A arqueologia de Júpiter Maçã
Quando mudou-se para a Finlândia, o cineasta André Peniche levou poucas coisas do Brasil – entre elas, um certo “tesourinho”. “Muito antes de morrer, ou melhor, pouco antes de recair na bebida, Júpiter deixou comigo o que ele chamava de ‘tesourinho’. Era basicamente uma cópia de cada disco lançado e outras raridades”, me explica por email, se referindo ao legado póstumo do papa psicodélico Júpiter Maçã, que aos poucos começa a ver a luz do dia. “Algumas dessas raridades estavam também com outros amigos músicos que tinham ainda mais participação do que eu na vida do man. Isso ficou comigo por uns dois anos antes de sua morte e claro, após 2015, quando ele faleceu. Ano passado me mudei para Helsinque, Finlândia, onde hoje resido, e uma das poucas coisas que trouxe comigo foi o tal ‘tesourinho’. O motivo? Não sei… Em parte talvez pois estou lentamente trabalhando num documentário extenso sobre ele mas em outro, pois simplesmente achei que devia.”
Ao levar o acervo consigo, Peniche mal sabia que iria desbravá-lo em pouco tempo. “A partir de fevereiro de 2020, a pandemia apertou por aqui também e o trabalho secou. Com isso, veio o tempo livre… Olhei pro lado e ali estava o ‘tesourinho’: Dois discos completos e inéditos estão comigo. Um deles será lançado ainda esse ano por um selo cuja única cópia com capa e contracapa é minha. O outro era o Apartment Jazz. Essa era a provavelmente única cópia existente do disco. Revisitei o disco e entendi que isso era um período e uma faceta dele que precisava ser revisitada. Era bem durante a gravação do Plastic Soda e do Hisscivilization, seu período mais experimental. O disco é brilhante e me deu uma aflição enorme pensar que isso ficaria outros tantos anos sem ver a luz do dia. Foi então que tomei as rédeas e cuidei de lançar de maneira digital. Uma versão em vinil ainda vai rolar, mas por enquanto, o importante era que isso fosse ouvido, degustado.”
O disco Apartment Jazz é a trilha sonora para o filme de mesmo nome, que Júpiter dirigiu e atuou ao lado do Tatá Aeroplano. Com influências dos filmes dos Beatles, da nouvelle vague e da boca do lixo paulistana, o filme, realizado durante o ano de 2001, foi escrito e filmado em ordem cronológica e exibido pouquíssimas vezes até Peniche lançá-lo como parte da geral que está dando no acervo do falecido Flávio Basso. Conversei com o Tatá num CliMatias dia desses sobre o filme.
O papo me levou a esta conversa por email com André, que está aproveitando seu tempo livre escandinavo para arrumar a presença online de Júpiter. “O que estou tentando fazer no momento, é intermediar inúmeras partes para que todos entremos em ‘sync’. A vida do Jupiter digital, por exemplo – streaming e afins – estava uma bagunça. Em um mês, consegui organizar.”
Mas há muito ainda a ser feito: “Eu tenho conhecimento da grande maioria do que existe por aí. Diria que 85%. Mas é MUITA coisa, muita mesmo. Não posso falar muito ainda de planos futuros. É que existe muita coisa, com muita gente; muito do acervo dele está guardado com todo esse povo por inúmeros motivos diferentes e claro, compreensivelmente, nem todo mundo tem energia e tempo pra organizar isso. E ainda há questões de royalties, direitos e etc. Tá tudo caminhando, mas política é a palavra-chave no momento. E é importante dizer que quem detém os direitos de tudo é a mãe dele, dona Iara. Falei com ela e com Egisto Dal Santo, amigo que cuida da maioria das coisas com ela hoje em dia.”
Além de Apartment Jazz, Peniche acaba de lançar o único registro de uma das últimas bandas de Júpiter, The Apple Sound, “Cerebral Sex”. “Essa faixa nasceu num período do Flávio onde ele estava se reencontrando. Era fim de 2009. Ele havia realmente e radicalmente ficado sóbrio e o melhor dele veio à tona. Lançamos ‘Modern Kid‘, single que ele fez especialmente para o clipe com o Thunder e logo após disso ele estava borbulhando de idéias. Nessa mesma época, apresentei a ele e a Clegue a Laura Wrona. Rolou uma faísca e o Flávio resolveu colocar em prática uma idéia que ele tinha há um tempo, que era de usar uma bateria desconstruída em suas músicas. Não só isso, mas ele queria revisitar boa parte de seu acervo e criar edições especiais de hits dele com essa banda, o Apple Sound.”
