No dia 2 de fevereiro de 1997, Chico Science deixava este plano para abraçar a imortalidade. E para lembrar do mestre nestes 25 anos sem ele, conversei com Jorge Du Peixe, Lúcio Maia, Paulo André e H.D. Mabuse, todos amigos de longa data e chapas na construção da utopia que foi o mangue beat, sobre a importância do mangueboy original para nossa música, em mais uma colaboração para o site da CNN Brasil.
E essa versão demo de “A Cidade”, gravada na versão pré-histórica da Nação Zumbi chamada Bom Tom Rádio? O grupo era formado por Chico Science, Jorge du Peixe e o produtor H.D. Mabuse. Entre o pós-punk e o hip hop oitentista, dava o recado com a música que depois se tornaria hit nos anos 90, mas com a vibe oitentista que adubou o caminho para o surgimento do mangue beat.
Que pérola.
1° de fevereiro de 1949 – A gravadora RCA lança o disco compacto
2 de fevereiro de 1997 – Morre Chico Science
3 de fevereiro de 1960 – Sinatra lança sua própria gravadora
4 de fevereiro de 1959 – Nasce Zeca Pagodinho
5 de fevereiro de 2007 – A Apple dos Beatles e a Apple de Steve Jobs chegam a um acordo
6 de fevereiro de 1945 – Nasce Bob Marley
7 de fevereiro de 1966 – É lançada a revista Crawdaddy, pioneira em falar sério sobre música pop
8 de fevereiro de 1977 – Television lança seu clássico Marquee Moon
9 de fevereiro de 1964 – Os Beatles tocam pela primeira vez no programa de Ed Sullivan e conquistam os EUA
10 de fevereiro de 1971 – Carole King lança Tapestry
11 de fevereiro de 2012 – Morre Whitney Houston
12 de fevereiro de 1981 – O Rush lança Moving Pictures
13 de fevereiro de 1970 – O Black Sabbath inventa o heavy metal
14 de fevereiro de 1918 – Nasce Jacob do Bandolim
15 de fevereiro de 1969 – As groupies chegam à capa da Rolling Stone
16 de fevereiro de 1999 – O Iron Maiden apresenta sua formação com três guitarristas
17 de fevereiro de 1973 – Morre Pixinguinha
18 de fevereiro de 2006 – Os Rolling Stones tocam pra 1,5 milhão de pessoas na praia de Copacabana
19 de fevereiro de 1996 – Jarvis Cocker invade o palco de Michael Jackson
20 de fevereiro de 1816 – O Barbeiro de Sevilha tem uma estreia caótica
21 de fevereiro de 2012- Pussy Riot apavora uma igreja na Rússia pra gravar um clipe anti-Putin
22 de fevereiro de 1997- Spice Girls conquistam os EUA
23 de fevereiro de 1999- Eminem lança The Slim Shady LP
24 de fevereiro de 2004 – Mashup de Beatles com Jay-Z provoca desobediência civil digital
25 de fevereiro de 1995 – Frank Sinatra faz seu último show
26 de fevereiro de 2001 – Daft Punk lança seu clássico Discovery
27 de fevereiro de 2009 – Morre Walter Silva, o “Picapau”, que descobriu Elis Regina
28 de fevereiro de 1983 – U2 abraça a política com seu disco War
Vinte anos após sua morte, o legado de Chico Science está mais vivo do que nunca. Escrevi sobre isso no meu blog no UOL.
“Modernizar o passado é uma evolução musical
Cadê as notas que estavam aqui?
Não preciso delas!
Basta deixar tudo soando bem aos ouvidos
O medo dá origem ao mal
O homem coletivo sente a necessidade de lutar
O orgulho, a arrogância, a glória
Enchem a imaginação de domínio
São demônios, os que destroem o poder bravio da humanidade
Viva Zapata! Viva Sandino! Viva Zumbi!
Antônio Conselheiro!
