Tudo Tanto #36: A longa jornada de Otto
A minha coluna Tudo Tanto da edição de setembro da revista Caros Amigos conta a trajetória de Otto, que fez o ex-percussionista do Mundo Livre S/A se tornar um dos grandes nomes da música brasileira contemporânea.
Um longo caminho
Depois de duas décadas de carreira solo, Otto lança seu melhor disco e está pronto para as massas
Lembro da primeira vez que vi Otto ao vivo, ainda no Mundo Livre S/A. O ano devia ser entre 94 ou 95 e o grupo apresentava-se num lugar chamado A Casa, se não me engano um evento organizado pelo jornalista Alex Antunes. Já tinha ouvido falar que o Mundo Livre ao vivo não funcionava, que seu disco de estreia, Samba Esquema Noise, de 1994, havia ganhado um corpo no estúdio – através das mãos dos produtores Carlos Eduardo Miranda e Charles Gavin – que a banda não tinha no palco. Mas aquilo ali era um pouco demais.
A banda realmente não segurava as pontas ao vivo, com o vocalista Fred Zero Quatro esforçando-se para manter o brio e a cara de cool enquanto a banda atrás dele se engalfinhava para fazer aquelas músicas manterem-se de pé. Mas o percussionista da banda não ajudava nada. Otto, que na época usava uma longa cabeleira loira, e era apenas coadjuvante no grupo, teimava em solar atabaques, pandeiros e tambores à revelia do que estava sendo tocado. Cantarolava atravessando a voz de Fred apenas para tomar fuziladas visuais dos olhos do vocalista. Metade do público estranhava por achar o percussionista sem noção e a outra metade sorria ao achar tudo muito doido.
Não era uma banda desajustada. O que acontecia ali naquele palco – e em tantos outros shows da banda naquele período – era uma disputa velada entre os dois artistas por espaço na banda. Depois de um tempo soube que Otto tinha suas próprias composições, que eram menosprezadas ou ignoradas por Fred Zero Quatro, fundador e dono do Mundo Livre S/A. Otto resolvia aquela briga pulando em frente ao holofote na frente do vocalista ao puxar suas próprias canções – ou rascunhos de canções – no meio das canções de Zero Quatro. O resultado eram shows desastrosos, que aumentava ainda mais a fama que a banda tinha de não funcionar ao vivo.
Isso inevitavelmente seria resolvido com a saída de Otto da banda, depois que gravaram seu segundo disco, o subestimado Guentando a Ôia, de 1996. Sem grupo, ele aos poucos foi se aproximando da música eletrônica e, graças a dicas e conselhos do jornalista Camilo Rocha e do produtor Apollo 9, ele reinventou-se como um artista solo. O mesmo Miranda que lançou o Samba Esquema Noise do Mundo Livre S/A abria espaço para a nova empreitada do músico ao transformá-lo no carro-chefe do selo que inaugurava numa gravadora brasileira novíssima. Samba Pra Burro, o disco de estreia de Otto, foi o disco que inaugurou o selo Matraca em 1998 e um dos primeiros lançamentos de uma gravadora que fez história, a Trama.
Os primeiros shows que Otto fez solo, no entanto, não faziam jus ao ótimo disco de estreia. Tocando percussão acompanhado de um produtor, os shows não tinham força nem presença, por mais carismático que o artista fosse. Isso só foi resolvido quando chamou o tecladista e produtor Daniel Ganjaman, que trabalhava com rap, para montar uma banda. A Jambro Band – nome que vinha de um trocadilho criado por Otto, pelo fato da banda ser uma “jam de broders” – teve diversas formações e aos poucos o pernambucano foi consolidando a reputação ao vivo. Além de Ganjaman, passaram pela Jambro Band nomes como Fernando Catatau e Rian Batista (ambos do grupo Cidadão Instigado), os percussionistas conterrâneos Marcos Axé e André Male, o guitarrista cearense Junior Boca, o baterista paulistano Maurício Takara (irmão de Ganjaman), entre outros. A banda funcionou como aquecimento para parte de uma geração de músicos radicados em São Paulo e ajudou a Ganjaman a idealizar os shows do coletivo Instituto, que criaria ao lado de Rica Amabis e Tejo Damasceno anos depois. Os discos mais emblemáticos deste período são o pesado Condom Black, de 2001, e Sem Gravidade, de 2003. Enquanto cruzava o Brasil com sua banda, ainda teve tempo de lançar uma versão remix para seu primeiro disco chamada de Changez-Tout, lançado no ano 2000. Esta segunda fase foi encerrada com o disco ao vivo MTV Apresenta, lançado em 2005.
A partir daí começa a terceira fase de sua carreira, que parece ter chegado ao ápice com o recém-lançado Ottomatopeia. Em um período de mais de uma década, Otto forjou uma nova personalidade musical, mais romântica, existencialista e popular que a que consolidou sua carreira solo, gravando discos de forte apelo emocional. O trio de discos iniciado com Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos (de 2009), continuado com The Moon 1111 (de 2011) e aparentemente concluído com Ottomatopeia (de 2017) consagra sua parceria com o baterista da Nação Zumbi, Pupilo, como produtor de discos cheios de participações especiais e inspirações fortes – o disco de 2009 é batizado a partir da frase que abre o livro A Metamorfose de Franz Kafka, e o de 2011 é diretamente inspirado pelo Dark Side of the Moon de Pink Floyd e pelo cinema francês de François Truffaut. Os discos têm participações de músicos como Lirinha, do Cordel do Fogo Encantado, Fernando Catatau, Dengue, baixista da Nação Zumbi e duetos com cantoras como Céu, Luê, Tainá Muller e Julieta Venegas. São discos que marcam uma fase sóbria e um tanto sombria de suas composições, o primeiro destes influenciado pelo fim do casamento com a atriz Alessandra Negrini e pela morte de sua mãe.
Ottomatopeia, no entanto, abre a janela e deixa a luz entrar neste período noturno. Um disco solar, de forte sotaque tropical e raízes latinas, o disco recém-lançado é o álbum mais forte da carreira de Otto e consagra sua carreira como um dos principais cantores e compositores da música brasileira atual. É seu disco mais fácil e também mais brega (no melhor sentido do termo), com direito à dupla de guitarristas paraenses Felipe e Manoel Cordeiro e dueto com Roberta Miranda na faixa “Meu Dengo”. Uma carreira tortuosa, que conseguiu encontrar a própria voz às duras penas e que agora está pronta para as massas. Ave Otto!
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