Desde que me tornei editor do Link, no Estadão, em 2009 até a minha saída no final do ano passado, me autoinflingi a um mau agouro: o dia em que o suplemento de tecnologia se tornaria obsoleto (também sempre cogitava a pior hipótese de hard news para um caderno semanal que circulava no início da semana – a morte de Steve Jobs numa segunda-feira; ela aconteceu numa quarta e mesmo assim eu e Helô conseguimos tirar onda na edição daquela semana, obrigando o leitor a entortar o jornal). Sempre brincava – embora falando sério – que a natureza do Link contraposta à do Estadão permitia que nos aventurássemos por diferentes áreas do jornal sem brigar por pautas com outros cadernos. Assim conseguimos falar sobre o Marco Civil da Internet, de pirataria como vertente política e das trapalhadas da nossa justiça com a natureza da internet antes do pessoal de política, da economia aberta e de moedas virtuais sem abalroar com economia, da discussão sobre a ilegalidade dos downloads, da natureza do remix e da arte colaborativa fora das páginas de cultura. Mas chegaria um momento em que essas discussões inevitavelmente iriam interessar aos leitores de todos os cadernos, quando o digital deixasse de ser exceção. Cogitava como horizonte o dia em que a internet e as novas tecnologias se tornariam tão presentes que deixariam de ser reconhecidos apenas por um caderno. Uma vez que a internet avança cada vez mais sobre cada desdobramento de nossa vida, é inevitável a chegada de um momento em que um caderno sobre novas tecnologias e cultura digital se torne redundante frente a todas as outras editorias.
Quis o destino que tais preocupações ficassem no passado logo que assumi a direção da Galileu, no final de 2012 (cogitando, sobre novos ombros gigantescos, novos horizontes), mas tenho uma forte impressão que todo esse oba-oba em torno do digital e da internet terminará até o final desta década. Isso não quer dizer que a internet passará ou que os dilemas da transição que estamos vivendo se cessarão: pelo contrário, acho que eles se tornarão ainda mais presentes e complexos. A diferença é que não vamos mais nos referir uns aos outros como “internautas” (palavra que abomino e tento eliminá-la de meus textos, a não ser pra citar o próprio ridículo do termo, como agora) e vamos deixar de falar em “entrar na internet”. A rede já é ubíqua e o Facebook sozinho já pode gabar-se de ter um sétimo da população do planeta conectada à sua agenda de contatos, o maior CRM do planeta. Mas já começamos a ver um movimento de reação que é inevitável: a fuga da internet (ou a redução da presença online). Cada vez mais gente abandona plataformas de publicação para ter apenas um ponto de contato com a internet, deixando para trás essa era histérica e autorreferente de discussões intermináveis que só fazem bem ao ego dos envolvidos, sejam colunistas ou blogueiros de esquerda ou de direita (conceitos cada vez mais difusos, ainda mais nesses dias). E essa desconfiança da internet ganhou requinte de crueldade com as revelações feitas por um ex-agente da inteligência norte-americana, Edward Snowden, que revelou que os Estados Unidos utilizam recursos digitais – com auxílio das grandes grifes da rede – para monitorar a vida de quaisquer cidadãos que estejam na internet, norte-americanos ou não.
Qualquer um que dissesse, até 2012, que o governo dos EUA teria algo parecido com o PRISM seria imediatamente tachado de paranóico e conspirador maluco – mas eis que vem a realidade e nos esfrega em nossas ventas algo que nem a melhor ficção cogitaria. Mais do que isso: nos dá um anti-herói vilão arrependido que foge para a Rússia numa ação que desafiou até a soberania do presidente boliviano. Snowden surgiu como improvável protagonista da contrainformação corporativa, deixando o mundo boquiaberto sobre suas revelações e dando início a um dominó político que por vezes respingou no Brasil – desde reativação o Marco Civil da Internet à detenção de David Miranda, o namorado brasileiro de Glenn Greenwald (responsável pela revelação das acusações de Snowden), até a carta que o próprio Snowden escreveu ao Brasil, dizendo-se disposto a ajudar o país no que diz respeito às espionagens relacionadas ao governo e empresas brasileiras.
As revelações de Snowden podem ter tornado o mundo mais cético e mais cínico, mas se esse é o custo para que saiamos do loop de autodeslumbre que estamos presos desde que a web 2.0 permitiu que o mundo ouvisse a voz de cada um de nós, tudo bem. Pode ser que assim passamos menos tempo olhando para telas, decididos a registrar qualquer momento ou pensamento, nos fazendo refletir sobre a natureza da sinceridade da pergunta que o Facebook sempre nos faz (“como você está se sentindo agora?”). Não vivemos num reality show em que o mais exibido ou melhor articulado ganha um milhão no último episódio – estamos mais para ratos em laboratório cujas menores reações são monitoradas a cada milímetros ou segundo. E não tem último episódio, mesmo que você leve o milhão (de views, de likes, de RTs).
De Bowie, em janeiro, a Beyoncé, em dezembro, lançamentos-surpresa estiveram na ordem do dia de 2013. É mais um indício que a transição da era analógica para a digital está chegando ao fim. Os artistas, que antes precisavam mover uma enorme máquina de marketing para conseguir ao menos um tijolinho de texto em uma página de jornal, estão fazendo isso sem tanta estrutura, pois falam direto com seus fãs. O álbum-surpresa não é uma novidade de 2013; o Radiohead já fez isso pelo menos três vezes (embora na primeira eles não assumam): no “vazamento” de Kid A no meio do ano 2000, quando o disco estava prometido para setembro; e no lançamento de In Rainbows, de 2007, e The King of Limbs, de 2011, postos para a rua em menos de um mês depois de finalizados em estúdio. A novidade de 2013 é que isso não é mais exceção e, aos poucos, tornam-se regra. Mesmo com gravadoras envolvidas no processo, os artistas querem entrar em contato direto com seus ouvintes e vender seus novos discos sem antecipação. Até o My Bloody Valentine tirou um atraso de mais de duas décadas usando essa fórmula, seguida pelo Boards of Canada, que brincou de quebra-cabeças com ouvintes e ratos de lojas de disco.
Mas ninguém soube faturar tão bem a expectativa como o Daft Punk. Não é de hoje que a dupla francesa experimenta formatos contemplando diferentes mídia e é nítida a ênfase específica que os dois dão à sua criação musical. Ao transformar as antigas máscaras em personalidades-robô, Guy-Manuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter ampliaram sua área de atuação para além da música e talvez tenham se perdido no meio do caminho. Entre o soberbo (e lotado de samples) Discovery e a trilha sonora da continuação de Tron, a imagem do Daft Punk chamou mais atenção que suas músicas – e parece que foi com este intuito que Random Access Memories foi gravado. Sem samplear ninguém, a dupla chamou um senhor time de colaboradores (Panda Bear, Julian Casablancas, Giorgio Moroder, Todd Edwards, Chilly Gonzalez) e preferiu centrar fogo em uma música. Ou melhor: quinze segundos de uma música.
Foi o que aconteceu quando ouvimos “Get Lucky” pela primeira vez, num comercial do Saturday Night Live que viralizou no YouTube. 15 segundos e só o riff. A única imagem era o logo da banda, estilizado em prata, seguido das duas metades de cada capacete vindo de cada lado da tela, revelando a data de lançamento do novo disco. Sem vocal. Sem refrão. Só o riff, que depois ficamos sabendo que era tocado por ninguém menos que Nile Rodgers, fundador do Chic, que produziu David Bowie e Madonna nos anos 80. Semanas depois, uma versão esticada do comercial aparecia num telão no festival Coachella não apenas revelando a participação de Rodgers como a do cantor Pharrell, entregando a estrofe pré-verso da música. Ao criar essa expectativa em torno da chegada de uma única canção, o Daft Punk aos poucos foi nos acostumando com sua estrutura, seu ritmo, sua textura musical – essencialmente um flashback literal do final dos anos 70 e início dos anos 80 como o próprio nome do disco deixa claro.
Quando “Get Lucky” apareceu, tudo estava pronto para ela se tornar a música mais ouvida do ano. A expectativa criada em uma única música – e não numa grande volta ou em todo o álbum – colocou o Daft Punk no centro pop de 2013 e transformou seu hit em uma das músicas mais emblemáticas de 2013, mesmo que pareça ter sido feita em 1979. A forma como ela nos foi apresentada é que é típica deste século.
Treze partes de um ano ímpar, a partir do meu ponto de vista
O número 13 vem carregado de um desequilíbrio que perturba a maioria das pessoas. Como o dia em que nasci leva este número, entrei escaldado em 2013. Não havia como fugir que nosso primeiro ano 13 fosse tenso e carregado como foi – emoções boas ou ruins, igualmente inquietas. A aura do número – da sorte ou do azar, dependendo da perspectiva – pairou sobre nossas cabeças de forma quase icônica e ríamos ao chamá-lo de “creize” entre os dentes cerrados como uma forma de exorcizar toda essa pilha.
