Às vésperas de lançar o sucessor de seu Trança, Ava Rocha apresentou-se pela segunda vez acompanhada apenas de piano nesta quarta-feira na Casa de Francisca. Ao seu lado, mais uma vez, o mestre Chicão Montorfano, que ia da sutil delicadeza quase impressionista ao improviso extremo fazendo um par perfeito para os devaneios em forma de canção interpretados pela cantora carioca. Ava subiu ao palco toda de couro preto e entre suas próprias canções (“Você Não Vai Passar”, “Dorival”, “Assumpção”, “Mar ao Fundo”, “Hermética”, “Boca do Céu”, “Doce é o Amor” e as ainda inéditas em disco “Um Sonho” e “Felicidade Ébria”) soltou seu lado intérprete visitando clássicos brasileiros e internacionais: passeou por “Besame Mucho”, Capinam e Jards Macalé (“Movimento dos Barcos”), Tim Maia (“Lamento”), Edu Lobo (“Pra Dizer Adeus”), Bola de Nieve (“Déjame Recordar”), Cat Power (“Where’s My Love”) e Caetano Veloso (“Força Estranha”), sempre conduzindo o público com sua voz e seu corpo, entregue à sua tradicional intensidade cênica. Entre o sublime, o mundano e o êxtase, Ava cuspia pétalas e erguia o próprio chapéu do chão com o pé, equilibrando-se entre cadeiras e brincava com água e vinho, sem deixar que tais gestos tirassem o fôlego e o sentimento das canções, numa apresentação de lavar a alma.
Tava devendo. Sei do Acesa de Alessandra Leão desde quando ele ainda era uma ideia, naquele longíquo tempo pré-pandemia. O projeto ganhou vida, virou show e eu ainda não tinha conseguido assisti-lo ao vivo – e finalmente saldei minha dívida nesta quinta-feira, quando pude ver esse híbrido de tradição com modernidade no palco da Casa de Francisca. Disparando samples de gravações que fez no sertão nordestino e manipulando timbres com pedais de distorção, Alessandra veio amparada por um trio digital de peso: Kastrup entre as percussões acústicas e MPC, Zé Nigro nos teclados e Marcelo Cabral no synth bass. E como se não bastasse a intensa roda eletrônica que armou no palco da Francisca, ainda chamou duas entidades para acompanhá-la – e tanto Dani Nega quanto Ava Rocha se esbaldaram ao lado da dona da festa. Que noite!
De lavar a alma a apresentação dos três Metá Metá neste fim de semana na Casa de Francisca. É claro que a falta de presença e calor humanos não torna a experiência completa, mas foi revigorante poder assistir ao reencontro de Juçara Marçal, Thiago França e Kiko Dinucci no já clássico palco depois destes quase sete meses de quarentena, uma entidade se recompondo e nos recompondo ao mesmo tempo, ainda que à distância. Repassaram seu repertório em diferentes ambientes da casa, começando pela cozinha até chegar no salão central, onde a câmera de Heitor Dhalia, que dirigiu a apresentação a convite da casa enfileirou os três cada um num plano, tratando a questão do isolamento social quase como uma opção estética, além em termos de saúde. E diferente da live cinematográfica e em preto e branco que Tulipa e seu irmão Gustavo Ruiz fizeram na Francisca no início de agosto, a apresentação do Metá Metá apresentava o local como o conhecemos, luzes indiretas que iluminavam o piso, as paredes, os móveis, o teto e o assoalho como se pudéssemos nos reencontrar com o grupo num sonho. Se a ausência de palmas entre as músicas criava uma lacuna tensa entre as canções, ela era preenchida pelo vigor e pela energia dos três, claramente felizes de voltar a fazer músicas juntos, mesmo que nessas condições bizarras. Foi de cair o queixo, como quase sempre são os shows do trio. A Casa de Francisca descolou esse trechinho de “Let’s Play That” aqui pro Trabalho Sujo – um dos ápices do show – pra você ficar com vontade…
O show vai estar disponível online na semana que vem e tanto ele quanto os outros shows da série Até o Fim, Cantar, título dado para a série de cinelves que a Casa de Francisca tem feito podem ser vistos no site deles – mas não é gratuito, tem que pagar pra ver. E esse, especificamente, vale muito.
