2007: Música sem disco
“Soooomewheeeeere ooover the raaaainbooow…”
Fora todo o papo ético, econômico, legal e criativo ao redor do lançamento de In Rainbows, o disco que o Radiohead disponibilizou ao público em versão digital, há uma questão semântica que, pela banda, parece estar mais bem resolvida do que com a gente, os ouvintes. Logo depois que o disco deu as caras era muito comum ouvir as pessoas falarem que “a banda vazou o próprio disco”, como se não só em MP3 não estivesse valendo. O grupo cutucou ainda mais essa ferida ao programar o lançamento de In Rainbows em CD para o primeiro dia de 2008. De que ano é esse disco?
É claro que In Rainbows é de 2007. Mesmo se a versão física lançada pela banda chegasse para os fãs depois de janeiro, o disco tornou-se conhecido e ouvido no ano passado. O próprio Radiohead mais uma vez reforçou a datação de In Rainbows ao tocá-lo na íntegra em um show transmitido na noite de ano novo pela internet – não era uma apresentação ao vivo de um disco que ainda não existia fisicamente e sim a consolidação de um disco que existira até ali sem precisar do CD.
Em matéria de Radiohead, nenhuma novidade. O grupo foi protagonista do primeiro grande incidente envolvendo música digital, quando Kid A apareceu primeiro na internet (no Napster) e depois nas prateleiras de disco, no ano 2000. E o disco em questão não era nenhum arco-íris: Kid A é daqueles álbuns que frustram o fã por pular no abismo do experimentalismo. No holofote da expectativa, o Radiohead conectou-se com as principais vanguardas sonoras da virada do século e, quando apareceu primeiro na internet, parecia pegadinha. Muitos duvidaram se aquele era o disco de verdade, podia ser só uma gozação da banda. Não era. Kid A chocou ortodoxos, revoltou estreitos e encantou uma geração inteira de ouvintes que deixou-se levar pela viagem da banda.
Em 2007 o grupo repetiu a pegadinha, desta vez invertida. Foi indubitavelmente a banda quem avisou que o disco havia saído de sua esfera privada para a pública, algo que inevitavelmente aconteceria em alguma etapa do processo de transformação da música em uma rodela chata prateada. Entre o estúdio e a prateleira da loja, o disco passaria por inúmeras mãos – muitas delas de fãs do grupo, outras recebendo dinheiro para contrabandear o material. Qualquer um – no próprio estúdio, na fábrica de discos, na distribuidora, em qualquer etapa do marketing do novo álbum até na loja. Como sentira na pele há sete anos, o grupo sabia que era questão de o disco ficar pronto para que ele atingisse o ouvido público.
Por isso, o Radiohead foi na contramão. Preferiu ele mesmo dar o disco para os fãs, pois estes, independente de comprarem ou não o disco, iriam baixar qualquer registro inédito do grupo que parecesse ser novo material. Como já estava: todo o In Rainbows era composto por músicas que o Radiohead já trabalhava há anos e logo em que a seleção das faixas foi anunciada já era possível montar o clima do novo disco sem sequer ter o ouvido – apenas enfileirando corretamente vídeos caseiros da banda em turnê. Quando o disco de verdade apareceu (dia 10 do 10, 10 dias depois de ser anunciado, yadda yadda yadda) apenas confirmou a expectativa – e, como um efeito dominó, cópias eram feitas dos arquivos originais para armazenadores online de MP3s espalhados pela internet. Para baixar o disco, o grupo pedia o preenchimento de um minicadastro e, uma martelada doída no caixão da indústria do disco, sugeria que o público pagasse pelo disco. A provocação (ao mercado, à indústria, aos fãs, às outras bandas) era clara: “eu sei que você vai baixar o disco de qualquer jeito, mas se você quiser nos dar uma grana, não vamos achar ruim”. E pela primeira vez, podiam medir os downolads!
E, tanto em Kid A quanto em In Rainbows (mas não em Hail to the Thief, que contou com o marketing tradicional), o resultado do fato do grupo ter se beneficiado graças à internet foi consolidado com a chegada ao topo de algumas das principais paradas de discos mais vendidos pelo planeta.Tanto em 2000 quanto em 2007. Simplificando grosseiramente, os discos foram “testados” pelo consumidor antes de serem comprados. “Dados” ou “roubados”, dependendo do ponto de vista.
A gratuidade da música com a era digital é fato. Basta digitar o nome de qualquer música em programas ou buscadores específicos na internet que você vai encontrar. O mesmo pode ser dito sobre filmes, programas de TV, quadrinhos e livros, mas em escalas menores. Música, eu já disse, é o boi de piranha das transformações. É quem encabeça primeiro os tremores de mudanças sociais e, inevitavelmente, acaba sofrendo com isso. O Radiohead resolveu pagar pra ver – ou pedir pra você pagar, feito o moleque das Casas Bahia – se sentia a dor na pele.
