Brasil 2014: “There will be Copa”
Junho de 2013 e a Copa de 2014
Vi Junho há duas semanas. Seu diretor, João Wainer, tem um senhor mérito no currículo (que não é pequeno) que é o fato de ter tirado o jornalismo em vídeo feito na internet no Brasil da idade da TV universitária. Antes de ter assumido a coordenação da TV Folha, grande parte da produção audiovisual jornalística feita na internet brasileira era um filhote feio do telejornalismo. Mesas redondas sem graça feitas em um estúdio mínimo, que também servia de cenário para bancadas em que jornalistas eram transformados em apresentadores de TV para comentar as notícias. Em contraponto a isso redatores de texto que mutavam-se tímidos em videorrepórteres conversando com a câmera ou narrando cenas que filmavam com câmeras cada vez mais portáteis (“estamos aqui diretamente…” etc). O material era mais texto que imagem, importava mais o que era dito do que o que era mostrado.
O trabalho de Wainer optou por zerar esses conceitos e partir para o cinema documental, área que já vinha trabalhando em anos anteriores. Vindo da fotografia, ele, como bom fotógrafo, prefere ausentar-se das cenas em vez de protagonizá-las, deixando esse papel para o personagem-alvo. Com esse novo tratamento, transformou reportagens insossas em vídeos vivos, que dificilmente iriam para um programa de TV. Seus minidocumentários transformam a notícia ou o entrevistado em fio condutor de si próprio, sem precisar de locução ou mediação – esta é conseguida na mesa de corte, editando trechos e superpondo-os para efeito de narrativa, a partir da direção de registros em movimento, ágeis, sem tripé, quase sempre acompanhando a movimentação do próprio cinegrafista.
Não é um mérito autoral dele – a câmera na mão e a ausência de contexto são ferramentas da própria narrativa do cinema documental e, claro, parte do nosso dia-a-dia de celulares com câmera e redes sociais. Wainer canaliza tendências que são fortes no cinema e nos meios digitais para o jornalismo. Seu trunfo na TV Folha é o mesmo da Mídia Ninja do Bruno Torturra – não é o ineditismo do formato, mas a forma como ele conseguiu fisgar um grande público no Brasil. Fiquei pensando nisso enquanto assistia ao Junho, o primeiro longa metragem que João dirigiu na TV Folha (“se esse der certo vai ficar mais fácil viabilizarmos outros”, ele me disse em entrevista por email), como a própria Mídia Ninja poderia fazer seu longa metragem e dar sua versão dos fatos sobre o que aconteceu naquele mês do ano passado.
“A ideia surgiu ainda durante o mês de junho, quando percebemos que havia algo grande acontecendo ali”, continua João. “Desde o começo da TV Folha eu tinha vontade de fazer um longa, mas ainda não tinha achado o assunto. Quando as manifestações começaram a pegar fogo decidimos que esse era o tema e passamos a trabalhar já pensando no filme.” E Junho é fruto direto daqueles primeiros vídeos que o canal começou a exibir ainda na época. Como filme, no entanto, ele perde um pouco do tom tenso que aqueles vídeos – e muitos outros, de muitas outras pessoas – tiveram naqueles dias. Quem viveu junho de 2013 no Brasil lembra direitinho de quando viu os primeiros depoimentos da fotógrafa da Folha Giuliana Vallone sobre como foi tomar um tiro na cara de um policial no fatídico dia 13 daquele mês.
Aí é jornalismo bruto, inclusive ao ser movido pela emoção – e instigá-la no leitor/espectador/telespectador/”~internauta~”. A série de vídeos que a TV Folha fez dos protestos do ano passado é exemplar ao nos lembrar o pingo de entretenimento contido na causa que é o jornalismo – não basta simplesmente contar, mostrar e denunciar, é preciso manter a atenção de quem acompanha a história.
Já Junho, o filme, parece movido por outras emoções. Seu tom é didático e certamente documental, chamando diferentes narradores (parte do quadro de colunistas do jornal, parte dos movimentos que estavam nas ruas) para tentar entender o que se aconteceu naquele mês. E embora capture o clima de paranóia, caos e euforia daqueles dias, ele tende a pesar para o pessimismo #ImaginaNaCopa em sua parte final. Ao ser lançado no mês em que a Copa do Mundo acontece no Brasil, ele tenta pautar a discussão em um tom mais grave e sombrio do que o resto do filme, que é caótico e intenso.
“A gente sempre soube que seria um tiro no pé tentar contar tudo sobre algo que estava e ainda esta em andamento”, continua o diretor. “Optamos por fechar a narrativa no mês de junho para contar como tudo começou. O filme termina da maneira que o mês terminou, com as glórias e incertezas relacionadas ao que estava acontecendo. O clima de euforia misturado com a desilusão do esvaziamento dos protestos é o que imperava no dia 30 de junho quando o Brasil atropelou a Espanha na Copa das Confederações. Tentamos trazer essa sensação para o trecho final do filme.”