“É uma aglutinação de linguagens, o que sempre resulta em novidade, não é? A situação não permite previsões, tédio e invenção andam de mãos dadas e nos puxam”, me explica por email Tulipa Ruiz quando lhe pergunto se Tulipa Noire, que ela apresenta neste sábado às 21h (mais informações aqui), é uma evolução do conceito de shows transmitidos pela internet. O concerto acontece na Casa de Francisca e é o primeiro show dirigido pela cineasta Laís Bodanzky, diretora do filme Bicho de Sete Cabeças, que foi convidada pelo capo da mágica casa, Rubens Amatto, para assumir a curadoria de cinema do local em tempos de pandemia, elevando as lives a outro patamar.
A cantora conta que estava esperando o momento certo para trabalhar neste formato. “Nossa proximidade com o Rubão e a Casa de Francisca é antiga e sabíamos que a qualquer momento ia acontecer alguma coisa entre a gente nesse momento live. Quando o nome da Laís entrou na jogada, tudo ficou mais saboroso. Vivo com a Tulipa Noire, o filme do Delon, marcado na alma. A associação era inevitável, noir-noire-cinema-Laís. Mesmo assim uma associação solar – o filme original era colorido!”, conta, fazendo referência ao filme que inspirou seu pai, o mestre guitarrista Luiz Chagas, a batizá-la com este nome.
Pouquíssimas pessoas estarão presentes no evento, apenas a cantora, seu irmão Gustavo Ruiz no violão, a diretora Laís e a fotógrafa Thaís Taverna. A única certeza é que será em preto e branco. Tulipa nem sabe o que fará com o show depois de ele ter acontecido. “É algo a ser pensar. Será meu primeiro registro cinematográfico. Vou decupar essa ideia”, conta.
Pergunto como ela está atravessando a quarentena e ela tasca que “como a maioria das pessoas que tem a oportunidade de ficar em suas casas, esse negócio de ‘tempo livre’ é bobagem. Nunca estive tão ocupada em minha vida, nem que seja para não fazer nada ou dormir. Isso te ocupa muito”. Ela também menciona lives que a emocionaram: “Várias, a começar pelo João Donato que introduziu muita vida na dele; Teresa Cristina, maravilhosa; o Gil, divino; o Curumim e a Anelis fazem umas aqui na esquina de casa, mas que parecem vindas da Lua. “
Eis o resultado da categoria música popular segundo a comissão julgadora da Associação Paulista de Críticos de Arte, que faço parte ao lado de José Norberto Flesch, Lucas Brêda, Marcelo Costa, Roberta Martinelli, Tellé Cardim e Fabio Siqueira.
Grande premio da crítica: Gilberto Gil
In Memoriam: Carlos Eduardo Miranda
Artista do Ano: Marcelo D2
Melhor Álbum: Luiza Lian – Azul Moderno
Melhor Show: Racionais MCs
Revelação: Duda Beat
Projeto Especial: Casa de Francisca
Capa: Karol Conká – Ambulante
Clássico palco para diferentes cenas musicais de todo o país, a Casa de Francisca despediu-se do bairro dos Jardins em São Paulo, no final do ano passado, quando mudou-se para o palacete no centro da cidade. A última noite da casa original foi também a primeira em que o Metá Metá – uma conjuração curada e curtida na própria Casa – apresentou-se em sua formação completa, como um quinteto, no palco da Rua José Maria Lisboa. Esta última apresentação, na véspera da véspera de natal do ano passado, foi registrada pelo francês Vincent Moon:
O sucesso de Emicida é uma parceria fraterna: enquanto Leandro rima e dá a cara a tapa pelos palcos da vida, seu irmão Evandro Fióti administrava sua carreira, construindo as fundações de seu escritório a partir de CDs vendidos de mão em mão no metrô. Hoje o escritório Lab Fantasma é um pequeno império, que administra as carreiras de Emicida e Rael e se tornou uma distribuidora digital, além de referência para uma nova geração de rappers pelo Brasil que viu que é possível ser bem sucedido artisticamente e nos negócios ao mesmo tempo. Como Emicida, Fióti sempre esteve envolvido com música e além de habilidoso violonista agora começa a colocar suas mangas artísticas de fora, ao anunciar o lançamento de seu primeiro EP ainda essa semana. Já gostei de cara por causa do título do trabalho: Gente Bonita (que era o mesmo nome da festa que eu fazia com o Luciano Kalatalo entre 2006 e 2010). Ele já mostrou o teaser do novo trabalho:
“Foi tudo orgânico”, me conta o novo artista: “Antes de montarmos a Lab, eu e o Leandro sempre se encontrava pra fazer algumas coisas. Mesmo trabalhando, quando eu fazia a produção de estrada, eu levava o violão e íamos compondo quando dava, mas as coisas foram ficando cada vez mais apertadas e isso deixou de ser possível. Porém, duas das parcerias que tenho com ele nesse disco já existem aproximadamente há oito anos, e eu até insisti algumas vezes pra ele lançar ‘Gente Bonita’ porque todo mundo a quem eu mostrava a música gostava. É um outro lado do Emicida como compositor que acho que vai surpreender o público. Mas na verdade Deus escreve certo por linhas tortas, ainda bem que ele não me ouviu e deixou mesmo para eu gravar porque essa música é linda.”
