Beastie Boys – Paul’s Boutique

, por Alexandre Matias

Falando disso, desenterrei esse texto aí embaixo, que escrevi quando o disco fez dez anos.

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O mundo esperava por aquele disco. Depois de tomar o mundo de assalto com canções grudentas e atitudes inesperadas, aqueles moleques pararam de excursionar e se enfurnaram no estúdio. Era o momento da verdade: pra muitos, eles não passavam de uma armação, de um golpe de marketing; pra outros, haviam esgotado sua criatividade. Até que no mês de julho do verão do amor eles desvendaram o disco que dividiria o mundo em duas partes – antes e depois de…

Não, não estamos falando de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, apesar do parágrafo acima se encaixar perfeitamente na situação dos Beatles antes do lançamento de seu disco mais emblemático. Os moleques desta história não são quatro e sim três: Michael Diamond, Adam Horovitz e Adam Yauch, três nova-iorquinos conhecidos pelo mundo como Mike D, Ad-Rock e MCA. Os Beastie Boys têm mais em comum com os Beatles do a vizinhança na ordem alfabética.

Como os Beatles, os Beasties eram brancos invadindo um terreno negro e se apropriando deles sem impor sua brancura. Não foram apenas os primeiros rappers brancos: foram os primeiros a serem reconhecidos e festejados pela comunidade negra. Apesar de começarem como uma banda de hardcore, abraçaram o rap de brincadeira – em Cookie Puss – e descobriram, quase por acaso, o vasto campo inexplorado que era o gênero que, na época, não tinha nem dez anos de existência.

Como os Beatles, assustaram o mundo com seu comportamento iconoclasta e humor peculiar. Mas enquanto os quatro de Liverpool vinham com cabelos compridos demais para época, desconcertando jornalistas com respostas nonsense, o trio de Nova York agrediam os brancos ortodoxos ao entrarem no gênero do submundo como opção artística, chocando jornalistas com respostas malcriadas, cheias de palavrões e sexismo. Enquanto os Beatles deixavam pais de cabelos em pé ao pedirem para suas filhas segurarem suas mãos, os Beasties pediam para outras filhas segurarem outra coisa.

Misturando rap com heavy metal, eles transformaram o rap em algo realmente grande. Apesar do Run DMC ter investido na mesma fórmula em 85 e 86 (com o disco King of Rock e depois com “Walk This Way”, ao lado do Aerosmith), o som dos Beastie Boys era inteiramente calcado na fusão acima e ganhou público graças a dois pontos básicos: eram brancos e eram do contra. Logo, o que para eles era apenas o diário de suas adolescências se tornara o guia das festas colegiais pelo planeta. Seu hino era sua razão de existir: Você tem que lutar pelo direito de se divertir (“You Gotta Fight for your Right to Party”).

Licensed to Ill, lançado em novembro de 1986, foi um dos discos de estréia mais vendidos de todos os tempos e continua sendo, convertendo novas gerações ao niilismo boca-suja do início da carreira do trio. Com o sucesso do disco, produzido por um dos donos da gravadora Def Jam, Rick Rubin (que muitos achavam ser a mente por trás do sucesso do grupo), o trio entrou numa imensa turnê, que só terminaria dois anos depois. No meio do caminho, um palco decorado com um pênis gigante inflável e garotas enjauladas, vários hotéis destruídos, processos e protestos, uma briga feia com os tablóides ingleses, palavrões, festas e orgias, cerveja, drogas, provocação, barulho e muita confusão. Era o espírito de excesso do rock numa banda de rap.

Mas chegou uma hora em que toda farra cansou. O contrato com a gravadora deles não os interessava e a Capitol pagou a multa para tê-los em seu elenco. Perseguidos pela mídia – atrás de declarações bombásticas -, pela direito – atrás de seus pescoços – e pelo público – atrás de mais ultraje e festa -, pediram água e tempo pra descansar. Saíram de Nova York e foram pra Los Angeles, só pra curtir. Sem compromissos ou cobranças, aproveitaram o sol californiano para renovar as baterias. Enquanto relaxavam, pensavam como poderiam voltar a fazer barulho sem as encrencas que haviam se metido. Até que Matt Dike, produtor do rapper angeleno Tone Loc, lhes entregou a chave – dentro de uma fita.

