C6Fest 2024, entre o neo soul e o velho indie

, por Alexandre Matias


Fotos: Barbara Monfrinato

Fim de semana intenso graças à segunda edição do C6Fest, que mais uma vez aconteceu no parque do Ibirapuera, consertando um problema da edição anterior, quando não era possível circular entre os diferentes palcos do festival. O problema foi que, devido à reforma que está sendo feita na marquise do palco, o percurso entre os dois palcos que antes era direto agora exigia que você desse uma longa volta para chegar do outro lado do evento. E assim o festival dividiu-se entre prós e contras: uma boa escalação com gente de todo mundo mas poucos artistas brasileiros (que sempre são deixados naqueles horários ingratos); uma boa estrutura mas com pouca assistência ao público (sinalização? Área de informações? Água gratuita?) e aquele ingresso salgado que se por um lado nos faz comemorar a facilidade de chegar perto do palco, por outro nos lembra que o festival em si é uma enorme área VIP. Ainda houve problemas com a capacidade da tenda ser menor que a do palco principal, o que fez muita gente ficar de fora do set dos 2ManyDJs. Mas as apresentações compensaram esses perrengues (mesmo divididas entre palcos preto – puxando pro neo soul – e branco – puxando pro indie velho): a vocalista do Xx Romy derreteu o público com seu house sofisticado, a cantora Raye mostrou que tem a faca e o queijo na mão pra se tornar uma das próximas grandes cantoras (presença de palco, liderança nata, carisma impecável e que voz!), Jaloo e Gaby Amarantos fizeram bonito em show conjunto, Ayra Starr eletriziou o público e Paris Texas se jogou na galera, entre outras boas apresentações. Mas o filé do fim de semana pode ser sintetizado em cinco shows: Soft Cell, 2ManyDJs, Fausto Fawcett, Cat Power e Pavement.

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A vinda do Soft Cell dividiu o público do C6Fest, que se já tinha uma média etária avançada durante todo o evento – é um festival para quem tem mais de 30 anos -, na hora da apresentação da dupla inglesa avançou para além do meio século de idade. Mas Marc Almond e David Ball não são uma dupla de um hit só como pareceu para parte do público que desdenhou de sua presença e sim fundadores de um formato que rende até hoje, em que só é preciso um crooner e um produtor para agitar o público, reduzindo o mote punk para menos ainda que o trio baixo, guitarra e bateria. Contemporâneos do punk, a dupla inaugurou o conceito de synthpop que reverbera até hoje e abriu o caminho no facão para artistas como Pet Shop Boys, Orchestral Manoeuvres in the Dark, Erasure e Eurythmics pavimentassem o caminho hoje trilhado por artistas pop tão diferentes como Carly Rae Jepsen e a própria Romy, que tocou no festival. E mesmo aos 66 anos, Almond mantém o equilíbrio entre a fleuma e o carisma – além da voz! -, fazendo todo mundo dançar mesmo músicas menos conhecidas do público. E é claro que quando eles puxaram seu maior hit, sua versão para o soul desconhecido “Tainted Love”, a casa caiu.

Os 2ManyDJs não deixaram barato. E pra mim é obrigatório, porque é uma aula. Os irmãos belgas David e Stephen Dewaele abriram minha cabeça na virada do século e quando os vi discotecar pela primeira vez, em 2002, confirmaram várias suspeitas que hoje estão na base da minha própria discotecagem: que não é preciso ficar preso em um só gênero musical, que dá pra tocar músicas que o público conhece e que a regra principal é fazer todo mundo dançar. Na versão 2024, eles vieram com outro evangelho, desta vez puxando para cima hits do underground da música eletrônica que, se você é do ramo, conhece na ponta da língua, mas misturaram clássicos do bate-estaca com remix que fizeram para artistas contemporâneos, como Caroline Polachek, Wet Leg e Rosalía, além de misturar citações a hits de todas as épocas, como Crystal Waters, New Order, Beastie Boys e Sepultura, que usaram para saudar o Brasil no começo do set. O som estava perfeito e além do telão em que os dois também remixam imagens – alternando capas de discos e singles com variações cursivas de seu próprio nome -, eles acrescentaram uma iluminação que por vezes cegava o público, por outras instigavam ainda mais o transe dançante. Inacreditável.