“‘Cerebral Sex’ era uma nova música que ele havia escrito. Foi a primeira a ser feita com a Apple Sound e com sua carreira solo em paralelo. A música chegou em mim logo após ser gravada. Ele mesmo me trouxe pois era o próximo clipe a ser feito depois de ‘Modern Kid’. Pra ter uma ‘idéia’ de como ficaria, montei um clipe com cenas da turnê que fizemos no fim de 2009 com a música ‘Cerebral Sex’ da Apple Sound, que foi a primeira a ficar pronta. Ele na época adorou, mas pediu que eu segurasse pois ele preferia lançar a versão Jupiter Apple com tais imagens. A verdade é que tal versão nunca saiu e o clipe permaneceu assim. Ele está pronto há quase 12 anos. São imagens cruas, sem tratamento. E é assim que decidi lançar. Tendo dito isso, sim, existe uma versão da mesma música como Jupiter Apple.”
Pergunto sobre esta versão: “Esta versão está num disco inédito que ainda há de ser terminado. O disco possui entre 9 e 12 faixas e foi gravado durante a turnê do fim de 2009 em Porto Alegre. Não posso falar muito sobre pois os direitos e músicas não estão em meu poder; mas posso falar seguramente que ‘Cerebral Sex’ e ‘Six Colors Frenesi’, outra lenda, estão na lista. Eu tenho as versões demo e algumas músicas desse disco. Ele deixou também comigo para que eu escolhesse músicas parabém clipe. Umas estão mais terminadas que outras.”
Quando pergunto se dá pra pensar em mais novidades para os próximos meses, Peniche ri. “Defina ‘meses’! Vamos relançar um curta do Beto Brant e Cisco Vasques em que Júpiter contracena com Sônia Braga, José Wilker e Laura Neiva chama Kreuko. Há também mais um single e talvez mais dois. Depois disso, vai rolar uma pausa, pois muita coisa precisa ser negociada e pensada. Ainda esse ano deve sair um disco inteiro inédito. Não sou o único a lançar essas raridades. Outras pessoas e selos virão com suas raridades. Seguramente posso dizer que há alguns singles, mais de três, uns três ou quatro discos e um EP. Mais coisa vai surgir em formatos demo e afins. Teremos anos de material por aí. Eu é que dei uma exagerada na quantidade agora, mas é meu modus operandi.”
Aproveito para perguntar sobre seu envolvimento com o rockstar gaúcho. “Eu o conheci na primeira metade de 2009. Muita gente liga meu nome a ele por conta do ‘Modern Kid’, clipe que dirigi, e acha que minha relação com ele vinha de tempos, mas não. Perto de muita gente foda, minha relação com ele foi relativamente curta. Fomos realmente próximos de 2009 a 2012. Depois disso, meu contato com ele nunca desapareceu, mas por questões etílicas, me afastei de leve e naturalmente. Sei que era assim com muitos dos parceiros e parceiras que ele tinha. O Júpiter tinha muito respeito por mim e pelo meu trabalho. Não falo isso com egocentrismo. Falo com orgulho pois era algo explicitamente mútuo. Ele confiava em mim completamente. Por isso também que tais materiais estão hoje comigo.”
“Me aproximei dele por um amigo em comum. Na época, eu era apenas fotógrafo still e estava querendo fazer um novo projeto. Uma das pessoas que pensei para o tal projeto foi ele, e assim, usei meu contato com esse amigo em comum e deu certo. Júpiter se apaixonou pelo meu trabalho e eu já era apaixonado pelo dele. Assim, passamos a ser extremamente próximos. Por conta dele, conheci também Luiz Thunderbird, que hoje é meu grande amigo. Eu e ele passávamos noites adentro, junto com a Clegue, sua namorada na época, tendo brainstorms e afins. Algumas vezes, Thunder estava presente. Tais encontros começavam normalmente no início da noite e iam até o amanhecer. Desses encontros, coisas lindas saíram. ‘Modern Kid’, ideias para filmes, trabalhos de arte, músicas… Temos inclusive um roteiro que em parte foi gravado em áudio e que íamos narrando o filme e tocando… Júpiter no violão, eu no banjo e mais um amigo no outro violão…. Bons tempos…
Quando o pergunto sobre a existência de algum Santo Graal jupiteriano, alguma faixa ou algum material que alguém saiba da existência mas que não conheça o paradeiro, o diretor titubeia. “Talvez. Mas ainda não sei dizer. Digo isso pois a cada dia algo novo aparece e sempre está com alguém. Particularmente, um santo graal seria a versão trovador-violão de ‘Modern Kid’. Sinto ainda que ela existe. Uma das cópias estava comigo e foi apagada por engano. Thunder mencionou ela na entrevista de making-of durante a gravação do clipe de Modern Kid. E não sei se dá pra chamar de Graal, mas uma música linda dele é ‘Talentoso’. A versão de estúdio está comigo.”
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