Todos os Panteras Negras
Lampião, sua imagem e semelhança
Eu tenho certeza, eles também cantaram um dia”
Não importa o que poderia ter acontecido com Chico Science se ele não tivesse morrido vinte anos atrás no trágico acidente daquele 2 de fevereiro, um dia de domingo, entre Olinda e Recife. Todas as hipóteses cogitadas são meros exercícios de imaginação e o personagem criado por Francisco França para sublinhar sua mensagem poderia seguir destinos bem diferentes, como cada um de nós, independentemente de sua vontade. O que importa é o que Chico Science fez enquanto esteve vivo, sua marca emblemática nos rumos da música – e da cultura – brasileira desde que entrou no imaginário mental do Brasil. Ele hoje é mais importante do que nunca.
Pois vivemos num mundo – e num país – antevisto por Chico em sua versão brasileira do cyberpunk. O movimento de ficção científica criado pelos escritores William Gibson e Bruce Sterling nos anos 80 cogitava um futuro próximo completamente distante do futuro Jetsons imaginado pela geração anterior. A crise ambiental, a superpopulação, as megalópoles e, claro, a presença do computador e da internet como sistema nervoso de um planeta decadente, tornava a aurora do século 21 sombria e aquela distopia unia obras que adubaram o inconsciente coletivo vindo de diferentes artistas em diferentes mídias – do Akira de Katsuhiro Otomo ao Blade Runner de Ridley Scott, passando pelo Tron da Disney, o Incal de Jodorowsky e o Robocop de Paul Verhoeven -, criava uma realidade totalitária e alienante como a que vivemos hoje. Uma mistura do 1984 de George Orwell com o Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley embebedida pela internet e por dispositivos de vigilância portáteis (nossos celulares).
O mangue beat, criado no Recife por Chico Science, sua Nação Zumbi, e pelo Mundo Livre S/A de Fred Zero Quatro, trazia este futuro para o sol de rachar da linha do Equador. O cyberpunk era urbano, sombrio, meio gótico, meio romântico (impossível não notar a semelhança entre o movimento musical liderado pelo Duran Duran – o New Romantic – com o marco-zero do cyberpunk – Neuromancer). O mangue beat era diurno, à praia, pés na areia – e na lama -, o horizonte é o mar. Ao criar um personagem que funcionava como um narrador daquele novo universo, Chico Science conectava a distopia cyberpunk ao terceiro-mundismo sonoro que une o reggae ao bhangra, o raï ao hip hop. Plugava o Brasil à aldeia global de Marshall McLuhan antes mesmo da ascensão da web – e pela cultura da favela global, de países subdesenvolvidos.
Conheci Chico um pouco antes de ele tornar-se um nome nacional, quando a importância do movimento que puxava a partir do Recife ganhava reconhecimento em todo o país, mas ainda nas entranhas, no meio independente que outrora conhecíamos como underground. Estava começando minha carreira no jornalismo quando pude entrevistá-lo pouco antes do lançamento de seu primeiro CD, lançado pela Sony. A gravadora havia o contratado ao lado de sua Nação Zumbi sem nem entender direito o que estava acontecendo e a prova disso é que a primeira vez que os encontrei foi no camarim da boate Pachá, em Campinas, quando o grupo pernambucano foi escalado para abrir o show da banda de eurodance Culture Beat, cujo hit robótico e sem alma “Mr. Vain” era o extremo oposto do groove vivo, intenso e de protesto puxado por Chico. A banda divertia-se com o choque dos extremos, enquanto Chico ficava tentando entender quem era o público que estava assistindo àqueles dois shows tão diferentes.
Era uma característica que pude perceber nele das outras vezes que nos encontramos – ele sempre estava tentando entender algo que não entendia. Buscava o contexto, tornava-se aluno. Gostava de conversar e de contar histórias, mas, diferente da maioria dos artistas, também gostava de ouvi-las. Arregalava os olhos e arqueava as sobrancelhas, concordando com a conversa enquanto ouvia.
