Despeço-me da revista Caros Amigos, cuja última edição chega às bancas neste dezembro de 2017, desejando um futuro próximo à publicação que acolheu esta coluna Tudo Tanto.
Depois do Juízo Final
Despeço-me da coluna Tudo Tanto falando sobre o alento épico de Chico Buarque na melhor canção deste ano
“O sol há de brilhar mais uma vez
A luz há de chegar aos corações
Do mal será queimada a semente
O amor será eterno novamente
É o Juízo Final
A história do Bem e do Mal
Quero ter olhos pra ver
A maldade desaparecer”
(Nelson Cavaquinho)
Na coluna da edição passada falei sobre como os maus tratos para com a figura de Chico Buarque – vindo tanto da esquerda quanto da direita radicais desta era politicamente polarizada em que vivemos – seriam lembrados como um retrato dos tempos ridículos que vivemos nesta segunda década do século no país. Um dos maiores nomes de nossa cultura foi atirado à arena pública do escárnio como se sua reputação fosse uma ameaça para desmascarar o jorro de bílis mental que infelizmente vem se tornando rotina em nosso dia-a-dia.
E é. Munido de suas maiores armas – notas musicais, palavras e um arguto senso de estética, ética e política -, Chico respondeu aos seus detratores com sua obra mais importante desde o século passado, o monumental Caravanas, um disco essencialmente político mesmo que não fale sobre a política partidária que intoxica nosso debate público. Chico canta a cultura de uma forma ampla, tratando-a como a essência de nossa sociedade, falando sobre diversas nuances comportamentais que retratam a sociedade que somos e que podemos ser.
Mas nada havia nos preparado para “As Caravanas”. A faixa que quase batiza o disco (que opta por não usar o artigo definido plural) é seu eixo gravitacional, um épico carioca que transforma todo o disco em acessório para este grande momento. Última faixa do álbum, ela chega sorrateira como se viesse apenas concluir as pequenas digressões que o compõem para finalmente amarrá-las todas a uma descrição das invasões bárbaras que tanto incomodam os poderes estabelecidos que mandam no país desde antes de seu descobrimento.
Parte de sua entrada súbita vem de um andamento conhecido – e hipnótico. “Caravanas” foi criada sobre “Caravan”, hoje um standard jazzístico que também é a espinha dorsal para o grande jazz norte-americano da segunda metade do século passado. O caminhar lento e constante das notas imortalizadas por Duke Ellington são a trilha percorrida por Chico, que munido também do Estrangeiro de Albert Camus, compara as imigrações ilegais que ameaçam o conservadorismo nos principais países no mundo (servindo também como desculpa para pesar a mão sobre políticas sociais e direitos humanos devido à chegada desta “ameaça”).
Ao pintar o Oceano Atlântico que banha o Rio de Janeiro com a cor do mar em Istambul, Chico está falando dos muçulmanos que fogem das guerras artificiais no Oriente Médio em busca de algum alento na Europa mas também remonta às invasões bárbaras, que desconstruíram o Império Romano, e também ao tráfico desumano de pessoas que forçou a diáspora africana que é a base de nosso país. As caravanas do Arará, do Caxangá e da Chatuba que despontam na zona sul do Rio de Janeiro também são navios negreiros e ordens de mouros que chegam com “seus facões e adagas em sungas estufadas e calções disformes” para subverter a sensação de ordem que faz os poderes instituídos chamarem um país hostil para com seus próprios cidadãos de democracia.
Chico ainda conta com a percussão vocal feita por Mike, do Dream Team do Passinho, trazendo a beatbox do funk carioca para a descrição épica de uma sociedade à beira de uma transformação. Ao descrever o melhor retrato deste país no trágico momento atual, Chico Buarque também compôs a melhor música deste 2017 e também um alento para que, após o vindouro Juízo Final de nossa política, algo mude completamente o estado das coisas.
Tenhamos fé.
***
Outro triste sintoma destes tempos ásperos que atravessamos no país é a súbita notícia do fim da Caros Amigos. Acompanho a revista desde sua primeira edição (com Juca Kfouri bombástico disparando para todos os lados na hoje mítica capa em preto e branco) e pude acompanhar todas suas transformações: as edições especiais, os fascículos sobre os heróis brasileiros, o site, a entrada das cores, a redução no tamanho do formato. Sempre amparada por longas entrevistas e artigos de fôlego, a revista é o constante antídoto para tempos superficiais e destros, que optam por transformar política e economia em jogatina comercial e arte e cultura em mero entretenimento. Também é lar para pensadores políticos brilhantes, como José Arbex e Gilberto Vasconcellos, este último uma espécie de farol na formação do meu próprio pensamento político (cabe aqui um agradecimento público).
A frase de efeito “a primeira à esquerda” não era só um trocadilho esperto, mas também um alento frente ao conservadorismo cada vez mais reacionário que toma conta da mentalidade das grandes publicações brasileiras, apenas pelo fato de tornar público seu credo, em vez de tentar convencer parca e porcamente ao leitor de um certo “jornalismo imparcial”, eufemismo mal utilizado que disfarça convicções editoriais que, no literal fim das contas, também são comerciais. Ao assumir-se de esquerda, a Caros Amigos saía com larga vantagem frente à maioria das publicações impressas brasileiras
Fiquei grato e envaidecido pelo convite para escrever sobre música brasileira numa publicação tão importante para a minha formação, além de poder retribuir este convite convidando o leitor para observar a produção cultural de nossos tempos, a mesma que é considerada fogo de palha ou meramente juvenil para os veículos tradicionais brasileiros. Foram quase quarenta colunas jogando luz em transformações culturais e mercadológicas que determinaram uma nova música brasileira, que nasceu influenciada pelo cânone tradicional de nossa canção (o samba, a bossa nova, a MPB) mas que foi buscar referências em recantos menos usuais, como o jazz, o hip hop, o rock, a música eletrônica, movimentos de vanguarda musical dentro e fora do país, ajudando, inclusive, a reinventar este cânone.
Foram pouco mais de três anos de Tudo Tanto, coluna batizada com o título do segundo disco de Tulipa Ruiz justamente para reforçar a intensidade – tanto de quantidade quanto de quantidade – da atual música brasileira. Aproveito a oportunidade não apenas para lamentar o fim deste ciclo quanto para agradecer aos fiéis camaradas que me acompanharam nesta jornada do lado de lá da revista: ao heroico Wagner Nabuco, que insistia teimoso na sobrevivência de sua publicação sendo esta sua própria carta de intenções, à paciente Nina Fideles, que recebe meus textos quase sempre em cima do fechamento final, e, finalmente, ao mestre Aray Nabuco, que conheci no meu berçário profissional, o Diário do Povo, cuja presença nos poucos anos de convívio pessoal ajudou a alicerçar meu jornalismo em seus primeiros anos, e que teve a ideia de me chamar para colaborar com esta que é das principais publicações da história do jornalismo brasileiro. Despeço-me também de leitores que desconheço agradecendo pela leitura, principalmente se ela os instigou a buscar estes novos artistas que não tocam no rádio nem aparecem na TV, mas que souberam usar a internet como seu principal veículo de divulgação.
Mas o gosto acridoce da despedida vem com uma ponta de esperança de que este fim de publicação não é propriamente um ponto final e sim o encerramento de um ciclo que irá revelar, num futuro próximo, uma nova encarnação da Caros Amigos para encantar novos e velhos leitores. Torço por isso. O sol parece não estar mais no horizonte durante este inverno sombrio que paira sobre nossas cabeças. Mas sabemos que estações vêm e vão e daqui a pouco voltaremos a respirar o ar puro da liberdade.
Até breve.
Minha coluna Tudo Tanto de novembro na revista Caros Amigos fala sobre como Chico Buarque virou um alvo para todos – e como ele respondeu isso com arte e música.
“Machista, comunista, vai pra Cuba!“
Não há dúvida que vamos olhar, no futuro, para esta década como um dos períodos mais vergonhosos da história do Brasil. O andar pesado do retrocesso — político, moral, econômico, ético, cultural — pode ser medido por meio de inúmeras réguas, mas talvez a mais emblemática seja aquela que tenta derrubar um dos maiores ícones da cultura brasileira: Chico Buarque.
