Bom saber #004: A era da filantropia digital
Na minha coluna no site da Galileu essa semana falo sobre como ações coletivas e processamento de dados podem melhorar o planeta.
Amanda Palmer fala sobre “A arte de pedir” no vídeo ao final deste texto
A era da filantropia digital
Ações coletivas e uso inteligente de dados podem mudar o mundo em pouco tempo
Dois assuntos aos poucos se impõem como os grandes temas desta nova década: a ação coletiva e a utilização inteligente dos dados que temos sobre tudo. E os dois, juntos, podem mudar completamente as coisas em pouquíssimo tempo.
O primeiro parece uma reação natural da era eletrônica ao mercado de massas, criado pela era anterior e ainda vigente, a industrial. Este período histórico, iniciado com a revolução industrial há dois séculos e meio, foi um gatilho tecnológico que permitiu uma série de melhorias na vida cotidiana das pessoas, aos poucos tirou-as dos campos e transformou as cidades em palcos mundiais enquanto conectava, pela primeira vez, todo o planeta. Foi a época que inaugurou o conceito de conforto, consagrou os papéis de patrão e empregado e permitiu a explosão populacional que vimos nos últimos cem anos. A partir do surgimento da linguagem eletrônica, que tem pouco mais de 50 anos, estes conceitos começaram a ser desafiados pois a industrialização acaba tratando todos como números. A idade eletrônica, cuja influência só começou a ser sentida de fato em nossas rotina neste novo século, inverte essa lógica e possibilidade as potencialidades do indivíduo – inclusive como parte de um coletivo. É o que norteia a tal ação coletiva que faz iniciativas como crowdfunding, crowdsourcing e as redes sociais digitais serem tão populares atualmente.
O outro grande tema encontrou um rótulo no início do século quando foi decidido que o volume de dados disponíveis atualmente podem ser tratados pelo nome de Big Data – que, em muitos casos, reúne um número impossível de ser processado em aparelhos ou programas de porte médio, exigindo computadores mais poderosos. Big Data, na verdade, é fruto do excesso de informações gerado por qualquer ato ou movimento, seja pessoal ou de massa. Há desde gente colecionando dados médicos sobre si mesmos para antecipar problemas futuros com mais agilidade há empresas públicas inteiras tendo que abrir seus balancetes para justificar gastos e investimentos, além da obsessão humana em quantificar e mensurar diferentes tipos de atividade. Assim, há um volume de informações disponível que nunca vimos em toda a história – tema recorrente na coluna do redator chefe de GALILEU, Tiago Mali. A questão agora é o que fazer com esses dados. Mas no cenário atual, temos uma abundância de informação que pode nos ajudar a calcular melhor o que podemos – e queremos – fazer.
Há vários pontos em comum entre estes dois conceitos, mas queria chamar atenção de um deles: o fato de que, para funcionar, eles partem do pressuposto que as pessoas abram mão de algo para conseguir o que querem. No caso do crowdfunding, se abre mão de dinheiro, claro, mas no caso do crowdsourcing, das redes sociais e da disponibilização de dados, o que é oferecido não é mensurável. Estou falando de conhecimento, de disposição para ajudar e para trabalhar, de técnica e expertise, além dos próprios dados. Não quero fechar os olhos para áreas delicadas que são afetadas diretamente por essas mudanças, como a noção moderna de privacidade ou a transparência econômica e política. Mas o fato é que estas duas tendências desta segunda década do século 21 – ação coletiva e Big Data – serão ainda mais eficazes se as pessoas se dispuserem a participar.
Caso isso aconteça, podemos estar no início de uma era em que as pessoas possam começar a ajudar umas às outras sem ficar pensando em recompensas financeiras. E não estou falando em caridade (embora esta também seja importante), e sim de uma certa filantropia digital. E para começar a conseguir que isso ocorra também é importante saber o que é que precisa ser feito – e saber que isso pode começar com cada um de nós. Basta saber o que – e como – pedir.