Depois botava aquilo tudo pra fora. Ao colocar os óculos escuros, tirar a camisa, botar o chapéu e abrir o sorriso de lado, Chico virava o arquetípico mangue boy, criava o b-boy nordestino cujo semblante hoje é tão forte quanto os de Bob Marley, Che Guevara e Raul Seixas – um personagem que certamente foi influenciado pelos de Angeli, repare. A partir deste púlpito, narrava sagas de vida e morte pelo sertão, crônicas violentas nas favelas, dias de preguiça na praia. E aos poucos redesenhava um país de contrastes, que já havia sido desenhado pelos modernistas nos anos 20 e pelos tropicalistas dos anos 60. Repensava a Casa Grande e a Senzala com um satélite na cabeça, contextualizava globalmente os tristes trópicos.
Chico viu, há mais de vinte anos, o país que vivemos hoje. As caricaturas dos contrastes, a truculência no traquejo social, a violência sob a superfície fanfarrona, o sorriso aberto que fecha-se num segundo em uma carranca. Suas letras são alegorias que usam arquétipos e ícones estabelecidos para falar sério em frases de efeito cujo significado vai além do mero slogan. É só prestar atenção. “Há fronteiras nos jardins da razão”, “em cada morro uma história diferente que a polícia mata gente inocente”, “cerebral, é assim que tem que ser”, “o de cima sobe e o debaixo desce”, “no caminho é que se vê a praia melhor pra ficar”, “é o povo na arte, é arte no povo e não o povo na arte de quem faz arte com o povo”.
Líder de uma banda de protesto para dançar, Chico Science foi ele mesmo a antena cravada no mangue, no caso, o Brasil. O impacto de sua breve passagem por nossas vidas não deve ser lembrado apenas com tristeza ou saudade, mas pela importância e força representadas nos poucos anos que viveu conosco durante os anos 90. Sua influência é presente, contínua. Chico está vivo.
Que doido: Chico Science e Jorge du Peixe eram dois bróderes que rodavam break no Recife e depois começaram a fazer música, dando origem à Nação Zumbi no início dos anos 90. Anos depois Chico morre num acidente de carro e décadas depois, sua filha reencontra, online, o filho do velho amigo de Chico – e atual vocalista da antiga banda. O casal Louise “Lula” Taynã – filha de Chico – Ramon Lira – filho de Jorge – é de verdade mas funciona como uma bela homenagem ao legado da própria banda para além da música, nas imagens para o recém-lançado clipe do grupo, “Um Sonho”.
Aproveitando o relançamento dos três primeiros vinis do Ira!, o site Azoofa (esse nome é muito feio, broder) fez uma longa entrevista com o Nasi, que comentou sobre a relação do Psicoacústica com o nascimento do mangue beat:
“Foi um disco que decepcionou não só as rádios e a gravadora, mas também parte da crítica, que classificou o Psicoacústica como um disco pretensioso. Tipo: ‘Quem são esses caras aí pra misturar maracatu com rap e rock?’. Até hoje vejo o cara que falou isso aí assinando diversas resenhas. Mas de certa forma, despretensiosamente, Advogado do Diabo acabou sendo a base do manguebeat. Não que fizemos a música e dissemos: “Estamos aqui inaugurando o manguebeat!”. Não, mas eu falei pro André: “Você é pernambucano, conhece a levada do maracatu, faz no pandeiro! Vamos fazer um rap, vamos colocar guitarra, um scratch!” Na época eu chamei o Thomas Pappon, ex-baterista do Voluntários e que hoje é jornalista da BBC, pra fazer o release do Psicoacústica. Ele fez um release todo cheio de frescura, mas um outro jornalista me disse que o Thomas riu pra caralho do disco, que achou uma bosta! Lembro de ir com o André na casa dele, picar o release e jogar na cara dele. Vai se fuder, você não e obrigado a gostar! Se você não gostou, não faz um release falando da rebimboca da parafuseta! Tudo isso é só pra dizer que é um disco que não passou batido! (…) Quando nós conhecemos o Chico Science, não existia Nação Zumbi. Conheci o Chico quando ele tinha o Loustal ainda (embrião da Nação Zumbi, formada em 1989 por ele, Lúcio Maia e Dengue). Ele trabalhava, inclusive, num balcão da Vasp, ainda! Eu já trabalhava com rap e ele veio falar, certa vez: ‘Sou fã de rap, gosto do Thaíde, que você produziu…’.”