Filho de um dos maiores nomes das ciências humanas destas bandas (o Sérgio Buarque de Hollanda que propôs o conceito artificial do “homem cordial” para rotular o brasileiro em seu fundamental livro Raízes do Brasil), Chico é contemporâneo da bossa nova e assistiu de perto às transformações políticas que se abatem no Brasil no início dos anos 1960, da brutalização do debate político à dura resistência cultural, culminando no golpe “anticomunista” de 1964 que trouxe as poucas famílias que tomam conta do Brasil de volta ao poder (e a história se repete cinquenta anos depois exatamente da mesma forma…). A segunda metade da década viu a ascensão de Chico como cantor e compositor, um ourives dos versos e melodias, que nos seus primeiros anos de carreira escreveu clássicos como A Banda, Noite dos Mascarados, Com Açúcar, com Afeto, Quem Te Viu, Quem Te Vê, Retrato em Branco e Preto, Carolina, Roda Viva, Essa Moça Tá Diferente e Samba e Amor, antes de firmar-se como autor no ousado Construção e na provocadora Apesar de Você, no início dos anos 1970.
Desde então Chico vem estabelecendo-se como um intelectual ativo no imaginário popular brasileiro, mais do que cantor e compositor. Dramaturgo, escritor e até apresentador de programa de TV (quando, nos anos 1980, dividiu com Caetano Veloso o musical Chico & Caetano, na Rede Globo), ele sempre esteve presente nos diferentes embates políticos de que foi contemporâneo, da anistia aos exilados da ditadura ao movimento das Diretas Já, entre outros movimentos políticos e culturais das últimas décadas. Ao contrário de Caetano Veloso, Chico é mais reservado e com o passar do tempo foi se preocupando menos em lançar discos e fazer shows e mais em escrever livros.
E por mais que seu maior legado seja por escrito, seu lugar é a música, na qual consolidou sua reputação de contestador, de ativista político, de romântico inveterado, de sambista classudo e de letrista ousado. Por melhores que sejam seus livros ou sua presença pública, ela não é tão precisa e preciosa quanto seus discos, aos quais se dedica com esmero.
Nos últimos anos, contudo, toda a reverência que o tornava um dos grandes nomes de nossa cultura, além de uma de suas raras unanimidades, foi ruindo à medida em que os ânimos foram se acirrando. A belicosidade da discussão política no Brasil, acirrada principalmente pelas redes sociais, mas também por práticas fora da internet, passou a escolher alvos tanto à direita quanto à esquerda — e velhos conservadores e novos reacionários elegeram juntos Chico Buarque como o grande bastião vermelho, principalmente pelo fato de Chico ser um dos principais nomes públicos entusiastas das candidaturas e das presidências de Lula e Dilma.
Chico começou a ser visto e difamado como um pária comunista, arrimo intelectual da malograda baixa escolaridade do primeiro presidente petista, avalizador de um suposto novo Vargas a uma classe média teoricamente deslumbrada com seus versos e canções — só que, claro, sem um átimo desta polidez descritiva. Gritos de “vai pra Cuba!” e “vai pra Paris!”, berrados na internet e fora dela, acusavam-no de capitão de uma certa “esquerda caviar” que, às custas da “inocência do povo” (?) vive “uma vida burguesa sem culpas??”. Em um par de anos, Chico Buarque transformou-se numa espécie de cúmplice daquele que, na visão torpe destes desmiolados, foi o maior vilão da história do Brasil.
Se por um lado este tipo de ataque constrange mas é esperado, principalmente por conta do clima agressivo que paira sobre o País, o que dizer quando o ataque vem de seus antigos fãs — ou, mais especificamente, de suas antigas fãs? Isso começou a acontecer depois que ele lançou a primeira canção de seu novo trabalho, chamada Tua Cantiga, acusada de machista por narrar uma paixão do personagem dos versos.
A grita da esquerda — mais especificamente das feministas — dizia respeito ao verso “Largo mulher e filhos” como se Chico estivesse incentivando pais de família a largar sua prole por uma amante. Depois de tachado de comunista, foi a vez de chamá-lo de machista — como se a situação descrita por ele tivesse que necessariamente ser correta ou servir de exemplo. Como se ele não pudesse descrever algo de que discorde quando compunha. Mas e se ele não estivesse falando de outra mulher? Se ele estivesse falando da liberdade, da democracia, da felicidade anterior a este clima de trevas que vivemos hoje? Releia a letra com isso na cabeça e perceba que Chico segue sendo o mesmo compositor incrível de seus dias de ouro, embora não componha mais com tanta frequência. Isso sem contar As Caravanas, faixa que batiza seu novo título, mas essa música é assunto pra outra coluna.
Escrevi na minha coluna Tudo Tanto na edição de outubro da revista Caros Amigos sobre a importância de Gilberto Gil para a cultura brasileira a partir do show que o mestre baiano fez em comemoração aos 40 anos de seu Refavela.
Aqui e agora
Gilberto Gil mostra porque é um dos grandes nomes de nossa cultura
É importante sublinhar a importância de Gilberto Gil. Um dos maiores nomes da nossa cultura, o baiano já é frequentemente incensado como artista completo, mas seu impacto no país ainda há de ser mensurado. Não é apenas um compositor brilhante, um vocalista encantador, um músico incomparável, um carisma único, um artista ímpar. Ele também tem seu papel político ao fazer conexões inesperadas por toda sua carreira, seja misturando bossa nova e rock’n’roll, trazendo o reggae para o Brasil, urbanizando o forró, assumindo a cadeira de ministro da cultura de Lula.
Nesse sentido, Refavela, que completa quarenta anos neste 2017, talvez seja seu principal álbum. É discutível que seja seu melhor disco (eu fico entre os discos da virada dos 60 para os 70, Expresso 2222 e os da virada dos 70 para os 80), mas sua importância é insuperável. Pois é o disco que Gil fez após visitar a África durante o Festival Mundial de Arte e Cultura Negra, em Lagos, na Nigéria, e conhecer as origens de sua negritude, traçar paralelos entre o Brasil Colônia e o Brasil da ditadura militar, a escravidão e a desigualdade social, além de se aprofundar na religiosidade afro-brasileira. É um disco em que Gil constrói pontes entre realidades ainda isoladas entre si, que ajuda a traçar a consciência de um Brasil que sempre foi jogado à margem, para fora da história.
Mas músicas como “Babá Alapalá”, “Patuscada de Gandhi”, “Era Nova”, “Ilê Ayê” e “Sandra”, embora estejam entre as mais bonitas composições de seu autor, não são das mais conhecidas de Gil, por isso, reforço o que disse no início, que é importante mostrar como Gil é importante. Ainda mais logo depois de um ano em que ele esteve mal de saúde a ponto de cogitarem, mais de uma vez, a possibilidade de ele estar nas últimas (toc, toc, toc). Por isso não tinha como não comemorar o acontecimento que foi o show Refavela40, organizado por um de seus filhos, Bem Gil, para celebrar o aniversário do disco com a presença do próprio pai.
A banda reunida era formada por nomes ilustres, mas ao mesmo tempo era quase uma família. Para completar o time, Bem chamou os músicos de sua banda, o Tono, para compor a formação – sua esposa Ana Claudia Lomelino, também conhecida como Mãeana, estava em um dos vocais de apoio, o baterista Rafael Rocha acompanhava na percussão e o baixo estava com o versátil Bruno di Lullo. Além destes, ainda marcavam presença Moreno Veloso, filho de Caetano que entrou como vocalista convidado, seu compadre Domênico Lancelotti na bateria, a cantora e pianista Maíra Freitas (filha de Martinho da Vila), outra filha de Gil, Nara, nos vocais, a cantora paulistana Céu, os sopros de Thiagô de Oliveira e Mateus Aleluia e a percussão de Thomas Harres, baterista da banda Abayomi, que sugeriu que Bem fizesse um show em homenagem ao disco. Entre Ana e Nara, o filho de Bem e Mãeana, o pequeno Dom Gil, acompanhava a percussão.