Na fita, dois DJs locais, John King e Mike Simpson, desfilavam canções compostas apenas de pedaços de músicas alheias. Como os Beastie Boys, John e Mike – os Dust Brothers – eram branquelos com dois pés no suíngue negro e tinham uma reputação que ascendia à medida que tocavam em festas de faculdade. E com apenas duas músicas, que mais tarde se tornariam “Hey Ladies” e “Car Thief”, eles acederam a lâmpada sobre a cabeça dos três MCs. Qual foi a surpresa ao ver seus três ídolos entrando em seu estúdio: “Gostamos disso, podemos cantar por cima?”, perguntaram aos dois. King e Simpson se olharam, reconheceram o sorriso preso no olhar um do outro e viraram ao mesmo tempo para os três com um “claro!” dentro de uma risada. Eram fãs dos Beastie Boys e trabalhar com eles era como trabalhar com, bem, os Beatles.

Ali começava Paul’s Boutique. Ao perceberem a afinidade com os Dust Brothers, o disco ia saindo quase naturalmente: os Beasties cantavam e sugeriam paisagens sonoras aos DJs que sugeriam imagens aos Beasties. Um processo de colaboração mútua nos estúdios mais caros de Los Angeles, supervisionado pelo futuro George Martin do trio, o brasileiro Mario Caldato Jr., entre partidas de pingue-pongue, fliperama e sinuca – tudo por conta da gravadora. Ao mesmo tempo em que tentavam se livrar da imagem de sexistas retrógrados que haviam passado erroneamente pra todo seu público, levantavam os pilares de seu império cool que regeria parte dos anos 90.

De todos os discos que se pretenderam a alcançar o título de “novo Sgt. Pepper’s”, Paul’s Boutique é quem chega mais perto do disco clássico dos Beatles. As referências cuspidas pelos Beasties e pelos Dust Brothers são um leque de contracultura tão amplo quanto o do disco de 1967, só que com mais minúcia e informação, como pediam os novos tempos. E o fato de ambos haverem sido lançados nos verões do amor de suas gerações – os Beatles lançaram na nascente do movimento hippie, os Beasties na aurora das raves – não é uma mera coincidência.

Ambos discos são festas memoráveis, cheias de gente conhecida. Como os Beatles na capa de Pepper, os Beastie cantavam e sampleavam celebridades de diversas fontes diferentes, criando um novo cânone a ser seguido. Mas ao contrário de Pepper, Paul’s Boutique não começa com uma festa, nem com a banda fingindo ser uma outra banda (no caso dos Beatles, a Banda do Clube dos Corações Solitários do Sargento Pimenta). Começa manso, com apenas o teclado de “Loran Dance”, do funkeiro Idris Muhammad, sob uma homenagem a todas as garotas do mundo – do Brooklin, da França, orientais, brasileiras, suíças, italianas, jamaicanas, dançarinas de topless e aeromoças voando por todo o planeta. Cool e suave, “All the Girls”, precede a típica apresentação rapper que é “Shake Your Rump”. Todo o hard rock foi limado do primeiro plano e o que ouvimos é o velho funk sendo retrabalhado com as músicas do comecinho do rap, enquanto o grupo marca sua volta em grande estilo, disparando referências das mais diferentes: Afrika Bambaataa, passos de discoteca, a família Dó-Re-Mi, bairros de Nova York, Bob Marley, talk shows, Funky 4 + 1, Led Zeppelin, Sugarhill Gang e Fred Flintstone. “Eu sou Mike D e voltei dos mortos”, canta o MC desmistificando um boato que explicaria a demora para o segundo disco ser lançado, “fiz outro disco porque queriam mais disso”. Ad-Rock emenda explicando a vida conturbada do sucesso, “correndo da lei, da imprensa e dos pais”.

O vento que abre “One of These Days” do Pink Floyd, a percussão de “Momma Miss America” (tocada por Paul McCartney) e a guitarra de David Bromberg (em “Sharon”) constróem a base para “Johnny Ryall”, a história de um mendigo que acha que foi um astro do rockabilly, que “bebe onde está deitado, coberto de moscas” e que “diz que escreveu Blue Suede Shoes”. Citando “Helter Skelter”, dos Beatles; “Night Train”, de James Brown; e “Maggie’s Farm”, de Bob Dylan, “Johnny Ryall” desacelera o ritmo das canções e mostra que os Beastie Boys estão em outra fase.