A música acabou batizando o novo disco: “O projeto não tinha nome no começo, mas depois me dei conta de que essa faixa sintetizava tudo o que eu queria passar, acho que é uma das letras mais fortes do trabalho. Dentro do estúdio, com os músicos, me veio esse nome. Tem a ver com a ideia que quero transmitir e até com o momento que eu estou vivendo, de um exercício de me apegar mais às coisas boas e positivas. E tem a ver também com uma coisa de enxergar o melhor nos outros; gente bonita são todas as pessoas que toparam estar comigo no projeto, colaboraram para que eu chegasse a este ponto. E num contexto mais amplo espero que sirva como uma mensagem positiva para todos que se identificarem com a faixa, para o povo da periferia, nosso povo, que todo dia precisa buscar motivação para levar a vida do jeito que ela é. Mesmo com todas as adversidades, continua sendo um povo alegre, feliz e bonito.”
Mas não é um disco de rap, já adianta: “Quem espera um disco de rap vai dar com os burros n’água!”, ri o compositor-empresário. “É um disco para que ouçam e pensem, reflitam e se divirtam. Ficou bem fincado nas raízes da música brasileira, está bem brasuca e isso reflete o meu gosto musical, me vejo nele inteiro, quem me conhece de longa data também vai compreender isso mais facilmente. Quem só conhece o Emicida vai ter a oportunidade de conhecer esse lado mais compositor dele também. Esse disco é vida que segue. Eu senti a necessidade de gravar essas músicas e fazer algo que as pessoas me cobravam há muito tempo, fui lá e fiz, sendo público do Emicida ou não, espero que as pessoas sintam e se identifiquem com a mensagem musical do trabalho. Estamos passando dias tão difíceis que vejo neste disco a possibilidade de as pessoas verem como nosso povo e nossa música são ricos e lindos e que isso sirva de combustível na luta diária de cada um. Se conseguir isso, já estou satisfeito. E quem não gostar não precisa falar nada, pode ir ouvir o que gosta.”
Também gravei a primeira vez que Fióti apresentou uma música ao vivo deste novo disco, quando juntou-se ao Rodrigo Ogi, ao Kiko Dinucci e ao Thiago França para tocarem o samba “Vacilão”, que estará no EP, num show de Ogi na Casa de Francisca.
“Gente Bonita”, a primeira faixa de trabalho, será lançada oficialmente nesta sexta-feira, dia 1° de abril. Não é mentira. O disco todo aparece em maio.
Falei sobre a importância das pequenas casas de show na nova cena de São Paulo, na minha coluna na revista Caros Amigos, que completou um ano na edição passada.
Menos é mais: pequenas casas de autor
Uma casinha minúscula com quintal esconde-se sem número entre os grafittis de uma ruíca de apenas um quarteirão na Vila Madalena. Um reduzido bistrô à meia luz com mesas dispostas como um auditório numa rua fica à espreita noutra igualmente pequena nos Jardins. Uma casa pequena com um corredor lateral e um quintal coberto numa rua movimentada que liga a Pompeia à Lapa. Imóveis paulistanos que passam despercebidos das pessoas durante o dia por quase se esconderem na paisagem urbana.
Mas as coisas mudam bastante quando a noite cai. O ar plácido e discreto destes lugares de dia dá lugar a pequenos grupos de jovens adultos que se reúnem às dezenas para assistir a shows diminutos em palcos quase à altura do chão. Na casa da Vila Madalena, uma guitarrista capixaba conduz sua banda a um transe psicodélico carregado de microfonia. No sobrado dos Jardins, um decano paulistano une-se ao filho em uma delicada sessão nostálgica intimista sobre suas canções cubistas. Na construção da Lapa, um grupo carioca eleva a filha de um baiano a uma arrebatação sonora. Tudo isso em São Paulo. A cidade que já foi tachada de “túmulo do samba” e “berço do rock” vive uma renascença cultural e artística que atrai gente de todo o Brasil.
Muito se reclama sobre a falta de espaço para apresentações ao vivo ou sobre o preço insuportável de ingressos para atrações gigantescas, recauchutadas ou estrangeiras no Brasil. Mas a cidade São Paulo, especificamente, começa a ditar uma tendência que pode espalhar-se para o resto do País. Avessas ao sucesso massificado de shows em estádio, festivais com inúmeros palcos, rodeios e feiras alimentícias pelo interior do Brasil, essas iniciativas apostam no extremo oposto de multidões e do desfile de atrações velhas ou desconhecidas que se acumulam nos eventos de grande porte.
A realidade dos festivais e shows para dezenas de milhares de pessoas cada vez mais afasta a possibilidade de curtir a música em si e tais celebrações servem mais para reunir amigos e conhecidos ao redor de apresentações ao vivo do que propriamente para vê-las. A festa nestes eventos gira em torno do encontro social – e sua exibição via internet – e os shows tornam-se mais trilha sonora do que são a motivação para tirar as pessoas de casa. Quando cobri o Rock in Rio Las Vegas, a primeira incursão do festival brasileiro em terras norte-americanas, a principal executiva do festival, Roberta Medina, foi categórica ao dizer que música é um elemento secundário naquele encontro e que via seu festival mais próximo da Disneylândia do que de um show de música em si.
As três situações que descrevi no início do texto são pequenas amostras de uma resposta a essa massificação que tirou o protagonismo da música. São celebrações de porte ínfimo, que atraem mínimas quantidades de pessoas, mas todas elas centradas na música. Seja no show do My Magical Glowing Lens na Casa do Mancha, no de Walter Franco na Casa de Francisca ou de Ava Rocha na Serralheria, o público mal passava da centena de pessoas – no caso do show de Walter Franco, nem metade disso. Mas se esse número pode ser considerado um fracasso para alguns artistas, não é para nenhum destes, porque é a lotação máxima do lugar. Quem foi parar ali não caiu de paraquedas num evento em que alguém toca música ao vivo, mas saiu de casa especificamente para assistir à apresentação daquele determinado artista.
As duas Casas e a Serralheria não são focos isolados no mapa cultural de São Paulo e aos poucos estes pequenos lugares intimistas – que não significa que sejam necessariamente quietos ou silenciosos – conquistam a paisagem paulistana. São casas que se espalham por diferentes bairros e, seguindo esta mesma lógica, nem mudam a cara de uma região específica nem concorrem entre si.
Os nomes destes estabelecimentos são bem específicos em relação à sua abordagem e dão uma boa ideia do rumo escolhido em relação à música: Central das Artes, Sensorial Discos, Casa do Núcleo, Centro Cultural Rio Verde, Espaço Cultural Puxadinho da Praça, Serralheria Espaço Cultural, Neu, Banca Tatuí, Jongo Reverendo, Casa do Mancha, Mundo Pensante, Casa de Francisca, Epicentro Cultural, Zé Presidente. Os nomes acentuam a importância da cultura, de sua feitura, da sensibilidade, do novo, da informalidade, da brasilidade. E não são necessariamente casas de show: a Sensorial é uma loja de discos e cervejas, a Banca Tatuí é uma banca de jornais ocupada por uma pequena editora de livros (a Lote 42) que permite a realização de shows em sua laje, transformando-se num palco, a Casa de Francisca sempre oferece um jantar antes do início do show.
Há também uma regra informal que aos poucos dá um novo rumo para a produção cultural da cidade e do Brasil: a predileção por shows autorais. Parece bobagem dizer isso e se essa tendência se confirmar em alguns anos, vai parecer que vivíamos tempos estranhos – e realmente vivíamos. Mas da virada do século para cá, São Paulo viu antigas casas noturnas que abrigavam bandas novas abrir espaço primeiro para bandas covers e depois para discotecários. Estabelecimentos que preferiam apostar no conhecido e atrair um público certo e cada vez mais jovem que, com o tempo, tiveram que apelar para outros truques da noite, como a infame festa open bar, em que o cliente paga um determinado valor fixo para beber à vontade – quase sempre bebidas de segunda ou terceira categoria – a noite inteira. Essa fórmula imediatista pagou contas e aluguéis dos envolvidos, mas cobrou o preço da existência da maioria dos lugares daquela época. Em 2015, quase não há pequenas ou médias casas de shows em São Paulo que existiam no início do século.
Mais um programa, mais papo furado improv-style: falamos sobre o primeiro show do disco novo do Marcelo Camelo, do primeiro disco do Criolo, Instituto e +2, Casa de Francisca, Gui Amabis, Mr. Catra, YouPix e os trolls e até conselhos amorosos. Uma hora e vinte de Vinteonze: isso deve ser um sinal.
Ronaldo Evangelista & Alexandre Matias – “Vinteonze #0006“ (MP3)