Mas por mais que seja importante celebrar esse disco, o show cai num vácuo criativo que vem imperando cada vez mais na cena musical brasileira: o de shows-tributo. Feitos originalmente para comemorar discos ou artistas que estavam fora dos holofotes ou longe das discussões, estas apresentações passaram a se tornar muletas para programadores preguiçosos e artistas que topam tudo, que em vez de vender seus próprios trabalhos autorais preferem ficar presos a repertórios alheios já conhecidos. Se por um lado abre janelas de possibilidades sonoras ao confrontar artistas em ascensão com nomes já estabelecidos, na prática vêm se tornando cada vez mais convencionais, sem criatividade ou sem brilho. O que era uma boa sacada virou uma fórmula gasta, transformando artistas de renome em bandas cover.
E era um pouco isso que aconteceu no palco do teatro do Sesc Pinheiros, que recebeu o Refavela 40 em três datas lotadas e para um público reverente. Mas a reverência por parte da banda era correta demais e aconteceram poucos momentos realmente interessantes no início do show, que não teve a participação de Gil. Fora o incrível solo de balafon (uma espécie de xilofone africano de Thomas Harres), o carisma e o teclado impressionantes de Maíra, a versão que Céu fez para “Nova Era” e o bom entrosamento da cozinha (especificamente entre Domenico e Bruno), o resto do show foi pálido e quase apático, sem a energia que o disco original soltava pelos poros.
Mas bastou Gil entrar para tudo mudar. Com seus setenta e seis anos completos, o baiano entrou no palco dançando, contando histórias e assumiu a voz de suas canções mostrando porque ele merece ser celebrado. O tempo de participação no show certamente deve ter sido reduzido por suas condições de saúde, mas depois que ele entra no palco, sequer lembramos que ele esteve doente. Sequer lembramos que ele tem mais de setenta anos, que é um senhor de idade que poderia estar apenas curtindo a sua aposentadoria. Ele entra no palco como um mago moleque, hipnotizando o público com um charme único em nossa cultura.
O show todo durou quase duas horas e Gil não ocupou nem uma hora inteira com sua participação. Não precisava. Mestre absoluto, esticou o tempo como se pudéssemos estar nele o tempo todo, populando aqueles poucos minutos como se fossem séculos. Ou, como ele reforça em uma das canções deste mítico Refavela, “o melhor lugar do mundo é aqui e agora”. Ave Gil!
A minha coluna Tudo Tanto da edição de setembro da revista Caros Amigos conta a trajetória de Otto, que fez o ex-percussionista do Mundo Livre S/A se tornar um dos grandes nomes da música brasileira contemporânea.
Um longo caminho
Depois de duas décadas de carreira solo, Otto lança seu melhor disco e está pronto para as massas
Lembro da primeira vez que vi Otto ao vivo, ainda no Mundo Livre S/A. O ano devia ser entre 94 ou 95 e o grupo apresentava-se num lugar chamado A Casa, se não me engano um evento organizado pelo jornalista Alex Antunes. Já tinha ouvido falar que o Mundo Livre ao vivo não funcionava, que seu disco de estreia, Samba Esquema Noise, de 1994, havia ganhado um corpo no estúdio – através das mãos dos produtores Carlos Eduardo Miranda e Charles Gavin – que a banda não tinha no palco. Mas aquilo ali era um pouco demais.
A banda realmente não segurava as pontas ao vivo, com o vocalista Fred Zero Quatro esforçando-se para manter o brio e a cara de cool enquanto a banda atrás dele se engalfinhava para fazer aquelas músicas manterem-se de pé. Mas o percussionista da banda não ajudava nada. Otto, que na época usava uma longa cabeleira loira, e era apenas coadjuvante no grupo, teimava em solar atabaques, pandeiros e tambores à revelia do que estava sendo tocado. Cantarolava atravessando a voz de Fred apenas para tomar fuziladas visuais dos olhos do vocalista. Metade do público estranhava por achar o percussionista sem noção e a outra metade sorria ao achar tudo muito doido.
Não era uma banda desajustada. O que acontecia ali naquele palco – e em tantos outros shows da banda naquele período – era uma disputa velada entre os dois artistas por espaço na banda. Depois de um tempo soube que Otto tinha suas próprias composições, que eram menosprezadas ou ignoradas por Fred Zero Quatro, fundador e dono do Mundo Livre S/A. Otto resolvia aquela briga pulando em frente ao holofote na frente do vocalista ao puxar suas próprias canções – ou rascunhos de canções – no meio das canções de Zero Quatro. O resultado eram shows desastrosos, que aumentava ainda mais a fama que a banda tinha de não funcionar ao vivo.
Isso inevitavelmente seria resolvido com a saída de Otto da banda, depois que gravaram seu segundo disco, o subestimado Guentando a Ôia, de 1996. Sem grupo, ele aos poucos foi se aproximando da música eletrônica e, graças a dicas e conselhos do jornalista Camilo Rocha e do produtor Apollo 9, ele reinventou-se como um artista solo. O mesmo Miranda que lançou o Samba Esquema Noise do Mundo Livre S/A abria espaço para a nova empreitada do músico ao transformá-lo no carro-chefe do selo que inaugurava numa gravadora brasileira novíssima. Samba Pra Burro, o disco de estreia de Otto, foi o disco que inaugurou o selo Matraca em 1998 e um dos primeiros lançamentos de uma gravadora que fez história, a Trama.
Os primeiros shows que Otto fez solo, no entanto, não faziam jus ao ótimo disco de estreia. Tocando percussão acompanhado de um produtor, os shows não tinham força nem presença, por mais carismático que o artista fosse. Isso só foi resolvido quando chamou o tecladista e produtor Daniel Ganjaman, que trabalhava com rap, para montar uma banda. A Jambro Band – nome que vinha de um trocadilho criado por Otto, pelo fato da banda ser uma “jam de broders” – teve diversas formações e aos poucos o pernambucano foi consolidando a reputação ao vivo. Além de Ganjaman, passaram pela Jambro Band nomes como Fernando Catatau e Rian Batista (ambos do grupo Cidadão Instigado), os percussionistas conterrâneos Marcos Axé e André Male, o guitarrista cearense Junior Boca, o baterista paulistano Maurício Takara (irmão de Ganjaman), entre outros. A banda funcionou como aquecimento para parte de uma geração de músicos radicados em São Paulo e ajudou a Ganjaman a idealizar os shows do coletivo Instituto, que criaria ao lado de Rica Amabis e Tejo Damasceno anos depois. Os discos mais emblemáticos deste período são o pesado Condom Black, de 2001, e Sem Gravidade, de 2003. Enquanto cruzava o Brasil com sua banda, ainda teve tempo de lançar uma versão remix para seu primeiro disco chamada de Changez-Tout, lançado no ano 2000. Esta segunda fase foi encerrada com o disco ao vivo MTV Apresenta, lançado em 2005.
A partir daí começa a terceira fase de sua carreira, que parece ter chegado ao ápice com o recém-lançado Ottomatopeia. Em um período de mais de uma década, Otto forjou uma nova personalidade musical, mais romântica, existencialista e popular que a que consolidou sua carreira solo, gravando discos de forte apelo emocional. O trio de discos iniciado com Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos (de 2009), continuado com The Moon 1111 (de 2011) e aparentemente concluído com Ottomatopeia (de 2017) consagra sua parceria com o baterista da Nação Zumbi, Pupilo, como produtor de discos cheios de participações especiais e inspirações fortes – o disco de 2009 é batizado a partir da frase que abre o livro A Metamorfose de Franz Kafka, e o de 2011 é diretamente inspirado pelo Dark Side of the Moon de Pink Floyd e pelo cinema francês de François Truffaut. Os discos têm participações de músicos como Lirinha, do Cordel do Fogo Encantado, Fernando Catatau, Dengue, baixista da Nação Zumbi e duetos com cantoras como Céu, Luê, Tainá Muller e Julieta Venegas. São discos que marcam uma fase sóbria e um tanto sombria de suas composições, o primeiro destes influenciado pelo fim do casamento com a atriz Alessandra Negrini e pela morte de sua mãe.
