
Laura Lavieri e Cacá Machado transformaram a reverência a um álbum clássico da história da música em um ritual religioso ao redor da voz e do violão do maior artista de nossa cultura. João Gilberto foi alçado ao estado de santo numa apresentação de muito rigor e paixão, enfileirando as músicas de seu clássico homônimo lançado há meio século umas nas outras de forma a suspender a tensão (e a respiração) dos presentes neste sábado na Casa de Francisca. Não se ouvia tilintar de copos ou talheres, o que é comum mesmo durante as apresentações mais intimistas no Palacete Tereza Toledo Lara. Ao invocar o espírito de João Gilberto ao unir canções-símbolo de seu repertório (“Águas de Março”, “Avarandado”, “Eu Quero Um Samba”, “É Preciso Perdoar”, “Na Baixa do Sapateiro”e “Eu Vim da Bahia”) a idiossincrasias ímpares deste disco (“Undiú”, “Valsa” e “Izaura”), os dois celebraram o formato que João consagrou e transformou na base de nossa música. O espetáculo Melhor do Que O Silêncio ainda teve o luxo da percussão detalhista e perfeccionista de Igor Caracas, que, mesmo em sua percuteria, centralizava o ritmo no cesto de vime tocado com vassourinhas à sua frente, tocando timbres diferentes de forma quase sempre discreta, roubando a cena apenas quando veio para a frente do palco e tocou folhas secas na faixa que abre o disco, a imortal “Águas de Março”. Não é porque estou envolvido nesse espetáculo que não vou dizer que foi um dos shows mais bonitos que vi em muito tempo.

E por falar em Casa de Francisca, foi bom ver o Metá Metá nesta quinta-feira mais uma vez em um de seus territórios habituais. O trio formado por Thiago França, Juçara Marçal e Kiko Dinucci é essa usina acústica de energia vital e vê-los repetindo seu repertório em condições ideais de temperatura e pressão é sempre revigorante. Além de passear pelas canções de sua trilogia imbatível de discos, os três ainda passearam por faixas inéditas (mas já conhecidas de quem frequenta seus shows), uma das músicas que fizeram para o balé do grupo Corpo e até uma pinçada do repertório do Duo Moviola, que Kiko mantinha (mantém? Tomara) com Douglas Germano. Sempre um descarrego, uma aula, uma festa.

É neste sábado a estreia do espetáculo Melhor do que o Silêncio, em que Cacá Machado e Laura Lavieri reúnem-se para celebrar o repertório de um dos principais discos de João Gilberto, seu “álbum branco”, gravado em 1973. A apresentação acontece na Casa de Francisca, no dia 11 de novembro, e conta com a participação do percussionista Igor Caracas. No vídeo, os três mostram a versão que fizeram para “Eu Quero um Samba” de Janet de Almeida e Haroldo Barbosa, que abre o lado B do vinil. Assino a direção executiva do espetáculo, que ainda conta com a direção de arte de Amanda Dafoe e a produção do Guto Ruocco, da Circus. Os ingressos estão quase no fim e podem ser comprados neste link.

Bonito ver como um projeto toma forma: acabam de abrir as vendas para o espetáculo Melhor do que o Silêncio, que leva Laura Lavieri e Cacá Machado a um disco central na obra de João Gilberto, o fundamental álbum branco de 1973, batizado apenas com seu nome, que completa meio século neste 2023. Gravado em Nova York apenas com voz e violão e pela revolucionária produtora Wendy Carlos (que havia assinado a trilha sonora de Laranja Mecânica com seu nome de batismo, Walter, e transicionava exatamente naquele momento, assinando o projeto como W. Carlos), o disco é a síntese da excelência musical do maior nome da nossa cultura, reduzido ao minimalismo extremo das cordas vocais e seu instrumento, acompanhado apenas da esposa Miúcha em uma canção e de uma cesta de lixo tocada pelo baterista Sonny Carr. Em Melhor que o Silêncio, reuni Cacá e Laura para recriar essa obra-prima nos palcos e a primeira apresentação acontece na Casa de Francisca, dia 11 de novembro, com a participação do percussionista Igor Caracas. Assino a direção executiva do espetáculo, que ainda a direção de arte de Amanda Dafoe e a produção do Guto Ruocco, da Circus. Os ingressos já podem ser comprados a partir deste link.