Leia a entrevista inteira lá no site deles.
David Correy é um desses cantores de cover participa desses programas de calouros de hoje em dia, desses que o parâmetro de boa cantora é a Mariah Carey, e resolveu aproveitar-se da ascendência pernambucana (ele nasceu no Recife) para ganhar um troco traduzindo para o inglês o clássico “Maracatu Atômico” de Jorge Mautner, imortalizado por Chico Science. Nem preciso dizer o quanto ficou ridículo – basta ouvir:
E se você acha que não dá pra piorar, saca só abaixo a transcrição da letra pro inglês, uma versão que parece ter sido feita no tradutor do Google, de tão literal.
E falando no Ben (“E a Copa?”), que tal esse trecho do recém-aberto acervo do Roda Viva em que, em 1995, Chico Science pergunta ao mestre sobre seu disco mais mítico:
Chico Science: Jorge, sobre essa questão das influências, já começaram perguntando, eu queria perguntar a respeito de um disco. Um que eu acho bem bacana, para mim, é o do Ben Jor que me influencia mais, há outros também, o Tábua de Esmeralda. E eu queria saber o processo de criação desse disco e se você acredita nos deuses astronautas e na agricultura celeste?
Jorge Ben Jor: Acredito, acredito muito. Eu queria dizer que esse foi, para mim, um dos meus melhores trabalhos. Eu posso dizer para você, posso enumerar meus trabalhos, eu posso dizer rapidinho: Samba esquema novo; África Brasil, que já foi o último, mas antes da África Brasil, tem esses dois, o Tábua de esmeraldas, Solta o pavão e o África Brasil. Sendo que o Tábua de esmeraldas, esse meu trabalho na Polygram é o meu melhor trabalho, porque foi um trabalho… Na Polygram sempre tive problemas com trabalho; das pessoas meterem o dedo. Falarem: isso aí não vai vender, é um trabalho muito hermético, então eu falei, vou pedir ordem. Na época, era o André Midani que era o chefe geral, eu fui falar com ele e disse: esse é o meu trabalho, eu queria fazer esse trabalho, esse trabalho é o que eu quero fazer. Mostrei para ele e é um trabalho que eu falei: há muito tempo eu queria fazer. Eu sei que estou falando de uma filosofia que é muito difícil, estou falando dos alquimistas, estou falando da tábua de esmeraldas, estou falando da agricultura celeste, estou falando de filósofos como Paracelso, alquimista, astrólogo e médico sueco, era um herborista considerado pioneiro na farmacêutica ocidental], que tem uma música em homenagem a ele, que é O homem da gravata florida e eu estou falando de coisas que pouca gente sabe. Esse é o trabalho que eu queria fazer e é um trabalho que não vai ser…
Será que alguém descola um vídeo com isso? No site só tem um trecho (de onde eu tirei a imagem que ilustra o post, com o Jorge olhando pro Tárik de Souza, pro Cunha Jr. e pro Chico)…
E o Carneiro pautou o Clemente para dar uma sacada na Ocupação Chico Science que está acontecendo no Itaú Cultural até o dia 4 de abril e trombou com a quadrilha que armou o mangue beat: Fred Zero Quatro, Jorge Du Peixe, DJ Dolores, Rogê, Paulo André… Só gente fina.