Não sentiu – pelo contrário. Saudado como líder da nova revolução eletrônica, o grupo fez um disco irrepreensível – e idêntico ao disco esperado pelos fãs desapontados com Kid A. Convencional e correto, In Rainbows é orgânico em sua natureza e ousado na medida certa, sem exageros. E a reação dos ouvintes também foi inversa: se Kid A espantava, In Rainbows atraía. Muita gente foi ouvir Radiohead com atenção pela primeira vez graças ao marco autodeterminado pelo grupo. E, além disso, muita gente foi baixar música da internet pela primeira vez graças a In Rainbows.
É sério. Tem muita gente que vive completamente alheia à música digital e que trata o mundo de MP3, iPod e MySpace como uma alucinação coletiva ou uma grave debandada das pessoas para a ilegalidade. Com uma propaganda alarmista para tentar evitar uma crise anunciada desde os anos 90, a indústria de entretenimento conseguiu impregnar no imaginário das pessoas a idéia de que baixar conteúdo pela internet consistia em crime. Meu amigo BNegão não vai ligar se eu roubar uma anedota que aconteceu com ele que ilustra perfeitamente esta situação. Um dos primeiros artistas brasileiros a colocar seu disco inteiro para download (o ótimo Enxugando Gelo, se você não conhece, baixe agora), Bernardo recebeu um email de um fã que, morador de uma cidade pequena, não conseguia achar o tal disco para comprar. Ele nem pestanejou e retrucou o email com o link para o site do Centro de Mídia Independente, onde BNegão hospeda seu disco. Mas o sujeito do outro lado não ia baixar o disco, porque “baixar música da internet é prejudicial ao artista”. Posso estar me esquecendo de algum detalhe, mas a essência da história é essa.
É claro que há hierarquias e perfis entre os que baixam música. Há o que baixa os hits da hora usando um programa de P2P – onde também troca games e filmes – e o que fuça blogs de MP3 em busca de artistas desconhecidos. Gente que, mesmo que o artista não deixe sua música para download; liberando só o streaming, vai lá e consegue extrair o áudio na unha. Junkies por torrent que baixam discografias inteiras ou indies meticulosos que incluem até o PDF da capa na pasta de MP3s onde guarda o disco. Gente que troca arquivos via MSN ou que ripa CDs para mostrar para os amigos. São vários hábitos que já existem em relação à música digital e que, por algum motivo idiota, não os consideramos como fato. Não é mais “o que vai ser” – é o que é.
Se você mora em uma cidade com mais de um milhão de habitantes, tem grandes chances de a maioria das pessoas com fone de ouvido na rua estarem levando seus MP3-players portáteis. Com o computador migrando para o telefone celular de vez, será inevitável o dia em que teremos um só apetrecho que tire fotos, ande na internet, fale com outras pessoas e dê para ouvir música e ver filmes (eu quero o meu com isqueiro embutido). E a propalada “inclusão digital” vai estar bem melhor encaminhada…
Por enquanto, estamos exatamente no meio. E quem não usa a internet para ouvir e conhecer música é como uma pessoa que só pode ouvir rádio, mas não pode comprar discos nem fitas: a quantidade de opções, em comparação, é minúscula e você fica a mercê dos outros para ouvir o que quer.
Mas e a música vai ser de graça? “O artista vai viver do que?”, me pergunta sempre um carinha da MPB ou um roqueiro camisepreta. Perguntas ainda sem resposta, mas se você baixa arquivos por um provedor de internet é provável que este seja quem melhor sabe quem está sendo ouvido, lido, assistido. O U2 já fez a sua parte, tornando-se o Metallica dos provedores de acesso ao ameaçar processar todos os servidores que contivessem material pirata do grupo irlandês. Não me assustaria se o final dessa história viesse com um aumento no preço da assinatura à internet no provedor de qualquer um como desculpa de repassar (aham) o valor para os autores das obras. Mas me espantaria se liberassem tudo de graça – que é o único jeito de dar certo na internet atualmente. Mas aí era bem fácil que as pessoas fizessem festas de computador (as famosas Lan Parties) só pra trocar conteúdo entre si. Ou seja: controle? Esquece.
Por outro lado – e as lojas de disco? E os discos? Quanto tempo os discos durarão? Quem ainda gravará discos? Se há um par de anos o fim do CD deixava de ser uma suposição para ser uma possibilidade, hoje é fácil pensar num mundo sem discos. O artista ainda prensa o CD mesmo com a desculpa – plausível – de que o CD é seu cartão de visitas. Mas até quando? Cartões de visita no fim das contas, acabam ficando empilhados e são consultados raramente, quando não jogados fora.
Suspeito que há mais um fetiche do artista em ver sua obra concretizada em algo sólido do que disposição para vender os discos – sequer fazer com que eles sejam ouvidos. Não por falta de vontade na obra do artista, mas por falta de interesse na mídia escolhida. E se isso é visto como um problema para o artista brasileiro (mais do que para o estrangeiro, onde o disco ainda conta com uma sobrevida), eu vejo como uma solução. Sem ter que prensar, vender ou mostrar o disco, o autor poderá focar-se no que realmente sabe fazer. No caso, música.
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