Às vésperas de lançar o sucessor de seu Trança, Ava Rocha apresentou-se pela segunda vez acompanhada apenas de piano nesta quarta-feira na Casa de Francisca. Ao seu lado, mais uma vez, o mestre Chicão Montorfano, que ia da sutil delicadeza quase impressionista ao improviso extremo fazendo um par perfeito para os devaneios em forma de canção interpretados pela cantora carioca. Ava subiu ao palco toda de couro preto e entre suas próprias canções (“Você Não Vai Passar”, “Dorival”, “Assumpção”, “Mar ao Fundo”, “Hermética”, “Boca do Céu”, “Doce é o Amor” e as ainda inéditas em disco “Um Sonho” e “Felicidade Ébria”) soltou seu lado intérprete visitando clássicos brasileiros e internacionais: passeou por “Besame Mucho”, Capinam e Jards Macalé (“Movimento dos Barcos”), Tim Maia (“Lamento”), Edu Lobo (“Pra Dizer Adeus”), Bola de Nieve (“Déjame Recordar”), Cat Power (“Where’s My Love”) e Caetano Veloso (“Força Estranha”), sempre conduzindo o público com sua voz e seu corpo, entregue à sua tradicional intensidade cênica. Entre o sublime, o mundano e o êxtase, Ava cuspia pétalas e erguia o próprio chapéu do chão com o pé, equilibrando-se entre cadeiras e brincava com água e vinho, sem deixar que tais gestos tirassem o fôlego e o sentimento das canções, numa apresentação de lavar a alma.