Por isso encerro a coluna de hoje com o TED que a cantora Amanda Palmer apresentou este ano sobre “A arte de pedir”, abaixo:
Para quem não entende textos em inglês, segue abaixo a transcrição da participação de Amanda no TED em português, feita no próprio site do evento, abaixo:
Tags: amanda palmer, banco de dados, bom saber, crowdfunding, crowdsourcing, dados, galileu[Inspiração, expiração]
Nem sempre ganhei a vida com a música. Durante uns 5 anos depois de acabar o curso numa universidade excecional de artes liberais, este era o meu trabalho. Eu era uma mulher-estátua profissionalmente independente, chamada “Noiva de Dois Metros e Meio”, e adoro dizer às pessoas que tive este emprego, porque toda a gente quer sempre saber quem é esta gente esquisita na vida real. Olá. Um dia pintei-me de branco, subi a uma caixa, pus um chapéu ou uma lata aos meus pés e quando alguém passava e deixava dinheiro, eu oferecia-lhe uma flor e um intenso contacto visual. E se não aceitassem a flor, eu fazia um gesto de tristeza e saudade enquanto a pessoa se afastava.
[Risos]
Foi assim que tive contactos muito profundos com pessoas, especialmente, pessoas solitárias que pareciam já não falar com ninguém há semanas, e nós tínhamos aquele momento tão bonito de contacto visual prolongado, permitido numa rua citadina, e de certa forma apaixonávamo-nos um pouco. E os meus olhos diziam: “Obrigada. Eu vejo-te.” E os olhos deles diziam: “Nunca ninguém me vê. Obrigado.”
E às vezes era assediada. As pessoas gritavam-me quando passavam de carro: “Vai mas é trabalhar!” E eu pensava: “Este é o meu trabalho.” Mas aquilo doía, porque me fazia temer que estivesse a fazer alguma coisa que não fosse um trabalho, que fosse injusto e vergonhoso. Não fazia ideia de quão perfeita era a verdadeira educação que estava a receber para o negócio da música em cima desta caixa. Os economistas por aí devem ter interesse em saber que consegui uma fonte de rendimento bastante previsível, o que foi surpreendente para mim, dado que não tinha clientes regulares, mas mais ou menos 60 dólares numa terça, 90 dólares numa sexta. Era consistente.
Enquanto isso, dava concertos locais e tocava em clubes noturnos com a minha banda, os Dresden Dolls. Esta sou eu ao piano. Um baterista genial; eu escrevia as canções. E a certa altura começámos a ganhar dinheiro suficiente, o que me permitiu deixar de ser mulher-estátua, e quando começámos a fazer digressões, eu não queria mesmo perder esta sensação de ligação direta com as pessoas, porque eu adorava isso. Por isso, depois de todos os nossos espetáculos, assinávamos autógrafos e abraçávamos os fãs e ficávamos por ali a falar com as pessoas, e fizemos uma arte do modo de pedir às pessoas para nos ajudarem e juntarem-se a nós. E eu ia à procura de músicos e artistas locais, que ficavam à porta dos nossos espetáculos e passavam o chapéu e depois entravam e juntavam-se a nós no palco, de modo que ficávamos com esta amálgama circense de artistas convidados esquisitos e aleatórios.
E depois apareceu o Twitter, que tornou as coisas ainda mais mágicas, porque eu podia pedir, instantaneamente, qualquer coisa, em qualquer sítio. Se precisava de um piano para ensaiar, uma hora depois estava na casa de um fã. Isto é em Londres. As pessoas traziam-nos comida caseira aos bastidores, em todo o mundo, alimentavam-nos e comiam connosco. Isto é em Seattle. Fãs que trabalhavam em museus e lojas ou em qualquer espaço público, recebiam com entusiasmo um concerto grátis, decidido espontaneamente à última da hora. Isto é numa biblioteca em Auckland. No sábado, tweetei a pedir este caixote e este chapéu, porque não os queria carregar desde a Costa Leste [dos EUA], e lá apareceu este tipo com as coisas, o Chris, de Newport Beach, que manda cumprimentos. Uma vez tweetei: “Onde posso comprar um bidé nasal em Melbourne?” E uma enfermeira trouxe-me um do hospital, precisamente naquele momento, ao café onde eu estava, e eu paguei-lhe um batido e ficámos ali a falar sobre enfermagem e morte.
E eu adoro este tipo de proximidade casual, o que é uma sorte, porque faço muito couchsurfing. Às vezes, em mansões, onde toda a gente tem direito a um quarto próprio, mas não há internet sem fios; outras vezes, em comunas punks, a dormir no chão do mesmo quarto, sem casa de banho mas com internet sem fios, o que é obviamente melhor.
[Risos]
Uma vez, chegámos com a nossa carrinha a um bairro muito pobre de Miami e descobrimos que a nossa anfitriã do couchsurfing nessa noite era uma rapariga de 18 anos que ainda vivia com os pais, e todos na família eram emigrantes ilegais das Honduras. E naquela noite, toda a família dormiu nos sofás, e ela com a mãe, para nos darem as suas camas. E ali estava eu deitada, a pensar: “Estas pessoas têm tão pouco. “Isto será justo?” E de manhã a mãe ensinou-nos a fazer tortillas e quis oferecer-me uma Biblía e puxou-me para um canto e disse-me no seu fraco inglês: “A sua música ajudou tanto a minha filha. “Obrigada por passarem aqui a noite. Estamos todos tão gratos.” E eu pensei: “Isto é justo”. Isto é… isto.
Uns meses depois, estava em Manhattan, tweetei a pedir um sítio onde ficar, e à meia-noite, enquanto tocava a uma campainha no Lower East Side, apercebi-me de que nunca tinha feito aquilo sozinha. Estava sempre com a minha banda ou com os meus amigos. É isto que as pessoas estúpidas fazem? [Risos] É assim que as pessoas estúpidas morrem? E antes de poder mudar de ideias, a porta abriu-se de repente. Ela é uma artista. Ele é um bloguer da Reuters, na área financeira. Servem-me um copo de vinho tinto oferecem-me um banho, e eu já tive milhares de noites como esta e como a outra.
Faço muitas vezes couchsurfing. E também faço muitas vezes crowdsurfing. Defendo que o couchsurfing e o crowdsurfing são basicamente a mesma coisa. Quando caímos para cima do público estamos a confiar uns nos outros. Uma vez perguntei a uma banda de abertura de um concerto meu se queriam ir ter com o público e passar o chapéu para conseguirem algum dinheiro extra, coisa que fiz muitas vezes. E como sempre, a banda ficou empolgada, mas houve um tipo na banda que me disse que simplesmente não o conseguia fazer. Que sentia que estava a pedir esmola, ao ficar ali com o chapéu. E eu reconheci aquele medo do “Isto será justo?” e “Vai mas é trabalhar!”
E, enquanto isso, a minha banda ia-se tornando cada vez mais conhecida. Assinámos contrato com uma grande editora. A nossa música é um cruzamento de punk com cabaret. Não é para toda a gente. Bom, talvez seja para si. Assinámos e criou-se todo um entusiasmo à volta do nosso álbum seguinte. E quando este foi lançado, vendeu 25 mil cópias nas primeiras semanas. E a editora considerou isso um fracasso.
E eu perguntei: “25 mil, isso não é muito?”
E eles: “Não, as vendas estão a descer. É um fracasso.” E afastaram-se.
Nessa mesma altura, estava a dar autógrafos e abraços depois de um concerto e um tipo vem ter comigo estende-me uma nota de 10 dólares e diz: “Peço desculpa, eu copiei o vosso CD de um amigo.” [Risos] “Mas eu leio o teu blogue, sei que odeias a tua editora. “E só quero que fiques com este dinheiro.”
E isto começou a acontecer muitas vezes. Passei eu a ser o chapéu depois dos concertos, mas tenho de estar ali, fisicamente, e aceitar a ajuda das pessoas. E ao contrário daquele tipo na tal banda, eu tinha muita prática em estar ali de pé. Obrigada.
E é neste momento que decido que vou simplesmente oferecer a minha música na internet, sempre que possível. Por isso, aqui estão os Metallica, o Napster — maus! E aqui estou eu, Amanda Palmer. Vou incentivar os torrents, os downloads, as partilhas, mas vou também pedir ajuda, porque vi que funciona na rua. De modo que batalhei para sair da minha editora. E no meu projeto seguinte, com a minha nova banda, “The Grand Theft Orchestra”, virei-me para o crowdfunding [financiamento colaborativo]. E caí naqueles milhares de ligações que tinha feito e pedi ao meu público para me apanhar. O objetivo era atingir os 100 mil dólares, e os meus fãs apoiaram-me com quase 1,2 milhões, o que se tornou no maior projeto musical de crowdfunding até hoje.