Ottomatopeia, no entanto, abre a janela e deixa a luz entrar neste período noturno. Um disco solar, de forte sotaque tropical e raízes latinas, o disco recém-lançado é o álbum mais forte da carreira de Otto e consagra sua carreira como um dos principais cantores e compositores da música brasileira atual. É seu disco mais fácil e também mais brega (no melhor sentido do termo), com direito à dupla de guitarristas paraenses Felipe e Manoel Cordeiro e dueto com Roberta Miranda na faixa “Meu Dengo”. Uma carreira tortuosa, que conseguiu encontrar a própria voz às duras penas e que agora está pronta para as massas. Ave Otto!
Minha coluna Tudo Tanto na edição de agosto deste ano da revista Caros Amigos foi sobre o festival candango PicNik.
Crescer pra quê?
O festival brasiliense PicNik aposta no médio porte para se tornar autossustentável e agradável ao mesmo tempo
No horizonte, impávida, a Torre de TV de Brasília parece ainda maior pela ausência de construções ao seu redor e por estar constantemente avistando os frequentadores do festival PicNik abaixo. Circulando ao redor do espelho d’água em frente a ela, o evento que começou a partir de uma inquietação e sem muitas expectativas reunia dezenas de expositores e vendedores agora era um enorme de pequenos produtores que trabalham com comida, moda, artesanato, decoração, saúde, bem estar e recebia milhares de pessoas durante os dois dias em que aconteceu no final de junho na capital federal.
Ao fundo, no final dos corredores e tendas de lojas e barracas de alimentação, camas para massagem, fumódromos de narguilê e até uma máquina que cortava discos de vinis de shows gravados na hora, uma tenda de circo cobria um pequeno palco em que a banda FireFriend apresentava-se. Liderada pelo casal Yuri Hermuche (guitarra e vocais) e Julia Grassetti (baixo, vocais e teclados) ao lado do baterista Pablo Oruê, o trio indie paulista funcionava perfeitamente naquele ambiente, a tarde fria e ensolarada de um sábado de outono reunia uma quantidade boa de gente para ver o grupo tocar. Não estava cheio mas não estava vazio e muitos dos que paravam para assistir ao show tinham ido apenas para fazer compras – ou apenas passear, já que o festival é gratuito.
Embora adequado para a proporção do FireFriend, aquele palco parecia pequeno para receber os artistas que ainda tocariam naquela edição do evento, como o trio O Terno, a cantora Ava Rocha e os dez integrantes do grupo Bixiga 70. Não o tamanho do palco em si, mas sua distância em relação à audiência, a altura e ausência de fosso entre artista e público. Mas o que a princípio parecia discrepante, na verdade é estratégico. Porque o PicNik quer crescer, mas não crescer demais.
“Nós não temos interesse em tornar o evento maior do que já é, e sim de entender como criar filtros para manter dentro do evento um público saudável e interessante, que interaja positivamente com nossa ferramenta, seja comprando dos expositores, vendo uma palestra, curtindo um show, fazendo aula de ioga, trabalhando como voluntário”, me explica Miguel Rodrigues Galvão, que idealizou o evento ao lado da publicitária Julia Hormann. “Algumas pessoas que estiveram nos primeiros anos não frequentam mais o PicniK e estamos vendo uma nova geração abraçando uma proposta: o desafio agora é contextualizar essa galera de que existem princípios e motivos para o projeto acontecer, que não somos apenas uma grande farra aberta.”
O festival começou como um bazar coletivo criado de uma hora pra outra, sem planejamento, aproveitando o momento. “Em 2012, uma amiga que trabalhava na administração de Brasília – uma espécie de prefeitura local -, me procurou para pensar uma ocupação diurna ao Calçadão da Asa Norte, espaço recém-inaugurado mas que era desprezado pela vizinhança e já se via tomado por marginais”, continua Miguel. “Na mesma época, morava com uma menina, a Dani, que estava muito envolvida com a vibe de brechós e percebi que tinha uma onda muito legal envolvida nessa movimentação. Juntamos as pontas e pensamos: se a gente trazer um público legal para esses expositores, será que eles nos ajudam a pagar a conta de nosso encontro? Daí, olhamos para uma data que parecia ideal para lançar a proposta: o aniversário de Brasília, que à tempos não tinha uma celebração que envolvesse a galera alternativa da cidade.”
Miguel conta que a ideia do evento já estava em sua cabeça há mais tempo, mas ele não via como viabilizá-la. “Estava muito desiludido com esse meio da cultura noturna alternativa – em que atuava ativamente – e vislumbrava a criação de uma plataforma de vibração de dia, onde as pessoas interessantes e diferentes da cidade poderiam se encontrar para interagir sem as ‘máscaras’ da noite, que propusesse um break, mesmo que momentâneo, dessa intensidade virtual a que somos submetidos, valorizando a realidade presencial acima de tudo”, explica. O nome veio a partir da sensação de que ele queria passar para o evento – algo leve, diurno, pra cima e para todas idades.
Esta preocupação também estava refletida na escalação das bandas. Nada muito pesado, agressivo ou barulhento – a curadoria musical do festival PicNik caminha em direção à psicodelia, ao indie rock e à música brasileira, buscando artistas que ocupem as interseções entre estes estilos. Além de FireFriend, Bixiga 70, O Terno e Ava Rocha, o festival ainda contou com a banda califoniana Blank Tapes, o pernambucano Tagore, os paraibanos Glue Trip, os gaúchos dos Mustaches e os Apaches, os mineiros do Congo Congo e Teach Me Tiger e os brasilienses Transquarto, Brancunians, Supervibe, Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro e Cassino Supernova – estes últimos homenageando o jovem recém-falecido baixista Pedro Souto.
Outra peculiaridade bem-vinda do festival: deixar as atrações mais disputadas para o meio da programação – e não para o final. Assim, quando a última banda estava tocando, grande parte do público já tinha ido embora e o encerramento do evento não fica naquela suspensão de eletricidade coletiva característica dos shows para multidões, terminando naturalmente. Ponto para o grupo.
Escrevi sobre os discos novos de dois grandes nomes da música brasileira atual – Curumin e Rincon Sapiência – em minha coluna na edição de julho da revista Caros Amigos.
Novos caciques
Curumin e Ricon Sapiência provocam a mesmice política da música brasileira atual mostrando que não existe um padrão para o futuro
Há um tempo que venho detectando e relatando aqui nesta coluna, o reencontro da música brasileira com a cultura de protesto, a contracultura, a vanguarda estética e o descontentamento generalizado da sociedade. Qualidades distintas, mas primas, vizinhas e movidas pela mesma motivação, que é próxima do próprio conceito da arte em si, de não manter-se no mesmo lugar, de querer sempre transcender, ir além. A expressão artística em si não limita-se a apenas refletir o indivíduo, a sociedade ou a civilização, mas também a provocar a transformação, a questionar o status quo, buscar expandir a consciência – e com ela, o indíviduo, a sociedade e a civilização.
Tradicionalmente, a música (e a cultura como um todo) brasileira sempre enfrentou a autoridade, a mesmice, a estagnação. Nossa tradição é a do anti-herói, sejam os personagens de Machado de Assis ou do Henfil, o intelectual em conflito ou o político populista do filme Terra em Transe, a golpista e o empresário corrupto de Vale Tudo ou o malandro / bandido e policial corrupto / assassino das letras do samba e do hip hop. O Brasil sempre viveu à margem e sua cultura traduzia isso em forma de confronto – são clássicos os dribles que diferentes compositores deram na censura mais hostil à cultura (a da época da ditadura militar, antes dos anos Fernando). Mas nos anos de ouro da economia nacional do início do século, a música – e, de certa forma, toda a cultura brasileira – passou por um momento de autocelebração e de autocontentamento que inevitavelmente neutralizava o choque e o conflito, criando o tal abismo estético – que é irmão da polarização política – que segue dividindo o Brasil neste novo século. Até o rap, tradicionalmente aguerrido e politizado, começou a falar de amor.