Tava devendo. Sei do Acesa de Alessandra Leão desde quando ele ainda era uma ideia, naquele longíquo tempo pré-pandemia. O projeto ganhou vida, virou show e eu ainda não tinha conseguido assisti-lo ao vivo – e finalmente saldei minha dívida nesta quinta-feira, quando pude ver esse híbrido de tradição com modernidade no palco da Casa de Francisca. Disparando samples de gravações que fez no sertão nordestino e manipulando timbres com pedais de distorção, Alessandra veio amparada por um trio digital de peso: Kastrup entre as percussões acústicas e MPC, Zé Nigro nos teclados e Marcelo Cabral no synth bass. E como se não bastasse a intensa roda eletrônica que armou no palco da Francisca, ainda chamou duas entidades para acompanhá-la – e tanto Dani Nega quanto Ava Rocha se esbaldaram ao lado da dona da festa. Que noite!
De lavar a alma a apresentação dos três Metá Metá neste fim de semana na Casa de Francisca. É claro que a falta de presença e calor humanos não torna a experiência completa, mas foi revigorante poder assistir ao reencontro de Juçara Marçal, Thiago França e Kiko Dinucci no já clássico palco depois destes quase sete meses de quarentena, uma entidade se recompondo e nos recompondo ao mesmo tempo, ainda que à distância. Repassaram seu repertório em diferentes ambientes da casa, começando pela cozinha até chegar no salão central, onde a câmera de Heitor Dhalia, que dirigiu a apresentação a convite da casa enfileirou os três cada um num plano, tratando a questão do isolamento social quase como uma opção estética, além em termos de saúde. E diferente da live cinematográfica e em preto e branco que Tulipa e seu irmão Gustavo Ruiz fizeram na Francisca no início de agosto, a apresentação do Metá Metá apresentava o local como o conhecemos, luzes indiretas que iluminavam o piso, as paredes, os móveis, o teto e o assoalho como se pudéssemos nos reencontrar com o grupo num sonho. Se a ausência de palmas entre as músicas criava uma lacuna tensa entre as canções, ela era preenchida pelo vigor e pela energia dos três, claramente felizes de voltar a fazer músicas juntos, mesmo que nessas condições bizarras. Foi de cair o queixo, como quase sempre são os shows do trio. A Casa de Francisca descolou esse trechinho de “Let’s Play That” aqui pro Trabalho Sujo – um dos ápices do show – pra você ficar com vontade…
O show vai estar disponível online na semana que vem e tanto ele quanto os outros shows da série Até o Fim, Cantar, título dado para a série de cinelves que a Casa de Francisca tem feito podem ser vistos no site deles – mas não é gratuito, tem que pagar pra ver. E esse, especificamente, vale muito.
“É uma aglutinação de linguagens, o que sempre resulta em novidade, não é? A situação não permite previsões, tédio e invenção andam de mãos dadas e nos puxam”, me explica por email Tulipa Ruiz quando lhe pergunto se Tulipa Noire, que ela apresenta neste sábado às 21h (mais informações aqui), é uma evolução do conceito de shows transmitidos pela internet. O concerto acontece na Casa de Francisca e é o primeiro show dirigido pela cineasta Laís Bodanzky, diretora do filme Bicho de Sete Cabeças, que foi convidada pelo capo da mágica casa, Rubens Amatto, para assumir a curadoria de cinema do local em tempos de pandemia, elevando as lives a outro patamar.
A cantora conta que estava esperando o momento certo para trabalhar neste formato. “Nossa proximidade com o Rubão e a Casa de Francisca é antiga e sabíamos que a qualquer momento ia acontecer alguma coisa entre a gente nesse momento live. Quando o nome da Laís entrou na jogada, tudo ficou mais saboroso. Vivo com a Tulipa Noire, o filme do Delon, marcado na alma. A associação era inevitável, noir-noire-cinema-Laís. Mesmo assim uma associação solar – o filme original era colorido!”, conta, fazendo referência ao filme que inspirou seu pai, o mestre guitarrista Luiz Chagas, a batizá-la com este nome.
Pouquíssimas pessoas estarão presentes no evento, apenas a cantora, seu irmão Gustavo Ruiz no violão, a diretora Laís e a fotógrafa Thaís Taverna. A única certeza é que será em preto e branco. Tulipa nem sabe o que fará com o show depois de ele ter acontecido. “É algo a ser pensar. Será meu primeiro registro cinematográfico. Vou decupar essa ideia”, conta.
Pergunto como ela está atravessando a quarentena e ela tasca que “como a maioria das pessoas que tem a oportunidade de ficar em suas casas, esse negócio de ‘tempo livre’ é bobagem. Nunca estive tão ocupada em minha vida, nem que seja para não fazer nada ou dormir. Isso te ocupa muito”. Ela também menciona lives que a emocionaram: “Várias, a começar pelo João Donato que introduziu muita vida na dele; Teresa Cristina, maravilhosa; o Gil, divino; o Curumim e a Anelis fazem umas aqui na esquina de casa, mas que parecem vindas da Lua. “
Eis o resultado da categoria música popular segundo a comissão julgadora da Associação Paulista de Críticos de Arte, que faço parte ao lado de José Norberto Flesch, Lucas Brêda, Marcelo Costa, Roberta Martinelli, Tellé Cardim e Fabio Siqueira.
Grande premio da crítica: Gilberto Gil
In Memoriam: Carlos Eduardo Miranda
Artista do Ano: Marcelo D2
Melhor Álbum: Luiza Lian – Azul Moderno
Melhor Show: Racionais MCs
Revelação: Duda Beat
Projeto Especial: Casa de Francisca
Capa: Karol Conká – Ambulante
Clássico palco para diferentes cenas musicais de todo o país, a Casa de Francisca despediu-se do bairro dos Jardins em São Paulo, no final do ano passado, quando mudou-se para o palacete no centro da cidade. A última noite da casa original foi também a primeira em que o Metá Metá – uma conjuração curada e curtida na própria Casa – apresentou-se em sua formação completa, como um quinteto, no palco da Rua José Maria Lisboa. Esta última apresentação, na véspera da véspera de natal do ano passado, foi registrada pelo francês Vincent Moon: