Taí o disco novo da Bárbara Eugenia
O ótimo Frou Frou, terceiro disco da banda, junta-se à excelente safra de discos brasileiros desta primavera de 2015 (que também inclui o disco novo da Elza Soares, o segundo disco do Ogi, o novo dos Supercordas e o terceiro da Karina Buhr). Dá pra baixar o disco de graça no site dela, onde ela também postou o release que ela me chamou pra escrever, que reproduzo a seguir.
2015 é um ano tenso, turbulento, agressivo. Polaridades disparam em radicais opostos para chocar-se de frente. Tudo está em xeque: comportamentos, ideologias, gêneros, classes sociais, estéticas, pontos de vista. O ano é uma catarse de emoções e elas vêm intensas, contraditórias, díspares, em bando.
Mas uma virada de bateria corta o horizonte sonoro, passeando pelas peças de seu instrumento numa lenta e didática virada que ao mesmo tempo em que testa a sonoridade de cada tambor e anuncia a suspensão da realidade para um anúncio importante, como um juiz da realidade que apita “tempo” para que possamos prestar atenção em um detalhe. Ao concluir no bumbo, a virada passa a contar o tempo num lento e hipnótico compasso bate-estaca em câmera lenta, perseguido por um baixo cúmplice e cordas dramáticas, que funcionam como base para um riff discreto e reverente, que reforçam o pedido de atenção exigido pelo ritmo com doses de elegância e reverência.
Bárbara Eugenia surge solene e séria, como se dispusesse a se tornar arauta deste ano turbulento. “Nesse tumulto de emoções”, canta quase conversando, antes de mudar drasticamente o ponto de vista do ouvinte, “que se chama ‘eu’, quero uma liteira que me carregue pra longe do meu coração para mantê-lo hermeticamente fechado, isolado da dor, imune. ”
A tensão começa a ser dissipada como uma manteiga cortada por uma faca quente – a guitarra que acaricia arabescos entre a surf music e o western spaghetti, pista de pouso para um teclado que repousa, a cada verso, acordes de sonho – baixo e bateria, seguem marcando o tempo e determinando o pulso marcial do início da canção que abre o terceiro disco de Bárbara.
“Acontece que não sei viver à margem. Prefiro ser assim – amando, sofrendo, gozando a vida de verdade”, Barbara segue implacável como se rogasse uma praga almodovariana sobre si mesma, aos poucos vai baixando a guarda, ao mesmo tempo em que o ritmo vai deixando a seriedade de lado para começar a instigar a dança – e ela mesma vai anuncia que cede à própria fragilidade: “Tentei fugir, fingir que nada se passava. Inevitável – essa amizade foi longe demais” – ela repete a última frase vocalizando as vogais e cedendo a um drama teatral que se entrega por inteiro quando o baixo se pronuncia em primeiro plano, como se acendesse luzes coloridas traduzidas em cordas de tom épico girando ao redor de um muquifo escuro que segundos antes era feio, forte e formal como um pub de filme policial.
“E quanto mais eu me aproximo, mais colada eu tô”, Barbara atira seu vocal à pista de dança e nos recebe em um delírio brasileiro de disco music, tecendo uma ponte entre a música pop e a música popular brasileira que foi abalada pelo surgimento da geração rock dos anos 80.
“Vidrada no teu sorriso com a cara de besta que sou” – ela canta o título da primeira canção – “Besta” – de forma quase jocosa, tirando toda a pseudosseriedade do início da faixa e exorcizando completamente as tensões do ano de seu lançamento. “Besta” é a melhor introdução a Frou Frou, um disco fútil e volúvel à primeira vista, que esconde exatamente essa necessidade de criar um hiato ou um aposto que consiga nos isolar da enxurrada de animosidade que convivemos diariamente. Bárbara Eugenia vem elegante como um trocadilho dadaísta, mas sua raiz é passional, quente, latina, novelesca. Ela abre uma fenda interdimensional para um universo minúsculo, um inferninho discothèque abrasileirado que daria continuidade à casa noturna carioca Noites Tropicais ao misturar as atmosferas de um Studio 54 à brasileira com todo o espectro emocional de programas de calouros e da Discoteca do Chacrinha nos anos 80. “Eu bem que sabia que isso era uma cilada”, ela confessa num momento de pausa da canção, “eu tinha certeza, mas adoro uma roubada” – e aí entra um sax rasgando tudo, tão clichê, autorreferente e eficaz quanto os “uh uhs” que fazem a canção retomar o tom solene inicial. Mas aí já era. Toda pose foi desfeita e o que parecia arrogância era só a própria insegurança esparramada em um comentário irônico e sério sobre este 2015. Com um risinho no canto da boca, piscando discretamente um dos olhos, ela nos pede um favor: “Menos, galera.”