Mas essa década do não-confronto não aconteceu só por conta da boa fase financeira que o Brasil – e o mundo – atravessava. Ela também coincide com o início da era digital para as massas, quando a internet deixa de ser conexão discada e vira banda larga, quando o texto deixa de ser o principal padrão de comunicação para dar espaço para imagens, sons e vídeos, quando a internet sai dos computadores para os telefones celulares e as pessoas passam a se conectar umas às outras através de enormes catálogos humanos online chamados de redes sociais. Este novo cenário começou a ser desenhado pela própria chegada da música na internet. A velocidade de transferência e o formato MP3 fizeram a música ser o boi de piranha da nova mídia e com ela foi descentralizado um mercado que, durante o século vinte, foi lentamente se transformando em um oligopólio. O download ilegal de músicas no início do século fez a indústria fonográfica perder a liderança cultural que um dia teve, passando-a para empresas de tecnologia, notadamente a Apple (mas não dá para excluir a Microsoft, o Last.fm, Google Play, Deezer, Spotify, Podomatic, Trama Virtual e todas iniciativas que ajudaram o público a consumir música sem suporte físico). A mesma década de satisfação política também foi uma década de reinvenção de formatos e uma nova geração de artistas viu-se surgindo entre um mercado que estava desintegrando e um outro que vinha sendo construído de forma incerta. As primeiras gerações da música brasileira no século vinte e um não protestavam porque não queriam – mas fazer música em si já era uma forma de protesto, de sobrevivência em um mercado que não parecia ter solução viável no horizonte para mantê-lo financeiramente.
Isso, contudo, vem mudando. Esta mesma geração é dona de uma nova safra de álbuns lançada nos últimos anos mostra que está botando suas garras de fora – e cobrando uma mudança. Nó na Oreia do Criolo, Fortaleza do Cidadão Instigado, De Baile Solto de Siba, o Violar do Instituto, o Ascensão de Serena Assumpção, o Dancê de Tulipa Ruiz, o Mulher do Fim do Mundo de Elza Soares e Cortes Curtos de Kiko Dinucci são apenas alguns destes discos que aos poucos peitam a mentalidade de shopping center e a produtização que o capitalismo impõe à cultura. Há dezenas de outros, mas faltava uma pressão mais forte, mais direta. E essa pressão começou a ser feita por dois álbuns de 2017, lançados na mesma semana: o Galanga Livre, de Rincon Paciência, e o Boca, de Curumin.
São discos irmãos, paulistanos, mas essencialmente brasileiros, que fogem do cinza da metrópole para abraçar o colorido de todo o país, sem perder os olhos e os ouvidos do resto do mundo. Álbuns que mexem com diferentes estados de espírito e gêneros musicais, pontos de vistas e visões de mundo, temperaturas e pressões distintas para fugir de uma estética única, repetitiva, quadrada. Rincon e Curumin fogem dos padrões, mas, principalmente, do padrão, da âncora mercadológica do sucesso comercial que, quando não dá o prumo, ajuda a afundar.
O multifacetado Galanga Livre parte de uma história fictícia de um escravo que matou o senhor de engenho para entrar num Brasil em constante movimento, intenso e sempre na pressão, mesmo nos momentos mais contemplativos. Rincon produz e rima com características particulares, uma dicção que remete a idiomas africanos, rimas sagazes e manhosas e beats que casam samba com trap, a versão mais recente e eletrônica do hip hop norte-americano. Ele fala sério com um riso no canto da boca, brinca com assuntos sérios, superpõe o épico e o mundano, história e rotina para frisar que os diferentes aspectos de sua musicalidade não são díspares, mas complementares.
Curumin segue um discurso semelhante, mas trabalhando na pós-produção, no improviso, na sonoridade orgânica. Multiinstrumentista, ele lidera sua banda a partir de uma bateria cheia de samples, pedais, teclados. Dispara trechos de música para encaixar em sua própria batida, seja orgânica ou sintética, acompanhado de perto por seus velhos compadres Zé Nigro e Lucas Martins, que também revezam-se nos vocais, guitarra, baixo, efeitos e MPC, lidando com as duas facetas da mesma musicalidade. Seu recém-lançado disco Boca é o ápice deste amálgama musical, misturando cores e sabores para mostrar que a graça é não ter padrão.
Tanto Boca quanto Galanga Livre pressionam ainda mais o dedo na política ao tirá-la das assembleias e congressos e traze-la para a vida real, cotidiana, puxando discussões sociais e culturais que vão além da régua da mera música pop. Ambos abrem o capítulo 2017 da maturidade dessa geração e têm a mesma força que a dupla Tropix (da Céu) e Duas Cidades (do BaianaSystem) pareciam carregar no ano passado.
Escrevi sobre a onipresença do samba, este fator de unificação nacional, na minha coluna Tudo Tanto na edição de julho da revista Caros Amigos.
Você samba de que lado?
Cem anos depois, o gênero que ajudou a disfarçar o racismo brasileiro e a unificar o país como nação sobrevive à espreita
Alexandre Matias
Essa cena: “Por volta das nove da noite, cerca de 150 homens, funcionários da prefeitura municipal, municiados de marretas, alavancas e pé de cabra, obedeceram à voz de comando e arremeteram contra o alvo. O bruxulear dos archotes usados para iluminar a operação militar conferia maior dramaticidade à cena. Uma multidão, contida ao largo pelo contingente armado, assistia à distância, como um espetáculo sinistro, a destruição madrugada adentro. O elemento surpresa impediu possíveis reações organizadas por parte dos desalojados. Em meio à barulhenta penumbra, homens, mulheres e crianças, antes encafuados nos desvãos dos pequenos imóveis, corriam atônitos pelas ruelas tentando salvar um ou outro pertence tido como mais valioso: colchões, alguns poucos móveis, trouxas de roupa, tralhas de cozinha. Na manhã seguinte, no entanto, sob o sol do verão carioca, foi possível constatar o tamanho do estrago: nada escapara à demolição. Resto, no local, apenas uma montanha poeirenta de entulho.
‘Foi um espetáculo bonito’, definiu um dos jornais de maior circulação à época, O Paiz. ‘A impressão moral daquele feito era como se aos golpes ruidosos, em vez de rolarem pedras, rolassem crenças, ruíssem tradições’, analisou o matutino. Outra publicação, O Tempo, foi mais explícita: ‘Metemos uma lança em África, espostejando a Cabeça de Porco’. A imprensa foi unânime em glorificar a ‘medida civilizatória’ imposta à paisagem da cidade pelo primeiro prefeito da história do Rio de Janeiro, Cândido Barata Ribeiro, médico e intelectual baixinho, magricela e míope, de testa larga e barbas longas, um dos nomes mais proeminentes do movimento republicano brasileiro.
Essa cena aconteceu no dia 26 de janeiro de 1893 e foi recriada pelo escritor cearense Lira Neto, biógrafo de Getúlio Vargas e do Padre Cícero em dois grandes épicos (os três volumes de Getúlio e o tomo único Padre Cícero – Poder, Fé e Gueera no Sertão), como um dos momentos iniciais de seu novo desafio, contar “a história do samba moderno urbano”. O livro Uma História do Samba – As Origens foi publicado no início do ano pela Companhia das Letras (editora dos outros livros do autor) é o início de uma nova trilogia, que pretende mostrar como o gênero, que antes ser estilo musical era sinônimo de festa, barulho e confusão no final do século 19, firmou-se entre a elite e as classes populares brasileiras, saiu do submundo onde era tratado como fora da lei e tornou-se popular a ponto de se tornar um fator de unificação nacional.
Lira Neto na verdade joga uma lupa sobre o tal “mistério do samba”, iluminado pelo antropólogo Hermano Vianna no livro de mesmo nome, lançado em 1995 pela editora carioca Jorge Zahar. Neste volume, Hermano parte de um “noite de violão” em 1926 que reuniu, sob o mesmo teto, os sociólogos Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda (ambos já matutando ideias que paririam os dois livros que os tornam clássicos da cultura brasileira, respectivamente Casa Grande e Senzala, de 1933, e Raízes do Brasil, de 1933), o músico Heitor Villa-Lobos e os sambistas Pixinguinha, Patrício Teixeira e Donga. “O encontro”, título do primeiro capítulo da publicação, é o ponto de partida para entender como o samba deixou de ser criminoso e maldito para se tornar aceito, amado e entrado na textura da noção de nacionalidade brasileira.
Pois o samba era vil, visto como sendo de mau gosto, chulo, fora da lei – “eufemismos” dados para o ponto central da questão: o samba era negro. A recente abolição dos escravos obrigou a elite brasileira a conviver com os ex-escravos sem a hierarquia do regime escravocrata e a solução para continuar esta ascendência era enquadrá-lo em outra lei – a da vadiagem. Sambistas eram negros, negros eram sambistas: o samba, portanto, era diagnóstico de que algo não estava bem – para a elite, essencialmente racista.
A cena descrita no início do texto não é apenas pesada – ela é atual. Fora a iluminação policial (embora lanternas no escuro deem tanta dramaticidade quanto archotes), a destruição do enorme cortiço conhecido como Cabeça de Porco ou Pequena África no Rio de Janeiro é das inúmeras “reintegrações de posse”, neologismo orwelliano para aplacar o impacto real da situação, em que famílias inteiras veem seus lares sendo devastados pela truculenta força militar para que abram-se alas para o progresso. Quantos morros, favelas e quebradas não sucumbiram a esse trator racista durante todo o século passado – até hoje?
Mas impressiona mesmo a reação aberta contra as origens africanas de uma nova cultura popular. Vianna descreve a chamada “belle époque carioca, período no qual muitos autores identificavam uma total separação entre a cultura das elites e a cultura popular no Rio de Janeiro”, em seu Mistério do Samba. “Essa é, por exemplo, a opinião de Jeffrey Needell, para quem na belle époque ‘tropical’, que vai de 1898 a 1914, a tendência dominante era de ‘pôr um fim ao Brasil antigo, ao Brasil ‘africano’, que ameaçava suas pretensões à sofisticação, apesar de se tratar de uma África bem familiar à elite’ (Needell, 1993: 77). Essa também é a opinião de Mônica Velloso, que escreve em As Tradições Populares na Belle Époque Carioca: ‘o endeusamento do modelo civilizatório parisiense é concomitante ao desprestígio das nossas tradições (…) Mais do que nunca, a cultura popular é identificada com negativismo, na medida em que não compactuaria com os valores da modernidade’ (Velloso, 1988: 8/9). E continua: ‘Nos salões da moda, nos cafés e conferências literárias, a referência ao nativo atinge o máximo de desqualificação’ (Velloso, 1988: 17).”
Um país racista que disfarçou seu racismo glorificando uma música (e uma cultura) antes tida como pobre e negra. O racismo brasileiro não pode ser dito – afinal, todos sambam.
E mais de um século depois o samba persiste, seja como trilha sonora de comercial de cerveja, no palco globa do carnaval e em nichos como o novo disco de Criolo (Espiral de Ilusão, dedicado ao gênero), no novo de Rodrigo Campos (Sambas do Absurdo, ao lado de Juçara Marçal e Gui Amabis), o heróico reconhecimento póstumo de Almir Guineto na Folha de S. Paulo (descrito pelo Bernardo Oliveira, do selo Quintavant) ou na celebração dos vinte anos do disco Afrociberdelia, da Nação Zumbi, que repete insistente a pergunta sobre “de que lado você samba?”. Ele sobrevive matreiro, à espreita, pronto para chegar. E sempre chega.
Mais uma coluna minha na revista Caros Amigos, esta da edição de abril deste ano, quando falei sobre o primeiro show que Lô Borges fez de seu primeiro disco solo, 45 anos depois. E, claro, os vídeos que fiz desta apresentação.
De volta à estrada
Lô Borges retoma seu mítico “disco do tênis” ao vivo, 45 anos após seu lançamento
O pequeno Salomão tinha dez anos de idade quando, ao subir pelas escadas do pequeno prédio onde morava com sua família, ouviu um timbre de voz que ecoava pelas paredes acompanhado por um violão sutil e rebuscado. Correu em direção àquele som, encantado pelo puro poder da música e viu Milton, alguns anos mais velho, tocando sozinho em um quarto na casa de seus pais. Aquele encontro mudaria a história da cultura no Brasil.
Era um encontro inevitável. Milton era amigo do irmão mais velho de Salomão, Márcio, e juntos eles eram alguns dos poucos jovens em Belo Horizonte que eram igualmente apaixonados pela bossa nova brasileira e pelos Beatles. Um grupo de amigos – Fernando, Ronaldo, Wagner, Toninho e tantos outros que o tempo esqueceu – que se descobriam músicos por sua paixão pela música. O próprio Lô, apelido familiar de Salomão, tocava com uma banda cover de Beatles ainda no início dos anos 60, ao lado de outro menino chamado Beto. O grupo The Beavers era uma sensação pop local por ser formado por pré-adolescentes que faziam os intrincados vocais de John, Paul e George com perfeição. Mas os Beavers eram de uma geração anterior à dos amigos de Milton, embora este tivesse desenvolvido uma afeição pelo menino, sempre perguntando por ele quando não o encontrava na casa da família.
Até que um dia o encontrou na porta do prédio em que haviam se conhecido e, como Marcio não havia chegado, Milton convidou Lô para esperar por seu irmão juntos em um bar ali perto. Pediu uma batida de cachaça com limão e um guaraná para o irmão do amigo, mas ficou surpreso quando o menino, então com 17 anos, disse preferir uma caipirinha como a do amigo. Foi quando Milton percebeu que o irmão de Marcio já não era um menino. Que pôs-se a lamentar, dizendo que sentia-se excluído do grupo de amigos do irmão, que tinham os mesmos interesses que ele, mas que o tratavam de forma menor, como se não fizesse parte da turma. Milton o ouviu atentamente e, fascinado, percebeu o quanto havia perdido por não ter conversado antes com Lô. Seguiram falando sobre música até o prédio onde tinham se encontrado, subiram no apartamento dos Borges e começaram a brincar com voz e violão. A delicada jam session que os dois improvisaram de olhos fechados depois seria batizada de “Clube da Esquina Nº2”, no álbum que lançaram coletivamente com os amigos dois anos depois.
Àquela época Milton já era um artista estabelecido. Deixara Belo Horizonte para conquistar o Rio de Janeiro e sempre voltava para a capital mineira para reencontrar os amigos. Até o final dos anos 70, seu nome, Milton Nascimento, já tinha ultrapassado a fase inicial da carreira musical ao gravar discos com o Tamba Trio (logo sua estreia) e Eumir Deodato (no exterior, a convite do mesmo), tendo composto uma de suas obras-primas, “Travessia”, e sendo requisitado por diferentes intérpretes por composições inéditas.
Mas a volta a Belo Horizonte o fazia retomar contato com seu amor inicial, o contato com a música puramente pelo sentimento, longe das amarras do mercado fonográfico, que até então estava a seu favor. Mas sentia-se melhor no grupo de amigos que aos poucos tomava as calçadas da esquina das ruas Divinópolis e Paraisópolis, no bairro de Santa Tereza. O pessoal se reunia na rua e tocava violão até alta noite, apresentando composições próprias e músicas alheias, clássicos daquela geração, Beatles e Chico Buarque, um pé no Brasil e outro no mundo. Foi quando Milton decidiu capturar aquela atmosfera em disco e, quando a gravadora pediu um novo disco, ele decidiu fazê-lo com aquela turma de sua cidade. Especificamente com Lô Borges, que tinha apenas 17 anos e com quem tinha uma afinidade mágica, uma amizade intensa que criaria canções eternas.
Lô tinha dois desafios antes de aceitar o convite: convencer os pais e o exército, pois havia sido convocado para servir as forças armadas às vésperas de passar para a maioridade. Peitou ambos e foi para o Rio. Lá chegando, Milton e Lô se instalaram em uma casa em Niterói, na praia de Piratininga, e Lô, marinheiro de primeira viagem no showbusiness, dezenove anos recém-completos e visto como uma exigência inusitada de um nome em ascensão na música brasileira, pediu para não ir só e convocou o amigo Beto para ajudá-lo na viagem. Na casa de praia, os três compunham de uma forma peculiar: Lô compunha suas músicas em um quarto, Milton no outro e Beto Guedes indo de um cômodo a outro para sugerir harmonias, melodias, solos, instrumentações. As canções surgiam quase naturalmente e então eram entregues aos letristas que pairavam ao redor daquele grupo: Fernando Brant, Márcio Borges, Ronaldo Bastos. Dali iam para os músicos, que rearrajavam as canções entre a música brasileira pós-bossa nova, o jazz, o rock psicodélico, a música caipira, o folk e uma sensação quase barroca, de esmero e cuidado, característica da musicalidade mineira. Além dos músicos da turma de Belo Horizonte que eventualmente iam para Niterói ou que já moravam no Rio – como Wagner Tiso, Nelson ngelo, Toninho Horta, Tavito, Robertinho Silva – até a músicos estabelecidos – como Eumir Deodato, Alaíde Costa e Paulo Moura. Tudo regido por Milton, o veterano da turma, o maestro daquele clube.
O disco Clube da Esquina surgiu a partir do encontro de Milton e Lô e trazia para o país parte da sonoridade pop que tomava conta do mundo: folk rock, rock progressivo, jazz funk e rock psicodélico caminhavam lado a lado de canções bucólicas, devaneios lisérgicos, sonoridades pastoris e ecos latinos. Como o clube que o originara – que de clube não tinha nada, afinal era uma esquina a céu aberto – aquele disco duplo (que, por pouco, não foi o primeiro disco duplo da história da música brasileira, perdendo para o clássico ao vivo de Gal Costa, Fa-Tal, lançado meses antes) era um convite ao encontro, uma obra aberta que chamava o ouvinte para dentro de um mundo imaginário, emotivo e sentimental. Tão amplo quanto sua concepção, um dos primeiros discos brasileiros a creditar todos os músicos envolvidos em sua ficha técnica e em que músicos não ficavam restritos aos instrumentos que lhes foram delimitados. Todo mundo toca um pouco de tudo e até hoje há controvérsias sobre quem toca o quê em que faixa.
Lançado no início de 1972, o grupo impulsionou também a carreira do novo parceiro de Milton. A gravadora sem pestanejar pediu um disco solo para Lô que, da mesma forma, topou. Clube da Esquina havia sido um sucesso e o jovem músico despertava interesses e curiosidade. O único problema: ao gravar suas principais composições até aquela idade em seu primeiro registro fonográfico – o Clube, dividido com Milton – Lô havia esgotado seu repertório. Sem músicas novas, entrou em um processo de composição, arranjo e gravação quase industrial. Acordava, escrevia uma música, passava para o irmão que colocava a letra à tarde e, à noite, encontravam-se no estúdio, tentando colocar a canção de pé. Foi um processo convulsivo de composição, uma jam session em câmera lenta que reuniu quase todos os músicos que participaram do Clube da Esquina para firmar um disco composto por músicas curtíssimas que formavam uma colcha de retalhos psicodélicos sem par na história da música brasileira.
O disco ficou pronto e aquilo era o fim para Lô. Viu um horizonte tenso em que havia que compor músicas na marra para lançar mais um novo disco num futuro próximo e a sensação de que sua carreira musical poderia se tornar apenas aquilo lhe causou preocupação. Quando cogitaram colocar sua foto na capa do disco, que foi batizado apenas com seu nome, ele sugeriu que tirassem uma foto de seu par de tênis gasto. Era um código interno para avisar que estava pendurando as chuteiras e que iria colocar o pé na estrada. Para compor era preciso viver – e Lô desistiu da carreira fonográfica para viajar de carona pelo Brasil. Por cinco anos viveu como hippie, cruzando o país da Bahia ao Rio Grande do Sul, dormindo em comunidades, tocando música – e compondo sem parar. Quando resolveu parar, já tinha experiência e material para compor vários discos, como fez, a partir de seu segundo álbum solo, Via Láctea, lançado em 1979, retomando sua carreira musical profissional.
Mas seu disco de estreia – conhecido pela capa por “disco do tênis” – havia ficado intacto no passado. Depois de lançado no mercado, não teve show, não teve campanha de lançamento, ficou esquecido com o tempo. Até 2017. Ao completar 45 anos, Lô reuniu uma banda de jovens músicos para recriar seu clássico disco no palco pela primeira vez. Como a duração do álbum é curta (pouco mais de meia hora), foram incluídos no repertório músicas que Lô gravou para o primeiro Clube da Esquina, transformando o show – que foi lançado em janeiro em São Paulo e deve percorrer o país durante o ano – em uma celebração àquele mítico 1972.
Outra coluna da Caros Amigos atualizada por aqui – esta da edição do mês de março, sobre o incrível show em homenagem ao mestre Lanny Gordin. Abaixo, os vídeos que fiz desse show:
Reverência ao mágico
Guilherme Held, Tulipa e Gustavo Ruiz reúnem ícones do pop brasileiro para saudar a importância do guitarrista Lanny Gordin
O que une “Chocolate” de Tim Maia a “Kabaluerê” de Antônio Carlos e Jocafi? Os discos Expresso 2222 de Gilberto Gil e o primeiro disco de Jards Macalé? “Atrás do Trio Elétrico” e “Não Identificado”? Além de ícones da música brasileira, todos eles contaram com o toque elétrico de um dos grandes instrumentistas brasileiros, o guitarrista Lanny Gordin. Comumente referido como “o Jimi Hendrix da Tropicália”, Lanny, felizmente, é muito mais do que isso. Mas, infelizmente, como a maioria dos músicos no Brasil, não tem o reconhecimento público de sua importância, o que inevitavelmente se traduz em condições financeiras. E a aposentadoria do músico – quando ela acontece – quase sempre é precária, devido a inúmeros percalços da prática que não se enquadram exatamente nas leis trabalhistas. Se o artista já anda na corda bamba entre o prazer e a remuneração, a arte e o comércio, o músico é quem mais sofre nesta dicotomia, quase sempre a linha de frente desta batalha.
Lanny não é reconhecido como compositor, mas por sua personalidade musical. O timbre elétrico rasgado até poderia ser característico dos grandes guitarristas de sua geração, mas Lanny o temperava com música brasileira, música erudita, free jazz e músicas do leste europeu, o que torna o título que o compara ao grande guitarrista da história do rock limitado. Enquanto Hendrix buscava as profundezas do blues de forma vertiginosa, Lanny ampliava o horizonte de sua paleta, mais próximo de um guitarrista de jazz do que de rock. Mais do que o timbre gritado ou os voos audazes que o músico fazia pelas cordas de seu instrumento, era o fraseado pontual, solos transformados em melodias (e vice-versa), riffs que praticamente abriam um diálogo com o resto da canção. Era uma voz presente que, uma vez percebida, torna-se uma das assinaturas musicais mais importantes daquele período, entre os anos 60 e 70, da música brasileira.
Um de seus discípulos, o guitarrista Guilherme Held, resolveu mexer-se para consertar esta falha da história. Em vez de esperar o reconhecimento póstumo que é caracteristicamente reservado a grandes artistas que morrem no ostracismo, o jovem músico começou a pensar numa homenagem em vida ao músico com quem morou junto em dois endereços diferentes – na Vila Mariana e em Perdizes -, além de ter tido uma banda com o mestre, no início do século.
A homenagem contou com a adesão imediata de outro discípulo ferrenho, o também guitarrista Gustavo Ruiz, irmão da cantora Tulipa Ruiz, e responsável pela presença do próprio Lanny no disco mais recente da irmã, Dancê, de 2015, produzido por Gustavo. É de Lanny o solo de “Expirou”, registro mais recente do guitarrista até agora, que está impossibilitado de tocar devido a problemas de saúde. Gustavo chamou a irmã de bate-pronto e em menos de um mês, os três levantaram o show Lanny Total, a homenagem hiperbólica que o músico merecia.
