In the Aeroplane Over the Sea – Neutral Milk Hotel

, por Alexandre Matias

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O violão martelado e a voz achatada de Jeff Mangum, o líder e cérebro do Neutral Milk Hotel, parecem tão inofensivo quanto um vagabundo bêbado que canta à sua janela às cinco da manhã. O que ele canta também não parece fazer sentido, como se inventasse a letra de uma música conhecida, criando imagens estranhas e novas. Na primeira música (“King of Carrot Flowers Pt. One”) do segundo disco de sua banda, In the Aeroplane Over the Sea (Merge, importado), ele canta sobre uma infância em que “a mãe enfia um garfo no ombro do pai/ E o pai joga lixo pelo chão/ Enquanto nos deitamos e aprendemos pra que servem nossos corpos”.

Cru e espontâneo, Mangum nos pega pela mão e nos leva a uma psicodelia rústica, caseira, que começa a se descortinar após a entrada de um mágico acordeão, nos avisando que, daí em diante, vem a mágica. Como o coelho de Alice, a voz de Jeff não pára para observar o ambiente e é nosso único referencial com o mundo real. Então mergulhamos de cabeça num mundo de sons que existe na cabeça do Neutral Milk Hotel, sem pára-quedas nem salva-vidas.

O Neutral Milk Hotel é uma das bandas do grupo multimídia Elephant 6, uma turma de amigos baseada em Athens, Georgia (terra de gente boa como R.E.M., B-52’s e Man or Astroman?) que resolveu fazer música para a própria apreciação, sem se preocupar com repercussões externas e com ampla vazão ao experimentalismo. Fazem parte deste grupo bandas como Olivia Tremor Control (que lê a psicodelia dos anos 60 como se fosse um filme surrealista) e Apples in Stereo (adeptos retrô 7do folk sessentista), que criaram uma cena particular, ousada e que aos poucos deixa de ser apreciado por uma pequena elite.

O que une as bandas do Elephant 6 é a clara despreocupação com o resultado final, a aceitação do erro e do irregular como um acerto, a imprecisão da música. O Neutral Milk Hotel se encaixa neste quesito pela forma peculiar que Mangum usa sua voz e pela naturalidade que os sons do grupo suspiram.

Jeff é descendente direto de uma geração que sabia dos limites da própria voz, mas não se importa com isso – o importante é cantar o que deve ser cantado. Como Syd Barrett (fase solo), Roky Eriksson (dos 13th Floor Elevators) e Captain Beefheart, ele deixa seu vocal cantar o que quiser, com ímpeto, garra, força e vigor. Qualidades filtradas por uma fragilidade e crueza do som, que se refletem no violão que toca. E se levarmos em consideração que ele está cantando sobre suas experiências de vida, mas de uma forma simples e fantástica (fingindo ser surreal para falar de coisas reais) encontramos um compositor ímpar na música popular atual.

Pois ele acredita na possibilidade de ser um poeta, fazer rock e ser levado a sério, sem maquiagens ou modismos. É preciso coragem para se lançar cru e despojado desta forma numa década marcada pela ironia e cinismo. Ele está jogando suas cinzas sobre nós, como o principal desenho do encarte (um gramofone misturado com um avião) e a letra da faixa-título (“E um dia vamos morrer/ Nossas cinzas voarão/ Do avião para o mar”) nos fazem crer. E não parece intimidado com isso, pelo contrário.

Ele fala conosco (“Estou te ouvindo onde quer que você esteja”, canta em “Two Headed-Boy”) criando imagens fantásticas com palavras simples (“E o pai pensava em formas diferentes de morrer/ Cada uma delas um pouco mais do que ele sequer ousaria tentar”), virando nosso ponto de vista o tempo todo. Enquanto canta que ama Jesus Cristo, ele escreve no encarte – no lugar da letra – que “desde que isso parece confundir algumas pessoas, eu quero dizer que eu realmente quis dizer o que canto. Apesar do tema infinito infinito do disco não seja baseado em qualquer religião e sim na crença que todas coisas têm uma luz clara dentro delas”. Mais tarde, canta-nos que “Deus é um lugar”.

Acompanhando o vocal de Jeff, vem o lado instrumental do grupo, uma banda marcial que perdeu a guerra. Trombones, percussão, trumpetes e saxofones cabisbaixos, tocando como se lamentassem a vida, chutando notas musicais no chão. A pompa dos arranjos de George Martin atravessada pela melancolia dos instrumentais de Nino Rota, uma tristeza preguiçosa tocada por uma banda de circo do começo do século.

In the Aeroplane Over the Sea é isso: psicodelia deprê, surrealismo cru, modernismo de bazar. Um estranho e mágico lugar musical onde as canções parecem esculpidas na madeira, em casas sem forro sob um céu nublado. O clima fim-de-século está espalhado por todo o encarte do disco, só que o século é o 19, o que transforma o Neutral Milk Hotel num elixir mágico vendido por mascates de casa em casa. Um remédio caseiro, mas sem contra-indicações: recomenda-se a audição várias vezes por vários dias.

1. The King Of Carrot Flowers, Pt. One
2. The King Of Carrot Flowers, Pts. Two And Three
3. In The Aeroplane Over The Sea
4. Two-Headed Boy
5. The Fool
6. Holland, 1945
7. Communist Daughter
8. Oh Comely
9. Ghost
10. (untitled)
11. Two-Headed Boy Pt. Two

Texto de 1999

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