O primeiro grande momento do disco, “Eggman”, nasce da introdução de “Superfly”, de Curtis Mayfield, e, usando uma série de referências a ovos (“quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?”, “Humpty Dumpty era um grande ovo/ Estava brincando no muro e quebrou sua perna”, “O ovo, símbolo da vida”, “Quando eu falo em dúzia você sabe do que eu estou falando”) contam a história de um de seus passatempos favoritos durante as gravações: jogar ovos nas pessoas. A base, um funk pesado e firme construído sobre músicas dos outros, pode ser entendido como um dos primeiros big beats a serem gravados, influência declarada dos Chemical Brothers e de Fatboy Slim. Ao final, um achado: casando os temas do filme Tubarão e Psicose, os Dust Brothers criam um desfecho memorável para a faixa.

“High-Plains Drifter” tirou seu título de um velho Western com Clint Eastwood e sua letra a la Easy Rider (que conta a história de um sujeito atravessando os Estados Unidos de carro, sendo preso e solto logo depois) contrasta com o clima lento e soturno da base, que mistura “These Shoes”, dos Eagles, com “Put Your Love (In My Tender Care)”, da Fatback Band. O rap lento tem o clima oposto ao rap hippie do De La Soul e não é difícil descobrir que os pais do trip hop – Massive Attack e Portishead, principalmente – beberam desta fonte.

“Sounds of Science” pela primeira vez na história, trata o rap como uma ciência. “Aí vamos nós derramando ciência por todo lado (…)/ Expandindo os horizontes e os parâmetros/ Expandindo as rimas de MCs amadores idiotas”. Citando Galileu, Benjamin Franklin, Isaac Newton, Einstein, eles cantam sobre “um grau de MC que não se aprende na faculdade”. A primeira parte, quase uma canção infantil, é apimentada com os blips de “Walk from Regio’s”, da trilha sonora de Shaft, de Isaac Hayes. A segunda, rouba a bateria de Ringo Starr da faixa-título de Pepper e a base de “The End”, dos Beatles, para acelerar o andamento: “Tenho ciência pra qualquer ocasião/ Postulando teoremas e formulando equações”.

“3-Minute Rule”, outro pré-trip hop, não tem uma história, foi improvisada no estúdio, deixando os três à vontade para falar sobre o que quiserem sobre a base de “Take the Money and Run”, da Steve Miller Band. Mike D começa gabando-se sobre sua desenvoltura com mulheres – “nunca durmo só porque o Jimmy é como um imã” – e de sua precisão – “A gramática não é perfeita, mas o timing sempre é”. MCA – na época obcecado por armas – não perde tempo: “estou com o cano no seu pescoço/ O que você vai fazer?” e começa a falar sobre suas viagens de moto e afins: “Fumo maconha (que eles chamam de “cheeba”) sim, ajuda meu cérebro/ Posso ser meio maluco mas não sou insano”. E explica-se pros pais – “Muitos pais pensam em mim como um vilão/ Estou só curtindo, como Bob Dylan”. Ad-Rock une os dois falando de motos, garotas e de comportamento errático: “Se sua vida precisa de correção não siga o meu rumo”. Interessante o tipo de abordagem que eles dão às mulheres: não são mais apenas objetos, são pessoas pra quem eles pedem desculpas e desdenham. Os garotos estão crescendo e a maturidade que se tornaria sua marca registrada no futuro dá as caras.

“Hey Ladies”, mais um big beat, mistura funks dos Commodores, Cameo, Kool & the Gang e P-Funk All-Stars numa celebração dos anos 70, e, apesar do tema principal ser mulheres, prefere falar das artimanhas da conquista do ponto de vista deles, num outro grande momento do disco. Em seguida a vinheta hillbilly “5-Piece Meal” (o banjo e a rabeca de “Shuckin’ the Corn”, de Eric Weissberg, acompanhados de gritos de caubóis e índios) antecede a pesadaça “Looking Down the Barrel of a Gun”, um rap construído sobre uma guitarra truculenta que pode ser considerado pai do chamado new metal – de Deftones a Korn -, tanto que quase foi regravado pelo Sepultura em Roots. É a faixa mais violenta do disco, citando Laranja Mecânica, Rambo, Duro de Matar, o serial killer Son of Sam e calibres 22.