No fim do sábado foi a vez de Fausto Fawcett dominar o C6Fest com seu Favelost, espetáculo que desenvolveu ao lado do videomaker Jodele Lacher, do produtor Anvil FX e do casal de músicos Bianca Jhordão e Rodrigo Brandão, do grupo Leela. Não foi a primeira vez que a verborragia habitual do mestre das palavras carioca encontrou com as referências visuais, de dance rock e de música eletrônica propostas pela apresentação, mas ao ganhar uma escala bem fora do comum – com milhares de testemunhas ao contrário das formais parcas centenas -, Favelost ganhou uma força ainda maior, ao ser encenada em um prédio modernista do Niemeyer no parque Ibirapuera. Entre as curvas de concreto branco, Fawcett metralhava seu evangelho apocalíptico, cantando facadas leite moça e o que aconteceu com Kátia Flávia entre riffs de guitarra e pesados beats dançantes – e ainda chamou a vocalista Fernanda D’Umbra e o convidado surpresa BNegão para um assalto aos sentidos. Um bom encerramento para o primeiro dia do evento.

Cat Power era uma das principais atrações do festival. Depois que lançou um disco celebrando a transição de Bob Dylan da fase acústica para a elétrica, sua reputação parece ter subido um degrau pela responsa de representar este momento histórico da música contemporânea com seu protagonista ainda vivo, mas segurou bem e aumentou ainda mais as expectativas para sua aparição no C6Fest. Mas tocar um show feito para teatros e salas de concerto – tanto a versão original quanto sua nova encarnação – num festival não foi uma boa escolha (ou quem sabe ter colocado o show no auditório?) e Chan Marshall parecia sentir o nervosismo, principalmente na primeira parte do show, quando cantou sozinha acompanhada apenas de um violão. A parte acústica do show foi ceifada para além da metade, trazendo apenas duas músicas (“It’s All Over Now Baby Blue” e “Mr. Tambourine Man”, o que fez perder um tanto da magia da noite, mas pareceu um alívio para a intérprete, que só começou a se soltar a partir do momento em que o resto da banda – duas guitarras, teclado, piano, batera e baixo elétrico – subiu no palco. E a cada nova música ela ia relaxando e percebendo que o público estava ali por ela, não num confronto – como era o palco original da batalha de Dylan em 1966 – e quando chegou ao final do show, especificamente ao enfileirar “Ballad of a Thin Man” e “Like a Rolling Stone”, já estava em casa e feliz de estar apresentando-se no Brasil, repetindo “obrigada” compulsivamente, como se não acreditasse na recepção. Mas em se tratando de Cat Power – e seu comportamento instável no palco – foi uma ótima apresentação, embora enxuta – parcos 40 minutos de show. E ela só tocou Dylan, antes que alguém me pergunte.

Como de esperado, o Pavement fez o melhor show desta edição do C6Fest. A banda está azeitada e tocando como nunca tocou em toda carreira, resultado especificamente desta segunda volta que trouxe o grupo de Stephen Malkmus redivivo em 2022 e estica-se até hoje. Além de seu líder ter aceito que a volta não era necessariamente nostálgica, o que lhe incomodou na primeira volta do grupo, em 2010, e sim o retrato de uma fase específica da vida daqueles cinco caras, o grupo ainda veio de três apresentações quentíssimas em capitais da América do Sul, quando tocou pela primeira vez em Santiago e Montevidéu. Ao encontrar um público brasileiro seco por sua apresentação – cantando TODAS as músicas -, a banda se jogou ainda mais e fez uma de suas melhores apresentações. O fato de ter começado homenageando nossa saudosa e querida amiga Fernanda, que nos deixou semana passada, foi mais um dos indícios que seria uma noite histórica e emotiva, que escancarou ao usar justamente a lenta “Grounded”, hino de seu melhor disco, como música de sua abertura até a ousadia de fechar com “Frontwards”, do primeiro EP, fez com que o show fosse exatamente o que todo fã da banda esperava, tirando o fato de, por ser num festival, não ter contado com bis, o que seria uma coroa e tanto para o show e para a noite. Mas mesmo essa falha não tirou o brilho da apresentação e dos nossos olhares. Foi mágico.

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