Mas uma coisa é a Copa das Confederações outra coisa é a Copa do Mundo. A atmosfera pesada que parecia acinzentar 2014 aos poucos vem se dissipando com a proximidade da Copa. Cada vez mais a presença de estrangeiros e de seleções internacionais no Brasil vem nos lembrando que somos um país engraçado, curioso, bizarro, inusitado – e que gostamos disso. E mesmo que você odeie a Fifa e seu evento com todas as forças (o que não é nem um pouco incomum, basta ver o que é a Fifa), a Copa do Mundo instiga nossos ímpetos coletivos de festa, de celebração, de confraternização. Como brasileiros, gostamos de estar junto, de rir com os amigos, de conversar em voz alta, de beber, dançar e cantar. E a Copa do Mundo – como o carnaval, os feriadões e a praia – é uma sensação presente em nossas vidas. Mas, por uma série de motivos (e grande parte com razão), a Copa virou justo o contrário disso.
A polarização entre comunas e reaças (“ou você é um ou outro”, nos lembram diariamente) que vem acontecendo desde antes de junho do ano passado, instigada principalmente entre a partir da popularização da internet (e da ascensão do Facebook) no Brasil vem há muito fazendo que nós mesmos voltássemos a pensar o que é ser brasileiro. Há tempos tratamos o oba-oba “samba-carnaval-café-gostosa” com pesada ironia, mas recentemente essa Carmen Miranda sorridente transformou-se na melhor fantasia de um feitor de escravos com sede de sangue. O processo de autocrítica brasileiro – ainda em andamento – entrou em sua fase mais densa e pessimista, tendo que confrontar-se com anos e anos de corrupção e violência, traduzido de forma cada vez mais avergonhada sobre o “jeitinho brasileiro” que antes tanto nos orgulhava.
Junho de 2013 confrontou cidadão e consumidor. De que adianta carro, TV de tela plana e viagem pro exterior sendo que não temos transporte público decente, educação básica ou saúde que funcione? O brasileiro médio viu que há coisas que seu dinheiro direto não pode comprar – mas que vem pagando caro por isso há anos sem nenhum retorno. Essas reclamações se materializaram na Copa do Mundo futura, saudada como o maior elefante branco da história do Brasil. Em poucos meses, aquilo que poderia ser o maior carnaval de todos os tempos virou motivo de ódio e indignação. E a polarização voltou a pesar entre o #VaiTerCopa e o #NãoVaiTerCopa.
O filme de Wainer peca por optar pelo #NãoVaiTerCopa em sua parte final, em vez de manter-se na intensidade sem rumo de sua primeira hora – era assim que nos sentimos naquele mês, perdidos. O pessimismo sobre o evento da Fifa em território nacional parecia esperar por outro levante popular contra tudo e contra todos, na mesma proporção que no mês passado. Nesse sentido, Junho é um filme que fala tanto sobre o mês que pretende discutir quanto o mês de seu lançamento: há uma expectativa forte de que a Copa do Mundo possa aumentar ainda mais um clima de mal estar coletivo de 2014, que ainda vem temperado pelas eleições presidenciais e pelos comentaristas da internet.
Mas não é o que estamos vendo, pelo menos nesses minutos antes da Copa, pouco antes da expressão “imagina na Copa” expirar de vez. A expectativa está mudando e o pesar está ficando mais leve. Os brasileiros estão redescobrindo a felicidade de ser brasileiro, pelo menos durante os jogos, e aos poucos começam a se empolgar com o que virá por aí. E não estou falando em hexacampeonato, mas em nosso futuro como nação.
Afinal, como pergunto pra todo taxista que me puxa papo com o velho “e a Copa, hein?”, imagina se não tivesse Copa. Imagina se a Copa do Mundo fosse em outro país? Estaríamos discutindo nossa falta de educação, falando em repressão policial, em gastos exorbitantes, nos referindo ao Brasil como nação? Estaríamos sim pintando as calçadas de verde-e-amarelo, pendurando bandeirinhas nas ruas e nos retrovisores dos carros, torcendo pra seleção não fazer feio e perguntando como isso influenciaria nas eleições. Mas talvez só isso.
A realização da Copa no Brasil – e uma possível reprise de uma final de Copa do Mundo no Maracanã, desta vez com final em aberto – vem nos ajudar a sair de nossa adolescência pátria. Claro que muita coisa pode acontecer – boa ou ruim – e isso faz parte deste processo. E independentemente de termos outro maracanazo ou não, isso inevitavelmente nos levará para uma nova fase, como a sombra da derrota na final de 1950 pairou sobre toda uma fase anterior. Na nova etapa voltaremos a nos confrontar com nossos fantasmas, nossos defeitos, nossos poréns como todo adulto, mas espero que não esqueçamos nossa graça infantil, nossa alegria de país jovem. A Copa vem nos lembrar disso – que se você fechar a cara pra tudo o mundo perde bastante a graça.
Vai ter Copa.
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