[Aplausos]
E podem ver quantas pessoas são. São cerca de 25 mil pessoas.
E os media perguntaram: “Amanda, “o negócio da música está a afundar-se e tu incentivas a pirataria. “Como é que impeliste aquela gente toda a pagar pela música?” E a verdadeira resposta é… Eu não os impeli. Pedi-lhes. E através do simples ato de pedir às pessoas, tinha conseguido uma ligação com elas. E quando conseguimos uma ligação com as pessoas, elas querem ajudar-nos. É um pouco contraintuitivo para muitos artistas. Eles não querem pedir coisas. Não é fácil. Não é fácil pedir. E muitos artistas têm problemas com isso. Pedir torna-nos vulneráveis.
E eu fui muito criticada na internet, quando o meu projeto no Kickstarter se tornou famoso, por continuar com as minhas práticas malucas de crowdsourcing [criação colaborativa], especificamente, por perguntar a músicos nossos fãs, se queriam juntar-se a nós em palco e tocar algumas músicas, em troca de afeto e bilhetes e cerveja. Esta é uma foto minha, manipulada, que foi publicada num website. E isto magoou-me de uma forma que já me era familiar. E dizerem-me: “Já não podes “pedir esse tipo de ajuda”, fez-me lembrar das pessoas que passavam de carro e gritavam: “Vai mas é trabalhar!” Porque essas pessoas não estavam connosco no passeio e não conseguiam ver a troca que acontecia entre mim e o meu público, uma troca que era muito justa para nós, mas estranha para eles.
Esta parte não é muito segura em termos de trabalho. É a minha festa de apoiantes do Kickstarter em Berlim. No fim da noite, despi-me e deixei toda a gente desenhar no meu corpo. Deixem-me que vos diga que, se querem experienciar o sentimento visceral de confiar em estranhos, recomendo-vos isto, principalmente, se esses estranhos forem alemães bêbados. Esta foi uma ligação aos fãs ao nível de um mestre ninja, porque na realidade o que eu estava ali a dizer era: “Isto é quanto eu confio em vocês. “Será que devo? Mostrem-me.”
Durante a maior parte da história da humanidade, os músicos e artistas formavam parte da comunidade como elementos de ligação e abertura; não eram estrelas intocáveis. A celebridade consiste em ter muita gente a amar-nos à distância, mas a internet e os conteúdos que nela podemos partilhar livremente estão a levar-nos de volta ao passado. Permite que algumas pessoas nos amem de perto, e que essas pessoas sejam suficientes. Muitas pessoas ficam confusas com a ideia de não haver um preço fixo. As pessoas veem isso como um risco imprevisível, mas tudo o que tenho feito, o Kickstarter, a rua, aquela campainha… Eu não vejo estas coisas como um risco. Vejo-as como confiança. As ferramentas online para fazer com que a troca seja tão fácil e intuitiva como na rua, estão a chegar lá. Mas mesmo as ferramentas mais perfeitas não nos vão ajudar se não nos conseguirmos encarar uns aos outros, dando e recebendo sem medo, mas, mais importante ainda, pedindo sem ter vergonha.
A minha carreira musical foi passada a tentar encontrar pessoas na internet, da mesma forma que o fazia em cima daquela caixa, a escrever blogues e tweets não apenas sobre as datas dos meus concertos e sobre o meu novo video, mas também sobre o nosso trabalho e a nossa arte, os nossos medos e as nossas ressacas, os nossos erros. E nós vemo-nos uns aos outros. E penso que quando realmente nos vemos uns aos outros, nós queremos ajudar-nos uns aos outros.
Penso que as pessoas têm estado obcecadas com a pergunta errada, que é: “Como é que obrigamos as pessoas a pagar pela música?” E se começássemos a perguntar “Como é que deixamos as pessoas pagar pela música?”
Obrigada.
[Aplausos]