A morte de um gênio

, por Alexandre Matias

A morte de Brian Wilson me levou a escrever mais um texto pro Toca UOL, desta vez falando sobre sua importância.

Brian Wilson, dos Beach Boys, levou música pop ao patamar de excelência

A importância de Brian Wilson para a cultura das últimas seis décadas ainda está para ser medida. O cantor, compositor e músico estadunidense, que fundou os Beach Boys e trouxe a música pop para o patamar de excelência que transformou sua geração, nos anos 1960, e as seguintes, partiu nesta quarta-feira, após ser diagnosticado com demência no ano passado. Mas seu legado, que pode ser encapsulado em sua obra-prima (o disco ‘Pet Sounds’, que completa 60 anos no ano que vem), segue perene, influenciando inclusive artistas novatos, que estão começando suas carreiras nesta década.

Com ‘Pet Sounds’, Brian Wilson mostrou que a música pop poderia não ser descartável e tornar-se clássica. Embora muitos busquem referências eruditas para rotulá-lo — falando tanto em “sinfonias de bolso” ou em “Mozart norte-americano” —, Wilson foi forjado ouvindo canções grudentas no rádio e comprando compactos de artistas que começavam a vender às centenas de milhares a partir dos anos 1950.

Sim, ele tinha formação clássica — teve aulas de piano, aprendeu a ler música e escrevia os próprios arranjos —, mas era sua visão ousada que misturava referências musicais diferentes de seu próprio país que deu origem ao grupo que fundou e depois obrigou-o a subir para um novo estágio — um que nenhum artista cujo público era adolescente havia ousado habitar.

A fundação dos Beach Boys — grupo vocal que criou no início dos anos 1960 ao lado dos irmãos Carl e Dennis, do primo Mike Love e do vizinho Al Jardine — já trazia a semente de sua ousadia desde seus primeiros compactos.

Ele ousava misturar o rock’n’roll que havia sumido das paradas de sucesso ao doo-wop e a soul music que começavam a surgir naquela virada de década ao folk nova-iorquino (seu uniforme de camisas listradas era inspirado no figurino do Kingston Trio), às megalomanias orquestradas do produtor Phil Spector e à cultura surfe, que aos poucos firmava-se com uma das primeiras manifestações culturais norte-americanas na Califórnia, o pedaço do México que os Estados Unidos haviam tomado à força há pouco mais de um século.

Hits instantâneos
O sucesso dos Beach Boys foi quase instantâneo, desde o primeiro single lançado, e apresentou a Califórnia como um novo horizonte para os Estados Unidos – e depois para o resto do mundo – muito diferente daquela que todos conheciam até então, cujas referências anteriores eram o velho oeste e a corrida do ouro.

Hits como “Surfin'”, “Surf Safari”, “Surfin’ U.S.A.” e “Surfer Girl” não apenas apresentaram uma nova Califórnia para o mundo, como estabeleceram os parâmetros para o que hoje reconhecemos quando falamos de surf music e ajudaram a estabelecer o público adolescente como mercado consumidor, algo que foi desbravado na década anterior com o fenômeno do rock’n’roll. Só que o rock perdeu a força à medida em que os anos 1950 chegavam ao fim e dois grupos vieram salvá-lo no início da década seguinte – e os Beach Boys foi o primeiro deles.

O outro veio do outro lado do Atlântico e estourou nos EUA quando o país ainda atravessava o luto sobre a morte violenta de um de seus presidentes mais populares, John Kennedy. Quando os britânicos Beatles explodiram em fevereiro de 1964, eles também abateram a ascensão dos Beach Boys como um dos grupos mais populares daquele país ao se estabelecerem, após conquistar os EUA, como um fenômeno mundial. Os dois grupos seguiram cada vez mais populares e, embora não tivessem uma rivalidade aberta, o sucesso dos ingleses abalou bastante a autoestima dos irmãos Wilson e, principalmente, atiçou um espírito competitivo que Brian Wilson nunca havia demonstrado publicamente.

Foi o sucesso dos Beatles – não apenas comercial, mas também artístico — que fez Brian cada vez mais mergulharna arte da composição e desistir das apresentações ao vivo — muito antes que os ingleses, diga-se de passagem. O cansaço dos shows e das excursões pelos EUA fez Brian aposentar-se dos palcos para dedicar-se às composições e gravações de seu grupo, que seguiu fazendo shows ao vivo mesmo sem que seu principal autor saísse da banda.

E quando os Beatles lançaram a primeira de suas grandes obras-primas – o disco “Rubber Soul”, de 1965 -, Brian tomou aquele lançamento como uma provocação pessoal – centrando sua concentração musical naquele que considerava uma espécie de gêmeo musical, afinal Brian Wilson era apenas dois dias mais velho que Paul McCartney. O gênio de Paul (já demonstrado no disco anterior lançado naquele mesmo ano, quando trouxe ao público sua canção mais popular, “Yesterday”, música em que os Beatles não tocavam nada e Paul era acompanhado apenas de um quarteto de cordas) já erguia-se como farol criativo para o beach boy.

