Na mesma edição da revista Brasileiros em que falei da nova edição do Neuromancer e do Círculo de Dave Eggers, também escrevi sobre o ótimo novo livro do biógrafo de Steve Jobs Walter Isaacson, que em seu Inovadores voltou no tempo para contar as várias biografias que permitiram o ambiente digital que habitamos hoje.
De volta ao futuro
Livro do biógrafo de Steve Jobs conta a incrível história dos pioneiros da revolução digital
Se o futuro das novas tecnologias parece estar em aberto e difícil de decifrar, o passado da era digital está cada vez mais dissecado. A popularização e a onipresença do computador e da internet deram origem a todo um novo mercado editorial que, finalmente, oxigenou as prateleiras dedicadas à tecnologia nas livrarias do Brasil, antes cheias de livros técnicos ou datados demais.
Nesse novo cenário, surgiram as inevitáveis biografias no estilo autoajuda, contando a história de executivos bem-sucedidos e vários livros ensinando onde estaria o pote de ouro do fim do arco-íris digital. Em 2011, com a morte de Steve Jobs e o imediato lançamento de sua biografia oficial, essa dinâmica editorial começou a mudar mais uma vez.
Escrita por Walter Isaacson, a partir de uma série de longas entrevistas, a biografia do cofundador da Apple apareceu meses após o lançamento do filme A Rede Social, de David Fincher, que conta a história da ascensão do Facebook. As duas obras abriram filões em seus respectivos mercados para outras obras sobre essas empresas inovadoras e seus criadores.
Assim, foram surgindo, em rápida sequência, biografias sobre os fundadores do Google, livros dedicados à era de ouro do computador pessoal nos anos 1980 e às fases áureas do videogame, estudos das transformações nas comunicações e relações pessoais e sobre os novos nerds que tomam conta desse universo.
Mas o grande livro da nova fase talvez seja do próprio Isaacson, Os Inovadores (Companhia das Letras). Ao elencar um grupo de personalidades que, por séculos, criaram dispositivos, lógicas de funcionamento, aparelhos e materiais que permitiram que conseguíssemos chegar a este século digital, o autor conclui que o ambiente forjado pela equação computador e internet é uma criação coletiva.
A história começa no meio do século 19, com dois ingleses (Charles Babbage cogitando uma máquina de fazer contas, que concluiria a revolução industrial, e Ada Lovelace desenvolvendo uma linguagem com a qual poderíamos controlar essa máquina), passa por matemáticos como Claude Shannon (que cria o conceito de bit) e Alan Turing (que decifra a criptologia dos nazistas ao inventar o computador moderno), visita empresas como os laboratórios de telefonia da Bell e das máquinas de calcular da Texas Instruments, para só então chegar na era do reinado de Bill Gates e Steve Jobs, passar pela web criada por Tim Berners-Lee e culminar na criação do Google por Sergey Brin e Larry Page. Não apenas um relato de fôlego, mas um livro inspirador.
Além do filme novo do Jason Reitman, a Gi Ruaro também viu outro filme promissor no London Film Festival, The Imitation Game, em que o nosso querido Benedict “Sherlock” Cumberbatch vive o maior nome inglês da história da computação (desculpa, Tim Berners-Lee) – Alan Turing. Eis o trailer e, a seguir, o comentário da Gi sobre o filme:
Sabe o Turing? Morreu. Faz tempo, mas o mundo está redescobrindo o matemático e herói da Segunda Guerra no novo filme The Imitation Game. Benedict Cumberbatch é o jovem Alan Turing, contratado em 1939 para quebrar o código Enigma e salvar a humanidade. Parece coisa de filme de Hollywood.
Colocando em miúdos: os nazistas usavam a máquina Enigma para codificar todas as mensagens na Segunda Guerra. Era até então a máquina perfeita, capaz de encriptar comunicação e modificar o segredo a cada 24 horas com 150 trilhões de regulagens. Os ingleses conseguiam ver as mensagens, sem entender o sentido.
Turing, fã de palavras-cruzadas e desafios lógicos em geral, acreditava que para possamos entender uma máquina temos que criar uma outra máquina. Elas conversam melhor entre si do que conosco.
Depois de três anos construindo uma máquina automática, apelidada no filme carinhosamente de Christopher, Turing conseguiu desvendar o segredo em 1943. Mas, ainda em meio a guerra, este virou o maior segredo. Afinal, se os nazistas soubessem que os Aliados tinham a solução do Enigma, inventariam uma nova versão.
Ou seja, todos os movimentos de Hitler entre 1943 e 1945 estavam sendo interceptados pelos aliados e monitorados. Havia também um grande cuidado de inteligência para justificar ações que vinham das mensagens do Enigma. O Dia D não teria sido possível sem Turing. A Guerra teria se arrastado por mais alguns anos. A blitz poderia ter acabado com Londres. Hitler poderia ter vencido. 150 trilhões de possibilidades de um futuro bem diferente.