A vida de Lanny Total começou em um show na antiga choperia do Sesc Pompeia – que agora chama-se de Comedoria – que aconteceu em duas noites. Só a banda base já era de arregalar os olhos: Guilherme e Gustavo cada um com uma guitarra, Fábio Sá no baixo, Sérgio Machado na guitarra, Pepe Cisneros nos teclados, José Aurélio (que foi da banda de Lanny e Held, Projeto Alfa, no início da década passada) e Maurício Badé na percussão, além dos metais que incluíam Thiago França (sax alto e barítono), Amilcar Rodrigues (trompete e flugel), Filipe Nader (sax alto e barítono) e Allan Abbadia (trombone). Além destes subiram no palco Chico César, Mariana Aydar, Negro Leo, Péricles Cavalcanti, Rômulo Fróes, o irmão de Lanny Tony Gordin e Tulipa Ruiz, acompanhados também por Arnaldo Antunes, o hermano Rodrigo Amarante e Edgard Scandurra no primeiro show – o que assisti – e Heraldo do Monte, Juçara Marçal e Kiko Dinucci, no segundo. A discotecagem de abertura ficou por conta do DJ Nuts, um dos maiores especialistas em música brasileira do país, e a apresentação da banda a cargo do apresentador Luiz Thunderbird, além de uma performance do artista Aguillar.
No repertório, uma aula de psicodelia brasileira: “Back in Bahia” de Gilberto Gil, “Eu Vou Me Salvar” de Rita Lee, a versão que Caetano fez de “Eu Quero Essa Mulher Assim Mesmo” de Monsueto em seu Araçá Azul e várias de Gal Costa, de quem Lanny era uma espécie de arma secreta durante sua fase de ouro – “Hotel das Estrelas”, “Não Identificado” e “Love ,Try and Die”, além de composições de Lanny com os novos músicos, como “O Peixinho Triste” com Rômulo Fróes, “Evaporar” com Rodrigo Amarante e a já citada “Expirou” de Tulipa Ruiz.
Mas a descrição do espetáculo não chega próximo da intensidade do sentimento. Mais do que celebrar a personalidade de um músico ímpar, o que acontecia naquele palco era uma conexão intensa com a música em si. Todos os envolvidos canalizados e conectados tanto com a musa – entidade maior que parece magnetizar músicos e espectadores – como entre si. A catarse mútua do rompante dionísico da canção de Monsueto transformava Scandurra, Arnaldo, Rômulo, Péricles e Amarante numa mesma voz. Tulipa e Mariana Aydar canalizavam a energia mais roqueira de Rita Lee e a mesma Tulipa hipnotizava o público num dueto jazzy com Negro Leo. O público se esbaldava extasiado com aquele delírio coletivo. A impressão que dava era que todo mundo ia sair se abraçando.
A última música – “Chocolate”, de Tim Maia – foi cantada por todos os convidados inclusive por um Criolo penetra, que não havia sido escalado oficialmente mas deixou-se levar pela força da música. Todos com seus maiores sorrisos, surfando na onda boa que o mestre guitarrista provocou há décadas. E agora o show pode ir para outros palcos e outras praças, tornando mais gente consciente da importância deste músico mágico.
Mais uma coluna da Caros Amigos, esta publicada em fevereiro deste ano.
Esperança para 2017
Como a produção musical de 2016 consolida um movimento cultural que cresce desde o início do século e pode aproximar as duas metades de um país dividido
2016 foi um ano pesado sob quase todos os aspectos e 2017 não parece que vai dar trégua. Para começar, o novo ano é quando as tragédias que ocorreram no ano passado começam a valer – de Trump ao governo do ex-vice golpista, de Dória a Crivella. As crises política e econômica que assolam o planeta parecem ter se transformado em regra e que não há espaço nem motivação para resistir.
Mas, como canta um dos mortos de 2016, “há uma brecha em tudo e é por ali que entra a luz”. E enquanto via a democracia ruir, o Brasil e o resto do mundo engatar a ré rumo aos anos 80, à Velha República, à Idade Média, também pude ver de perto diferentes facetas de um movimento que está cada vez mais engatilhado e que cresce apesar da crise porque não é pensado apenas como um mercado, apesar desta ser uma de suas motivações.
A criação de um movimento musical autoral brasileiro já não é mais uma vontade – é um fato. Se compararmos então à crise criativa que vivemos na virada do século, quando a internet fechou algumas portas para abrir milhares de outras, a situação atual é o paraíso. A maioria das pessoas que trabalha com música – no palco e nos bastidores – vivem cada vez mais disso, sem ter que se equilibrar entre outros bicos e empregos.
Há uma lenta transição que também mostra a criação de um novo mercado que pode se tornar autossustentável em alguns anos, quando a internet é usada mais para divulgação da obra de um artista e eventos com a presença deles irão pagar suas contas. O mercado também amadurece à medida em que você tem várias máquinas de entretenimento trabalhando de costas para a mídia tradicional e fazendo as gravadoras multinacionais correr atrás do novo sucesso, que depende de cenas e artistas que já formaram seu público.
Por mais que você possa desgostar do sucesso do forró universitário, do novo sertanejo, do funk paulista e do hip hop, é inegável que seu sucesso é fruto de seu próprio trabalho – e não da única máquina que antes alimentava rádios e lojas de discos. Se você nunca ouviu “10%” de Maiara e Maraisa, “Malandramente” do produtor Dennis com Nandinho e Nego Bam ou “Bumbum Granada” dos MCs Zaac e Jerry – três dos maiores hits de 2016 no Brasil – não é sinal que você é desinformado ou que vive numa bolha, mas que o que antes era a principal corrente do mercado não é uma tsunami única como era até o final do século, mas várias ondas diferentes – algumas gigantescas, mas nunca reunidas em uma só, que, inevitavelmente, dominavam o espectro musical coletivo. Lembre da onipresença do axé, do sertanejo e do pagode nos anos 90 (e como você, mesmo sem gostar ou conhecer, sabe de letras inteiras deste período) e compare com o que acontece no mainstream atual. E se você ainda perceber que estes artistas movem-se por conta própria, sem o auxílio de uma máquina de mídia que elegia os ungidos, dá para ver o quanto a música brasileira mudou nestes últimos quinze anos.
E mudou também para aqueles que exploram outras fronteiras da música brasileira. O ano viu a consolidação de um movimento novo na música brasileira deste século, cujo ápice aconteceu no ano passado – a volta do inquietação. Dois discos sintetizam estas duas frentes diferentes de um mesmo movimento em 2016. O Tropix de Céu, melhor disco da carreira da cantora paulistana, aponta transformações políticas e estéticas sob uma camada de despretensão pop. E o impressionante Duas Cidades, do grupo baiano BaianaSystem, bota o dedo na ferida do apartheid brasileiro, fundindo pontos de vistas e gêneros musicais modernos e ancestrais, urbanos e rurais.
Os dois discos fundem-se a um cenário desenhado no ano anterior por discos como Transmutação, Dancê, Fortaleza, De Baile Solto, Selvática, Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa, Frou Frou, Mulher do Fim do Mundo, Rá!, Violar, Manual, Pedaço Duma Asa e Terceira Terra, que este ano ganhou aliados como MM3 do Metá Metá, os discos póstumos de Sabotage e Serena Assumpção, o Brutown dos The Baggios, o Melhor do Que Parece d’O Terno, o Golpe de Vista de Douglas Germano, o Arco e Flecha de Iara Rennó, o Monstro do DeFalla, o Ivete de Wado e o primeiro disco de Mahmundi, além de obras novíssimas de veteranos como João Donato, Letieres Leite, Odair José e Arthur Verocai. Isso sem contar a grande revolução estética transgênero, em que artistas como Liniker e os Caramellows, As Bahia e a Cozinha Mineira, Jaloo e Rico Dalasam desafiam classificações sexuais para expandir o horizonte cultural do país, modernizando-o na marra.
Há, contudo, um enorme abismo entre estes dois Brasis: um verdadeiramente popular, outro verdadeiramente desafiador. Dois levantes populares distintos, que se dividem esteticamente e retratam um país também separado pela política. Mas enquanto o cisma ideológico parece cada vez mais profundo e doloroso, a separação cultural parece mais fácil de se resolver. Artistas das duas vertentes já começam a flertar uns com os outros e nomes como Tiê, Karol Conká, Emicida, Tropkillaz, Kondzilla, Tiago Iorc, Anitta, Marcelo Jeneci e Mano Brown já lançaram os primeiros sinais de aproximação entre metades brasileiras que não se conversavam – e pode ser que estes primeiros flertes comecem a render frutos à medida em que a situação política do país vai por água abaixo. Esta talvez seja a boa notícia deste 2017 que já começa em transe e em crise – e o inimigo comum possa nos restituir a glória de ser uma só nação.