Ao tomar “Rubber Soul” como um desafio pessoal, Brian Wilson lançou-se em sua obra mais ousada, ao colocar os Beach Boys num terreno ao mesmo tempo pop e sinfônico, ecoando lembranças da infância e a nostalgia de um tempo não vivido como linha mestra narrativa.

Os únicos artistas que haviam feito isso na música pop eram Frank Sinatra (na dobradinha de discos “In the Wee Small Hours”, de 1955, e “Songs for Swingin’ Lovers!”, do ano seguinte, quando resolveu abandonar o público jovem) e Bob Dylan (quando partiu para sua fase elétrica, iniciada no disco “Bringing it All Back Home”, também de 1965, uma resposta literal ao sucesso dos Beatles), mas com “Pet Sounds”, Brian Wilson não estava apenas mirando as paradas de sucesso, mas a longevidade de sua obra.

Os colegas de banda não entenderam o novo disco, bem como a crítica da época, mas sua mensagem foi recebida como um desafio idêntico por seu concorrente inspirador e Paul McCartney nunca escondeu que o disco dos Beach Boys de 1966 foi sua principal inspiração para que os Beatles gravassem o disco que mudou a história da banda, dos anos 1960 e da música pop, “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, de 1967.

‘Pepper’ foi um golpe duro para Brian, que se viu novamente desafiado, mas desta vez abastecido por drogas psicodélicas. E o que a princípio parecia ser o início de uma obra-prima ainda mais ousada que “Pet Sounds” (a partir do lançamento do compacto espetacular “Good Vibrations”, que ainda ajudou a estabelecer a Califórnia como epicentro de uma transformação cultural que faria nascer o movimento hippie e a psicodelia norte-americana), tornou-se um pesadelo para seu autor, à medida em que Brian perseguia uma perfeição sonora inatingível que literalmente o fez enlouquecer.

Delírios de megalomania
“Smile”, o disco que buscava fazer em 1967, teve de ser interrompido pela banda e pela gravadora, pois os delírios de megalomania sonora de Brian faziam a parede de som que Phil Spector criou em hits como “Be My Baby” e “You’ve Lost That Loving Feeling” parecerem uma caixinha de música.

A intervenção reduziu “Smile” a um disco menor (embora fabuloso) chamado “Smiley Smile”, rachou de vez os Beach Boys e soterrou o crescendo criativo de Brian.

Por mais que se mantivesse como principal compositor do grupo mesmo nos anos seguintes, ele perdeu sua liderança no clássico racha com o primo Mike Love, que conseguiu pegar as rédeas do grupo e mantê-lo popular inclusive na década seguinte, quando disputava popularidade com novos titãs de popularidade, como Led Zeppelin, Pink Floyd e Crosby Stills Nash & Young.

A morte de seu pai em 1973 fez Brian tornar-se ainda mais recluso, usando drogas compulsivamente e mal saindo de casa, sempre de pijama. Voltou a fazer música no meio daquela década, mas já estava mentalmente avariado e ainda viciado em álcool e substâncias ilícitas, o que levaram a uma segunda intervenção no início dos anos 1980.

Tentou retomar sua carreira solo em diferentes momentos depois disso, sempre em litígio legal com os irmãos – e especialmente com Mike Love -, o que o fez seguir uma carreira paralela à de sua banda. Reconciliou-se com o estúdio e a estrada já neste século, quando conseguiu finalizar o disco que idealizava para 1967 como seu disco solo, que o trouxe para o Brasil pela única vez, no saudoso festival Tim Festival, em 2004.

Desde então conseguiu manter-se estável e as gerações seguintes, que passaram a reverenciar a hoje considerada fase clássica dos Beach Boys, o saudaram como um dos grandes nomes da época mágica que foram os anos 60, seus shows quase sempre transformados em parques temáticos dedicados à nostalgia daquele período.

Livros, filmes e discos-tributos foram lançados, reforçando sua importância, que ainda é celebrada, mesmo quase sessenta anos depois de seu auge – dois bons exemplos são o filme “Love & Mercy”, de 2014, lançado no Brasil como “The Beach Boys: Uma História de Sucesso”, com Paul Dano e John Cusack vivendo Wilson em dois momentos de sua carreira; e o documentário “The Beach Boys”, lançado no ano passado pelo canal de streaming Disney+, que apesar de ser chapa branca (por ser um filme oficial), conta bem a história de Brian e do grupo.

Sua morte não apenas explicita seu papel na história da música contemporânea como mostra que, mesmo depois de piripaques químicos e emocionais, um artista pode seguir sua carreira e ser celebrado por isso. Um mestre que ainda será muito celebrado.

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