Foi um ano em que política pareceu ter perdido a aura engravatada e cinzenta que era nos vendida para se tornar algo palpável e presente, seja nos protestos de junho de 2013, nas políticas públicas, na participação popular, no convívio social. Vimos máscaras subindo e outras caindo num ano em que os papéis entre palco e platéia se embolaram de vez e a intermediação entre ambos tornou-se quase ensurdecedora, com tantos em busca de protagonismo. Polêmicas e memes se misturam às notícias e tudo parecia filtrado por opiniões recém-adquiridas via Facebook – toda semana um novo assunto é exaurido de possibilidades retóricas, o que aos poucos vem desgastando nossa capacidade (e paciência) de argumentação ao mesmo tempo em que essa fase de que se precisa ter opinião sobre tudo parece que vai passando. Convicções seguem rígidas, mas há uma desolação irônica que flutua sobre qualquer assunto – o papa que renuncia, os direitos das empregadas domésticas, o Ben Affleck vai ser o Batman, Tom Zé e a Coca-Cola, o ingresso de R$ 12.500,00, a Mídia Ninja e o Fora do Eixo – que parece nos preparar para uma realidade menos ilusória, plástica. Daí a política nos desinteressar na esfera representativa global e começar a brotar em recantos comunitários. Afinal, se somos todos monitorados pelos Estados Unidos, como já desconfiávamos pela onipresença do Google e do Facebook, por que não baixarmos a guarda e começarmos a falar umas boas verdades, inspirado pelo principal sujeito de 2013, esse Nobel da paz de verdade chamado José “Pepe” Mujica.
Mas a imagem do ano é a da fotógrafa Giuliana Vallone alvejada no olho por um policial durante um protesto pacífico, pois ela talvez seja quem melhor represente essa mudança – não estamos falando apenas de uma casualidade de guerra ou de uma estatística em um confronto, mas de uma pessoa surpreendida pela agressividade institucional. A mesma que nos faz querer ir às ruas, humanizar a discussão – afinal a discussão sobre os 20 centavos só ganhou corpo quando a violência policial fez-se presente. E isso nos custou abrir um pouco a mão de nossa zona de conforto.
Essa retomada do espaço público e do ar livre se refletiu em vários níveis pessoais – desde aproveitar melhor a cidade à materialização de uma festa vespertina. E não adianta despregar uma retrospectiva do ponto de vista individual, ainda mais no ano em que a dicotomia entre #merepresenta e #nãomerepresenta foi gasta num certo ponto em que a única verdade possível é a de cada um. Particularmente, tirei 2013 para estabilizar meu plano de vôo – e se o acaso quis que a maioridade do Trabalho Sujo coincidisse com meu primeiro ano na direção da Galileu, transformei isso em meta dupla coexistente. Sob ambas, o despertar de uma preocupação com a saúde que vai além da fácil “alimentação melhorada” rumo ao exercício físico (a caminhada #thewalk e a natação #downbythewater, dois hits da minha vida assumindo-se rótulos para transformações físicas) e vendo um horizonte sem a fumaça da nicotina em 2014. Conheci Berlim e Barcelona, duas cidades incríveis e antagônicas, São Paulo e Rio de Janeiro de uma Europa mais jovem que esperava encontrar. Vi o Cure, o Tame Impala e o Blur duas vezes, finalmente fui a um festival Primavera, vi o Cidadão tocando o Dark Side do Pink Floyd e um show histórico do Neil Young sobre seu Crazy Horse. Dei festas memoráveis sempre tocando ao lado de amigos queridos e aos poucos estou retomando a cozinha. Mas fui ao cinema e li menos do que gostaria. A série cujo final eu mais aguardava terminou sem graça e perdi um dois grandes ídolos: um icônico e outro irmão. Foi um ano montanha-russa, em que a lógica pareceu ser a mesma por trás de qualquer Harlem Shake (uma moda, por incrível que pareça, deste ano).
Nos próximos treze posts, treze lembranças deste ano treze que chega ao fim, textos que comecei a escrever em diferentes épocas e cidades nos últimos doze meses e que serão terminados nas altitudes de um deserto sul-americano, onde passo uma semana com a única pessoa que realmente importa – minha mulher.
Força, porque ano que vem, você já sabe, vai ser “o” ano: e só melhora!
PS – A contagem regressiva das 75 melhores músicas de 2013 continua a partir do primeiro dia de 2014, junto com outras listas de retrospectiva, que seguem até o dia 6.