômodo”, “ou será simplesmente por que eu me aceito assim e até gosto de mim? Eu sei que eu sou meio empenado e até um pouco desafinado. Mas eu não escondo e não me engano e se você me chamar de paraíba ou baiano não vai me soar estranho!”.
A música continua mas logo perde seu tom dócil e volta à tensão inicial do disco encarando o ouvinte. “Pois eu sei que aos teus olhos/ Eu sou apenas um incômodo/ Que veio do nada para empestar o mundo”, a voz denuncia que o clima da canção mudou, descambando para um instrumental cáustico que aponta para trios tão diferentes quanto Jimi Hendrix Experience, Built to Spill e a banda que acompanhava Arnaldo Baptista no disco Singin’ Alone. “Mas escute/ Eu que vim do nada/ Não tenho encantos, nem correntes/ Só tenho um sonho que é só meu/ E duas palavras para dizer neste instante: ME AGÜENTE!”.
O progressivo é outra assinatura musical do grupo e não é só a marcha “Os Urubus Só Pensam em Te Comer” que remete ao Pink Floyd (especificamente, o biênio 78/79). Ela é apenas uma das músicas que citam bichos (“Todas as vacas estão velhas/ Todas as vacas estão quase lá/ Todas as vacas estão loucas/ E abatidas em seu leito de morte” – as vacas, como os Animals de Roger Waters, chegam até a mugir) e cujo clima tenso e desconfiado é repetido, à prog-blues como o velho Floyd, dentro de qualquer gênero musical que aparecer: rock pesado (em “Calma!”), música latina ou gangsta rap (na mesma “O Pobre dos Dentes de Ouro”, ótica), reggae (“Apenas um Incômodo”), cantiga de lavadeira (“Chora, Malê”, que começa elétrica, cai para o folclore e termina ambient, vazia, ecoando batida policial – perfeita) e shuffle de beira de estrada (“Noite Daquelas”, cômica e crônica)
O holofote central no entanto, divide-se entre a faixa de abertura (“Te Encontra Logo…”, comentada no início), a balada (“O Tempo”) e a belíssima “Silêncio na Multidão”. “O Tempo” é, de longe, a melhor música do disco – uma letra amarga e madura, conformada com a idade, que não funcionaria lindamente tanto no repertório de Roberto Carlos, Odair José, Caetano Veloso, Nervoso ou Mombojó. “Mas o tempo é um amigo preciso que fica sempre observando aquele instante em que alguém tentou se aproximar”, canta, em falsete, acompanhados por vocais de apoio de sonho. O desabafo falado de Catatau é daqueles momentos que nem é bom tentar passar pro texto para não perder toda sua magia atemporal. “Às vezes choro pois sei que não posso deixar que o passado invada meu mundo”, isso tocado ao vivo deve ser fodaço, mesmo sendo intensamente e desavergonhadamente brega.
Já o épico “Silêncio na Multidão” é um exercício de hipnotismo jazz-funk que, disfarçada de crônica social. “Aqui estou eu, há meia hora parado no cruzamento da Brigadeiro Luís Antônio com a Avenida Paulista”, narra falando, fingindo-se bardo, sobre uma monótona cadência reminescente instrumental Doors. “Interessante, né? Todos os dias em milhares de lugares milhares de pessoas se cruzam, mas não se falam, pois não se conhecem e nem ao menos se importam com isso. Mas é apenas um jogo de espelhos e, mais adiante, ele finge ver “um mendigo barbado” que “simplesmente pára e grita um grito de liberdade para a multidão, pois ele não agüenta viver sozinho na escuridão”. O grito do mendigo (a imagem que o próprio Catatau, ele mesmo barbado, imagina que os outros façam dele) é não só todo o Método Tufo como um refrão emblemático e cético, que vem logo a seguir.
“Eu vejo as pessoas que passam por mim, que falam, que ralam, que gritam em agonia e solidão”, canta emocionado, “dói no coração ver meu povo silencioso”. O solo bluesy ressurrecta o mesmo timbre de uma das peças centrais do primeiríssimo disco, a demo de 99, a instrumental “Poeira”. A crítica é simples: a lógica da cidade grande está matando o melhor do brasileiro. E o disco acaba funcionando como o grito do mendigo. Ele não pede para pararem o mundo – ele já desceu e chora por nós.
O que mais impressiona no disco, além de seu fio condutor progressivo, é a sua sintonia com o momento robertocarlista que vivemos. Mais do que qualquer outro contemporâneo seu, Fernando Catatau insiste em uma linha evolutiva que vai para longe da fila bossa nova, Tropicália, canção de protesto, MPB ou o vasto cânone do samba desintelectual. Tateia por um universo passional e adulto, longe da rebeldia ou do prazer, da saudade e do êxtase, da miséria física, social ou espiritual. Trilhando os passos do Rei, ele faz o ponto de intersecção entre o “Prato de Flores” da Nação Zumbi e a indiesmo MPB do Los Hermanos, passando por aquele velho rádio de estante que o dono do bar deixou ligado depois que o jogo acabou e que, de repente, começou a tocar aquela música…