A primeira metade do disco – e algumas faixas da segunda metade – traz outros exemplos desse campo de força criado ao redor de uma pseudofutilidade. “Vou Ficar Maluca” parece ecoar “Penny Lane” ironicamente, mas o groove puxado pelo piano como o de “Modern Love” nos devolve à pista de dança do início do disco. Prince e Debbie Harry se encontram num subúrbio brasileiro em “Pra Te Atazanar”, dobradinha com o arisco Rafael Castro (que também atravessa 2015 em fase dance) que nos dá uma explicação impossível de ser rebatida: “Por quê? Porque sim. Porque eu cismei com você. Por quê? Porque sim. Porque eu pirei, ” enquanto os dois nos levam madrugada adentro aos limites de uma relação afetada e paranoica. Mais adiante ela derrete-se blueseira cabaret no pé na buda de “Ai, Doeu!” que parafraseia Lulu Santos (“Tudo passa, tudo sempre passará”) bem temperada de órgãos elétricos, meio como os blues de Paul McCartney, que misturavam os sentimentos mistos das dores de cotovelo de Wanderléa com o andamento pesado da banda de Janis Joplin.
“Recomeçar”, composta pelo líder do Cidadão Instigado, o guitarrista Fernando Catatau, talvez seja um dos grandes momentos de Frou Frou. Bárbara já conhecia a canção desde antes do lançamento do disco Uhuuu, que a banda cearense lançou em 2009, e ao ver que ela não havia entrado nem naquele disco nem no Fortaleza, lançado este ano, chamou a responsabilidade para si e gravou uma canção romântica perfeita para ser tocada nas rádios brasileiras dos anos 70 e 80, uma música que Roberto Carlos, Fagner e Odair José provavelmente gostariam de tê-la escrito. Mesmo com seus “papapa” e “tchururu” próprios do pop brasileiro, “Recomeçar” também passeia pela pista de dança que aos poucos vai tomando conta do disco em um breque que aponta para os momentos disco music do disco The Wall do Pink Floyd. “Vamos parar algum momento pra recomeçar”, lamenta e confessa uma das músicas mais firmes de Fernando Catatau, “partir do princípio de quando nosso olhar se encontrou. ”
O ponto de meditação “Para Curar o Coração” reúne comadres – Andreia Dias, Blubell, Andrea Merkel, Claudia Dorei e Naná Rizzini – para repetir uma frase em português entreouvida por um acaso num mantra cantado em tibetano – e funciona como uma vinheta de transição para a segunda metade do disco, que deixa seu lado hedonista e porraloca em segundo plano para entrar numa internalização a respeito dos próprios sentimentos.
Como é o caso de outro ponto alto do disco, a delicada “Ouvi Dizer”, composta com o compositor Peri Pane – que faz um dueto com Bárbara na gravação – e o poeta arrudA, que contrapõe Pasárgada e Atlântida como ideais de utopias coletivas, refletindo sobre sua efemeridade num arranjo quase oriental. A versão para “Cama”, de Tatá Aeroplano, outro velho conhecido da cantora, assume outro holofote do disco, ao levar a canção de amor impulsivo e obsessivo naquele limite entre o hard rock e o rock progressivo, puxando a eletricidade no talo para amplificar ainda mais a birra original da música. Como na música de Catatau, Bárbara encarna o protagonista originalmente masculino da canção sem o menor estranhamento, trazendo completamente as músicas para o coração feminino.
“Doppelganger Love”, a primeira música composta em inglês do disco, retoma o tom dançante e aparentemente fútil do disco, chacoalhando-se retilínea entre a new wave e o pós-punk, a Gang 90 e o Gang of Four. A beatlesca “Tudo Aqui” equilibra as duas metades do disco à medida em que ele vai chegando perto do final. A faixa ecoa o trabalho anterior de Bárbara – o subestimado duo em inglês Aurora, que gravou ao lado de Fernando “Chankas” Cappi, do Hurtmold – e foi a primeira canção que ela compôs na guitarra, logo que começou a aprender a tocar o instrumento, uma mudança nas apresentações ao vivo.
A praiana “Só Quero Seu Amor” – com o cantor Pélico fazendo backing vocal ao lado dos outros integrantes de sua banda – aos poucos vai fazendo o sol do disco se pôr, depois de apresentar-se com um riff de guitarra glam rock. A sonhadora “Baby”, também em inglês e levada no ukulele, antecipa uma noite leve e tranquila, completamente diferente daquela em que começamos o disco. O disco termina com a música-tema, uma faixa instrumental que ela compôs em Lumiar para um pinheiro chamado Carvalhão (pois é). “Frou Frou” encerra o disco que batiza da forma mais sessão da tarde possível, liberando a banda que a acompanha para farrear à vontade, com vocais divididos com Tatá Aeroplano.
Esta é formada essencialmente pelo guitarrista Davi Bernardo, o baixista Jesus Sanchez e o baterista Clayton Martin, que coproduziu o disco ao lado de Bárbara, sugerindo instrumentos, virando músicas do avesso e compondo riffs. Ao redor dos três, um contingente de músicos de primeira desfila pelas faixas do disco – do piano de Dudu Tsuda ao minimoog do Astronauta Pinguim, passando pelos teclados de Pedro Pelotas, João Leão, André Whoong e Dustan Gallas, o violão de Regis Damasceno, o sax de Dharma Samu e o baixo de Diogo Valentino.
Um disco leve e alto astral, que funciona como um refúgio para o excesso de tensão deste ano.
Uma brecha aberta com gosto, que nos convida para a fuga. Siga aquela garota!
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