A dobradinha “Car Thief”/”What Comes Around” se aproxima do final do disco em outro ancestral do Massive Attack. “Car Thief” enfileira as drogas usadas pelo trio: biscoitos de haxixe, cigarros com cocaína, ecstasy e maconha (“eu não compro, eu planto”) sobre uma base que mescla “Rien Ne Va Plus”, da Funk Factory, e “I Bet You”, do Funkadelic. A virada da batera de “Moby Dick”, do Led Zeppelin, encaixa “Car Thief” em “What Comes Around”. Num clima “aqui se faz, aqui se paga”, eles falam de garotas, skinheads, “colher o que plantar” e respeito, afinal “o teto de um homem é o chão do outro”.

“Shadrach” é a última faixa propriamente dita. Alicerçada em “Booty Loose”, do Sly & Family Stone, ela volta a celebrar os próprios autores, ao citar os personagens bíblicos Shadrach, Mesach e Abednego, que foram salvos do fogo pela própria fé – “Três MCs e estamos indo”. Parente direta de “Shake Your Rump”, “Shadrach” encerraria Paul’s Boutique em grande estilo, se eles não insistissem em colocar todos os melhores momentos.

Daí surge “B-boy Bouillabaisse”, logo depois de “Ask for Janice” (uma espécie de comercial de rádio para a Paul’s Boutique, uma loja que não existe), que reúne, como o lado B de Abbey Road dos Beatles, várias canções curtas – raps crus em sua maioria – numa grande caldeirada, como insinua o nome. Ela começa com a sacana, “59 Chrystie St.”, passa pela caseira “Get on the Mic” (com bateria vocal e samples do pré-rapper Lovebug Starsk), entra no funk lento de “Stop that Train”, chega ao auge no excelente tour-de-force de MCA (gravado no microfone de um capacete de piloto de guerra) em “A Year and a Day”, reduz à velocidade na pré-gangsta “Hello Brooklyn”, recupera o fôlego em “Dropping Names” e segue intacta na cavalar “Lay it On Me” e na direta “Mike on the Mic”, encerrando suas atividades na despedida que é “A.W.O.L.”, que termina sem firulas dando boa noite a Amsterdam. Não precisa ser nenhum expert pra entender porquê. No finzinho, o teclado de “All the Girls” volta pra encerrar como o disco começa.

Um épico rapper, ele mostra que o grupo estava cheio de idéias e não queria desperdiçar nenhuma delas – e falam disso o disco todo: “Minha mente está borbulhando como um poço de petróleo”, “tenho mais histórias que J.D. Salinger”, “as palavras fluem como se estivesse no Grand Canyon”, “tenho mais ações que (a companhia de advocacia) Jacob & Meyers”, “tenho mais rimas que as mangas na Jamaica”. Paul’s Boutique é repleto de informações diferentes e, mais importante, amadurece a banda à força. Talvez por isso o público não entendeu e o disco não vendeu o tanto quanto se esperava. O que foi ótimo: sem a cobrança da gravadora, eles montaram seus próprios estúdio, gravadora, revista e grife de roupas, juntando nomes tão diferentes quanto Atari Teenage Riot, Sean Lennon, Luscious Jackson e DJ Hurricane embaixo de seu teto, criando seu próprio pequeno império. E se formos prestar atenção (trip hop, big beat, ecstasy, revival dos anos 70, samples em profusão, citações fora de contexto, ecletismo, gêneros diferentes colidindo e dando origem a outros novos, o rap como cimento musical e muito mais coisas – basta caçar), vemos que o clichê “à frente de seu tempo” se encaixa como uma luva no disco. Paul’s Boutique pode não ter sido reconhecido há dez anos, quando foi lançado, mas hoje é claramente um marco. O Sgt. Pepper’s do século 21.

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