A Segunda Guerra acabou em 1945, então era hora de contar pro mundo como Turing salvou a pátria. Mas o medo de uma nova guerra mundial fez os ingleses destruírem todos os registros de guerra de Turing, para que os nazistas não soubessem que Enigma era kaput.
De maneira simplista como o meu texto, é essa a história que The Imitation Game quer contar. E conta de maneira bem Escola Weinstein de Oscar Garantido, tipo O Discurso do Rei. Ruim, não é. É breguinha. Fofinho. Bonitinho.
Mas vamos falar do que o filme quase não fala. Além de quebrar o Enigma, Turing era gay. Christopher era o nome do seu amor de adolescência e o apelido da máquina (será isso real ou invenção do filme?). Turing se encontrava com garotos de programa em Londres e em 1952, foi condenado a dois anos de prisão por sair com um garoto. A alternativa ao tempo em prisão era tratamento hormonal – ou castração química. Turing optou pela castração porque na prisão ele não poderia continuar seu trabalho, e depois de um ano de tratamento, os efeitos colaterais ficaram cada vez mais difíceis de aceitar. Tremores, dificuldade de concentração ou de raciocínio. Turing não aguentou e em 1954, se suicidou.
Nesta época, 49 MIL gays foram condenados a prisão ou castração química por serem homossexuais. Em 2013, a rainha finalmente o perdoou pelo seu crime. Em 2013, ano passado. Ser homossexual era ilegal na Inglaterra até 1967, na Escócia até 1980 e Irlanda do Norte, 1982.
É claro que os direitos LGBT evoluíram muito na última década, mas há ainda 76 países onde ser gay é ilegal. A Europa é o único continente em que nenhum país tem leis contra homossexualidade. O fato de ser ilegal ser gay destruiu a carreira de um dos grandes heróis ingleses e no fim acabou matando-o. Turing tinha 41 anos e muitos anos de estudos pela frente – num mundo que parece tão distante, mas na verdade está tão perto. Nossos pais cresceram neste mundo.
Uma máquina entende outra máquina e apenas uma pessoa pode entender outra pessoa (filosoficamente falando, tipo Samantha em Her). O grande jogo da imitação foi de Alan Turing, que usou seu autismo para criar uma nova maneira de entender o mundo. Imitando colegas, amigos e familiares, conseguiu se ver normal numa sociedade em que não era.
A máquina automática de Turing evoluiu e agora você está lendo este texto dentro dela. Com inúmeros uns e zeros, Turing criou o primeiro computador.
The Imitation Game é um filme mais baunilha pra agradar uma audiência maior e este é o primeiro passo: conhecer Turing e reconhecer seu trabalho.
E o processo de reabilitação da reputação oficial de Alan Turing está começando bem. Ao escalar nosso amigo Benedict Cumberbatch (o Sherlock) para atuar como o pai da computação moderna, o filme The Imitation Game já marca pontos de saída rumo à canonização de um dos dois ingleses a importar na história do mundo digital (o outro é o Sir Tim Berners-Lee). Turing é mais conhecido pelo teste que leva seu nome, feito para reconhecer se um computador pode se passar por um ser humano em um diálogo), mas tornou-se um personagem histórico ao ajudar os aliados a ganhar a Segunda Guerra Mundial quando decifrou o Código Enigma, usado pela Alemanha nazista para comunicações secretas.
Seus feitos matemáticos e estudos sobre inteligência artificial serviram como base para a computação moderna (além de ter criado a primeira versão eletrônica para o jogo de xadrez), mas ele nunca foi reconhecido como tal em vida pois suas realizações foram classificadas como sigilosas. Em 1952 foi condenado por “grave indecência” nos anos 50 por um envolvimento com outro homem, mesma pena recebida por Oscar Wilde no fim do século 19. Como parte da pena, passou a ser submetido a um humilhante tratamento hormonal (para conter seu impulso sexual). Foi encontrado morto no dia 7 de junho de 1954 e alegação à época foi de suicídio, embora a hipótese de envenenamento ainda paire sobre o caso.
No ano passado, o governo inglês finalmente perdoou oficialmente o matemático e passou a celebrar sua importância, também reconhecida pelo público, que organizou um abaixo-assinado que sugeria inclui-lo como personagem da nota de 10 libras. O novo filme, mais um degrau rumo ao reconhecimento global da importância de Turing, está previsto para estrear em novembro deste ano e ainda conta com Keira Knightley, Matthew Goode e Mark Strong no elenco. Veja o trailer abaixo:
• Aaron Swartz: Hacker réu • Facebook e Instagram: Feitos um para o outro • Alan Turing: Big bang binário • Homem-objeto (Camilo Rocha): Bem do seu tamanho • Impressão Digital (Alexandre Matias): A internet ajuda até quem não está conectado a ela • No Arranque (Filipe Serrano): Compra do Instagram é modelo para futuro dos negócios digitais • Brian Chesky, CEO e cofundador do Airbnb • Cinemagram e outros grams • Google no tribunal, Facebook mais transparente, e-book combinados e Macs infectados •